“Tenhamos coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado”
Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras brancas, p. 90
“Minha última prece: Oh meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!”
Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras brancas p. 191. [1]
As duas frases de Fanon fazem referência à luta contra o colonialismo e seus efeitos; é uma manifestação e um desejo de que os sujeitos coloniais se reconheçam como oprimidos e possam assim se emancipar. Para o pensador, o “homem colonizado se libertaria na e pela violência”[2], devido à atmosfera hostil e violenta a qual era submetido. Mas Fanon também chamou atenção para o aniquilamento subjetivo do colonizado pelas relações de poder, acelerado pelo aumento das desigualdades, da exclusão e das fraturas sociais a partir de uma ideologia que provocava a reificação dos sujeitos da margem.
As afirmações de Fanon precisam ser compreendidas e exercitadas no Brasil. Antes de problematizar o porquê, é preciso tecer algumas reflexões sobre o 13 de maio e as suas repercussões nas relações sociais no Brasil de hoje.
É preciso reconhecer e afirmar que a escravidão no Brasil não constituiu apenas um rentabilíssimo negócio, mas imprimiu marcas profundas na sociedade brasileira, possíveis de serem vistas até os dias de hoje. Ela moldou ações e atitudes, estabeleceu desigualdades, fez da cor e dos traços fisionômicos um modo de diferenciação essencial, além de ordenar comportamentos de autoridade, mando, obediência e subserviência, num sistema hierárquico bastante visível.
A abolição não constituíra uma ação benevolente do Império, embora a imagem da Princesa Isabel tivesse ficado no imaginário popular por décadas como “a redentora dos negros”. Segundo Lília Schwarcz e Heloísa Starling[3], a própria maneira como a abolição foi apresentada oficialmente – como um presente e não como uma conquista – levou a uma percepção equivocada de todo esse processo marcado pelo envolvimento decisivo dos próprios escravizados na luta. Luiz Gama, André Rebouças, José do Patrocínio e tantos outros negros e negras foram colocados em papeis secundários ou mesmo silenciados pelos registros historiográficos posteriores.
A abolição não apaga os mais de três séculos de resistência dos escravizados, representada por insurreições, revoltas, aquilombamento, assassinatos de senhores e feitores e toda uma gama de ações que desafiavam o sistema, caracterizado, de forma equivocada, como suave[4] e menos cruel[5] se comparada a outras realidades como a dos operários europeus e a dos negros norte-americanos.
O regime escravocrata foi extremamente cruel e violento. Os negros escravizados eram submetidos a toda uma sorte de castigos, suplícios e torturas, seus corpos ficavam deformados após sessões de chibatadas. Suas peles eram expostas ao ferro em brasa, não era raro encontrar escravizados sem as orelhas, tipo de castigo comum para os que fugiam.
A tortura senhorial era legalizada, já que o escravo era um objeto/propriedade e o seu dono fazia dele o que bem entendesse. No entanto, se o escravizado cometesse crimes diversos e/ou atos violentos contra seu dono, sofreria punição, passava a ser considerado como sujeito nos termos da lei. Yuri Costa[6], ao analisar essa contradição, chegou a afirmar que “o escravo foi, na história da humanidade, a única propriedade punível”. Alguns objetos simbolizavam a violência brutal direcionada aos escravizados. O chicote e o pelourinho são os mais conhecidos, mas existiam também as correntes nos pescoços, a palmatória, as máscaras de flandres[7], a forca, entre outros.
Um sistema longo e perverso como este só poderia originar uma sociedade autoritária, violenta e racista. O pós-abolição não trouxe benefícios aos libertos, que foram abandonados à própria sorte. Ao longo da história da república brasileira, sobretudo nas primeiras décadas, o negro foi apartado dos propósitos do Estado – ele não possuía propriedade, não era alfabetizado, possuía baixa expectativa de vida – o que reforçou preconceitos e naturalizou desigualdades que perduram até hoje.
As teorias do determinismo social e racial, importadas da Europa no início do século XX, também ajudaram muito a colocar o negro como inferiorizado, tendo como pressupostos, “o poder de perpetuar estruturas de dominação do passado colocando em seu lugar novas formas de racialização, as quais buscavam justificar biologicamente diferenças que eram históricas e sociais”[8]. A degeneração da raça como ideologia científica e política possibilitou, por exemplo, o que Robert Nisbet[9] denominou de “teoria do progresso”, de cunho racista, já que a base do desenvolvimento e do progresso ocidental era a raça branca.
Mas, assim como durante a escravidão, as populações negras não estiveram passivas em relação a seus dramas, a Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, é um exemplo de resistência de negros. Oficiais de baixa patente da Marinha – em sua maioria negros e mestiços – se rebelaram contra seus superiores brancos, tomando o controle de quatro navios de guerra na baía de Guanabara e ameaçando bombardear a cidade. Reivindicavam o fim dos maus tratos aos quais eram submetidos, escancarando o racismo violento presente nas forças armadas da época.
Em 1931, em São Paulo, é criada a Frente Negra Brasileira, que reuniu milhares de negros, num verdadeiro movimento de massa, chegando a atingir o número expressivo de 20 mil sócios em vários Estados. Com o fim do Estado Novo, outros grupos começam a se organizar, formando entidades importantes na história da busca de melhores condições e direitos para os negros. Destacam-se a União dos Homens de Cor e o Teatro Experimental do Negro. Com a abertura política no fim dos anos 1970, o Movimento Negro Unificado (MNU) fortalece as lutas e reivindicações por direitos no mesmo momento em que crescia os clamores pela redemocratização do país.
A Constituição de 1988 se tornou um marco importante a partir das lutas e reivindicações do ativismo negro, o que assegurou a inserção dos artigos 215 e 216 que versam sobre a proteção às manifestações culturais afro-brasileiras, considerando-as patrimônio nacional; o artigo 68 das disposições transitórias reconhece o direito a territórios remanescentes de quilombos e o artigo 5º, inciso XLII, tornou a prática de racismo crime sujeito à prisão. Em 1996, o Estado brasileiro reconheceu Zumbi dos Palmares como herói Nacional. Em 2011,o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi, foi instituído pela Lei Federal de nº 12.519/2011 como dia Nacional da Consciência Negra, uma reivindicação do MNU desde os anos 1970.
No século XXI houve ainda uma modificação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, tornando obrigatório no currículo do ensino básico as temáticas ligadas à “História da Cultura Afrobrasileira e Africana”, além da consolidação de políticas afirmativas de acesso às universidades públicas por parte da população que se declarava negra. Aliado a isso, em 2010, foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, tendo como objetivos fixar direitos aos afrodescendentes brasileiros nos mais diversos setores da sociedade. É preciso dizer que tais avanços são, antes de mais nada, produto constante da lutas e da organização do movimento negro, articulado nas mais diversas escalas de atuação.
Apesar do fortalecimento de direitos nos últimos anos direcionados aos negros, ainda há muito a se conquistar. O racismo é uma realidade bastante comum no Brasil, desde as relações mais cotidianas ao plano institucional. Alguns exemplos são recorrentes, uns sutis, outros mais incisivos. Ver negros em posições sociais de destaque causa estranhamento a muitos, a presença deles em certos espaços de consumo, por vezes, causa reações de desconfiança e vigilância. Na publicidade, poucos anúncios associam seus produtos aos afrodescendentes. Na grande mídia, a presença dos negros é a exceção. Cultos de religiões de matriz africana são vistos por certos grupos da sociedade como coisa demoníaca e os ataques violentos se multiplicam.
O racismo se reproduz também na linguagem, palavras e expressões. “Preto de alma branca”, “preto de traços finos”, “cabelo ruim”, “mercado negro”, “denegrir”, “a coisa tá preta”, “mas eu tenho amigos negros”, “por que não tem dia da consciência humana?”, “o próprio negro é racista”, “o negro se vitimiza muito”, são tristes exemplos de como o racismo se manifesta no Brasil, às vezes até de forma inconsciente, herança do poder dominante e opressivo do branco nos anos de escravidão, arraigado na cultura brasileira através do vocabulário.
A realidade perversa do racismo no Brasil é representada pelas desigualdades sociais, a população negra possui renda duas vezes menor que os grupos de brancos, segundo estudo do IPEA em parceria com a Fundação João Pinheiro e o PNUD. A taxa de homicídio de jovens negros com idade entre 15 e 29 anos no Brasil chega a 185 por 100 mil, número três vezes maior que os jovens brancos. A população carcerária no Brasil é a terceira maior do mundo, totalizando 773.151 mil pessoas, sendo dois terços dos presos negros, homens e pobres.
O escancarado racismo bolsonarista
A chegada de Jair Bolsonaro e seu grupo ao poder representa uma grande ameaça aos direitos conquistados nos últimos anos pelas populações afrodescendentes. Antes de assumir o cargo, o presidente já se posicionava contra políticas afirmativas ao dizer que “todos são iguais perante a lei”, na campanha de 2018. Em um entrevista concedida ao programa Roda Viva, declarou não haver dívida histórica com os negros por conta da escravidão e ainda asseverou: “se for ver a História realmente, os portugueses nem pisaram na África, eram os próprios negros que entregavam os escravos”.
Já chegou a dar a seguinte declaração, pouco antes do segundo turno, durante uma entrevista concedida a uma emissora de TV do Piauí: “não há a menor dúvida” de que as políticas de ações afirmativas “reforçam o preconceito”. As cotas raciais seriam um equívoco. “Isto não pode continuar existindo. Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitada da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Tudo é coitadismo no Brasil. Vamos acabar com isso”, concluiu.
Em abril de 2019, já no cargo de presidente, Bolsonaro ordenou pessoalmente que o Banco do Brasil retirasse do ar uma campanha publicitária com a participação de jovens negros, que se mostravam com tatuagens, usando anéis e dreadlocks. Os jovens afrodescendentes apareciam felizes e empoderados. A peça comercial não agradou o chefe do Executivo por ter “diversidade demais”, o que acabou culminando na exoneração do então diretor de Comunicação e Marketing do banco, Delano Valentim.
Outro fato relacionado ao atual governo que causou repercussão, aconteceu neste último 13 de maio, o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, atacou Zumbi que segundo ele é uma invenção da esquerda e do marxismo cultural, expressão recorrente na boca de conservadores, reacionários e extremistas da direita. Camargo chegou a dar a seguinte declaração em suas redes sociais: “Zumbi é herói imposto pela ideologia que a grande maioria dos brasileiros repudia. Negros, questionem, critiquem e não o aceitem passivamente!”. Disse ainda: “Herói da esquerda racialista; não do povo brasileiro. Repudiamos Zumbi!”, disse em outra publicação. Para ele, a verdadeira heroína do negros é Isabel, que assinou a lei Áurea em 1888.
A gestão bolsonarista, de fortes traços fascistas, tenta a todo custo criar narrativas falaciosas sobre temas como a escravidão e o racismo, reforçando a ideia de meritocracia, reproduzindo as ideias de “vitimismo” e “coitadismo” em relação aos negros, ocultando em seus discursos as desigualdades gritantes presentes no país. O Executivo Nacional se exime da responsabilidade de fomentar políticas públicas que promovam cidadania e acesso a direitos aos afrodescendentes, como, por exemplo, a demarcação e legalização de terras de comunidades quilombolas.
A ideologia bolsonarista reforça atitudes racistas por parte de apoiadores diversos, sobretudo dirigidos a nomes importantes do campo progressista. Em recente discurso rebatendo as acusações de Sérgio Moro, o presidente chegou a fazer a seguinte indagação: “Quem mandou matar Bolsonaro?”, uma clara referência a Marielle Franco, mulher negra, lésbica, da periferia e notória ativista dos Direitos Humanos, combatente de injustiças e preconceitos. Seu crime, ainda sem solução, foi menosprezado por Bolsonaro em diversas ocasiões. Suas palavras são um grave ataque à memória e à honra de Marielle.
“Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”
A conhecida frase de Ângela Davis deve ser um mantra, ela precisa não somente ser repetida, mas praticada. Ser antirracista é tomar atitudes concretas contra as injustiças de uma sociedade desigual, é ter uma postura propositiva e reativa contra preconceitos diários e institucionais. É não aceitar violências simbólicas e práticas, se colocar contra opressões, não se acostumar com os bolsões de pobreza e a miséria das cidades brasileiras.
Ser antirracista é denunciar, por exemplo, o racismo direcionado aos médicos cubanos que tanto contribuem para atender populações vulneráveis que vivem em lugares pobres e sem nenhuma infraestrutura no Brasil. Em São Luís, o Deputado Estadual Wellington do Curso (PSDB-MA), constrangeu e intimidou médicos cubanos em uma unidade de saúde na cidade. Os profissionais, que estão na linha de frente do combate ao Covid-19, foram expostos ao ridículo pelo deputado, que os filmou, acusando-os de exercerem ilegalmente a medicina no Maranhão, uma gravíssima atitude, ainda mais em tempos de pandemia.
Não aceitar mitos como o da democracia racial também é ser antirracista, bem como contestar a naturalização das divisões sociais, que camufla as perversidades de uma sociedade violenta, ideologicamente baseada “na exploração econômica, na dominação política e na exclusão cultural”[10]. Ser antirracista é conhecer a história de um país que em mais de 300 anos de opressão ao negro, praticou crimes hediondos e contra a humanidade.
É preciso compreender que o capitalismo neoliberal ao qual estamos submetidos configura-se como um perigoso sistema destrutivo, que visa apenas a acumulação. Ele possibilita uma exposição contínua à violência direcionada às multidões e uma concreta ameaça existencial. A racionalidade neoliberal tenta aniquilar a arena pública dos direitos e da cidadania, enquanto fortalece o espaço privado dos interesses financeiros. Ser antirracista é lutar contra o neoliberalismo.
Voltando às frases da epígrafe, Fanon nos deixa de herança importantes lições: a afirmação do negro como agente ativo da História, que pode se reconhecer enquanto sujeito que possui a capacidade de mudar os rumos de sua trajetória, baseado em suas experiências, na reorganização do mundo e na busca por um novo humanismo.
A busca por ‘libertação’ dos negros no Brasil, em sentido amplo, se dá, permanentemente, na luta antirracista cotidiana. Assim, o 13 de maio de 1888 não pode ser esquecido, porém, em hipótese alguma, merece ser comemorado ou reverenciado.
* Geógrafo, Mestre em Economia, doutorando em Geografia (UFC), membro do Resistência no Maranhão, professor Adjunto do Curso de Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Pinheiro.
Notas:
[1] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008. 193p.
[2] FANON, Frantz. Os condenados da Terra. 3. ed. Lisboa: Letra Livre, 2002. 348p.
[3] SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 694p.
[4] NABUCO, Joaquim. Minha Formação. São Paulo: Editora 34, 2012. 288p.
[5] FREYRE, Gilberto. Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX. São Paulo: Editora Global, 2008. 170p.
[6] COSTA, Yuri. A Transmutação da fala: uso e desuso de testemunhos de escravos nos tribunais do Maranhão Imperial. In: GALVES, M. C.; COSTA, Y (Orgs.). O Maranhão Oitocentista. 2. ed. São Luís: Café e Lápis/EDUEMA, 2015. 269-302p.
[7] Máscara de metal flexível geralmente com três buracos na frente – para olhos e nariz – fechada atrás da cabeça por um cadeado.
[8] SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 273p
[9] NISBET, Robert. História da Idéia de Progresso. Brasília: UnB, 1983. 364p.
[10] CHAUÍ, Marilena. Ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica/Editora Fundação Perseu Abramo, 2016. 221p.
Comentários