“Pobre cultura como pode se segura
Mesmo assim mais um pouquinho
E seu nome será amargura, ruptura, sepultura
Também pudera coitada representada
Como se fosse piada
Deus meu por cada figura sem compostura
Onde era ataulfo tropicália
Monsueto dona ivone lara campo em flor
Ficou tiririca pura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Que droga merda
(…)
Cultura sabe que existe miséria, existe fartura e partitura
Cultura sabe que existe bravura, agricultura
Ternura, existe êxtase e agrura, noites escuras
Cultura sabe que existe paúra, botões e abotoaduras
Que existe muita tortura
Cultura sabe que existe cultura
Cultura sabe que existem milhões de outras culturas
Baixaria na cultura tanto bate até que fura
Socorro elis regina
(…)
Pobre cultura
Como pode se segura
Mesmo assim mais um tiquinho
Coitada representada
Como se fosse um nada
Deus meu por cada feiúra
Sem compostura
Onde era pixinguinha elizeth macalé e o zé kéti
Ficou tiririca pura
Socorro elis regina”
Cultura Lira Paulistana
Itamar Assumpção
Que Itamar Assunção foi um artista genial é um fato, mas nesta canção de 1998 ele foi premonitório dos dias de hoje. Parece que antevia Regina Duarte na Secretaria da Cultura de um governo fascista. A letra da música, citada em parte acima, por si já é um artigo completo.
Pois é, estamos falando da cultura de um país que teve Pixinguinha, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Zé Kéti, Gonzagão, Chiquinha Gonzaga, Cartola, Aldir Blanc, Dona Ivone Lara, Elis, Villa Lobos. Um país que já teve Lima Barreto, Machado de Assis, Graciliano, Cecília Meirelles, Cora Coralina, Guimarães Rosa, Drummond, Clarice Lispector. Um país que criou movimentos como o Tropicalismo com os geniais tropicalistas e a semana de arte moderna de Mário e Osvald de Andrade, Pagu, Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira, Anita Malfati. Um país que já exportou cultura com a Bossa Nova de Tom Jobim e Vinícius, só para citar alguns dos que já se foram, apenas na música e na literatura. Portanto ver no seu comando os espantalhos fascistas – primeiro Roberto Alvin e depois Regina Duarte – é o fim da linha, um tapa na cara da cultura brasileira.
Regina Duarte nunca esteve entre as grandes atrizes brasileiras. Quase não fez teatro e cinema, anos-luz de uma Fernanda Montenegro. Criou fama ao interpretar personagens dos folhetins românticos que a vênus platinada soube muito bem transformar em novelas. A Globo – ironia da história – hoje adversária do governo que ela integra, lhe deu e popularizou a alcunha de “namoradinha do Brasil” nos anos 70. Assim sua personagem grotesca de ópera-bufa no papel de secretária da Cultura não é incoerente com sua carreira artística.
Em um brilhante artigo publicado aqui no EOL, Joana das Flores Duarte afirma, corretamente, que Regina não é louca. É fascista. Para isso, expõe argumentos e contra-argumentos irrefutáveis. Partindo desse acordo, permito-me acrescentar uma trajetória coerente com essa afirmação.
Regina vem de uma família de classe média – o pai era militar. Era uma jovem conservadora, segundo amigos. Posteriormente com a decadência da ditadura, como grande parte dos setores médios do país, gira para a oposição moderada. Nesse processo aproxima-se do MDB e depois do PSDB. A famosa frase sua na campanha eleitoral de 2002: “tenho medo do Lula” já foi um prenúncio da sua evolução à direita. E isso quando o Lula já tinha publicado sua “Carta ao povo Brasileiro” dando todas as garantias às elites do país. No processo do golpe contra Dilma, a ampla maioria da classe média e base social do PSDB se desloca para a ultra-direita e abraça Bolsonaro. Ela vai até o fim nesse movimento em direção ao neofascismo. Aqui não existe nenhuma inocência ou distração. Contra “distraídos” desse naipe temos que lutar.
“Socorro Elis Regina”, como diz a canção e, por licença poética, socorro Itamar Assumpção, Plínio Marcos, Clara Nunes, Cazuza, Elton Medeiros, Dolores Duran, Dias Gomes, Anselmo Duarte. Vamos recuperar a memória de muitos artistas cuja trajetória foi dedicar sua vida ao fato de que a “cultura sabe que existe miséria, fartura e partitura”; “que existe tortura…” O Manifesto de mais de 500 artistas contra Regina Duarte e contra a ditadura é superprogressivo. Mas não deve parar por aí. Desmascarar e combater Regina Duarte é parte da necessária luta contra o fascismo que devemos travar com toda força agora.
Esta é a tarefa. E assim este texto termina com outra citação: um fragmento de “A noite dissolve os homens”, poema escrito por Drummond em 1940. O poeta o dedicou ao pintor Portinari que sempre lutou contra o nazi-fascismo e a ditadura Vargas. A “noite” do título é metáfora do fascismo, enquanto a “aurora” simboliza a possível derrota do totalitarismo.
“Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.”
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