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Como retornar à “normalidade”?

Bruno Cecim/Ag.Pará / Fotos Públicas

Ônibus cheio de passageiros passa por barreira sanitária no Pará, que está em lockdown

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

“O mundo inteiro hoje discute um plano de retomada”
Paulo Skaf, presidente da FIESP (1)

Em entrevista à CNN Brasil na última quinta-feira, 14/5, o presidente da FIESP explicitou a posição majoritária do grande empresariado brasileiro, no sentido de forçar a retomada econômica a qualquer custo e o mais rápido possível, a partir de um “plano de retomada”. Em meio a inúmeras outras afirmações reacionárias, como o apoio ao congelamento integral dos salários dos servidores públicos até o final de 2021, Skaf reafirmou posições anticientíficas e coincidentes com as que vêm sendo propagadas por Jair Bolsonaro. Em seu discurso, emerge a ficção completa de um país onde a população já conheceria e respeitaria perfeitamente as medidas de proteção e onde os locais comerciais em funcionamento estariam seguindo corretamente as medidas de proteção e distanciamento. Nada mais distante da realidade do que isto, como evidenciam os terríveis número de contaminação do país. Sua proposta confronta qualquer perspectiva de planejamento, uma vez que propõe que as medidas sejam decididas pelos municípios (cujo poder político é mais diretamente sujeito às pressões empresariais), o que fragmenta e fragiliza as medidas de contenção. 

Há uma única inegável verdade na fala de Skaf: diversos países estão em processo de reabertura. Cabe então compreender que passos estes países seguiram e como construíram condições para isto. Mas antes é imprescindível ter presente a dimensão da tragédia brasileira.

Brasil: uma tragédia construída

O Brasil está hoje no epicentro mundial da pandemia. É o país com maior ritmo de crescimento de casos entre os quinze países com mais casos e mortes, tem, junto com o México, o maior ritmo de crescimento do número de mortes, concentra 70% dos mortos da América do Sul, tem o segundo maior número absoluto de mortes no mundo nos últimos dias e tem o segundo maior número de pacientes internados em estado grave (número que não é atualizado há 20 dias.

A dramaticidade de nossa situação se expressa na altíssima taxa de crescimento do número de mortes e do número de novos casos – que crescem acima de 6% ao dia, a despeito da subnotificação dos casos e subnumerificação das mortes. O número de mortes e o número de casos no Brasil dobraram em 11 dias, enquanto na soma dos números mundiais levaram 27 dias para dobrarem. Chegamos a 15.000 mortes reconhecidas tendo ainda a maior taxa de crescimento de novos casos, o que projeta um maior agravamento da situação nas próximas semanas. Os poucos países que já passaram deste patamar de 15.000 mortes, com exceção dos Estados Unidos, quando o atingiram, tinham já logrado uma substancial redução ritmo de crescimento dos novos casos, o que lhes permitia atravessar os piores dias vislumbrando uma melhora algumas semanas à frente. Além disso, países Itália, Espanha, Inglaterra, França, Bélgica e Alemanha tem concentrada a maior parte dos casos em algumas regiões do país tendo conseguido impedir uma completa interiorização da pandemia. A situação do Brasil neste aspecto é igualmente distinta, aproximando-se muito mais dos Estados Unidos, que vive uma intensa interiorização da pandemia, com múltiplos e crescentes centros regionais. Já são sete estados com mais de 10.000 casos e que concentram 84% dos mortos. Mas na sequência há outros 11 estados (e mais o DF) que tem entre 2.000 e 10.000 casos, uma situação que se aproxima a da maior parte dos estados do primeiro grupo há 20 dias. E os sete estados com menos de 2.000 casos vem tendo também um ritmo de crescimento na maior parte dos casos igual ou superior aos primeiros. Portanto, é inteiramente descabida neste momento a proposta de desmembrar o problema e ter diferentes soluções regionais, retomando as atividades econômicas normais onde há menor número de casos.

As condições para a reabertura econômica

Ao longo da trajetória da pandemia, vislumbraram-se duas estratégias opostas para retomar a normalidade (ou o que em algum momento se passou a designar como uma “nova normalidade”) e alcançar a reabertura da economia. A primeira delas, que influenciou as políticas de diversos países europeus e dos Estados Unidos até meados de março é a chamada “imunidade do rebanho”. Com base em cálculos que subdimensionaram enormemente os índices de letalidade do Covid-19 na China (pressupondo que toda população de Wuhan teria se contaminado, o que se verificou inteiramente incorreto), os governos dos Estados Unidos, Reino Unido, Holanda, Suécia e Bélgica, entre outros, assumiram a perspectiva de que a melhor alternativa era propiciar uma contaminação rápida, que chegasse a 70% da população e a partir disso garantisse sua imunidade e o estancamento da pandemia. Mesmo em países onde isto não foi assumido como política nacional, ensejou ações locais no mesmo sentido, como a campanha Milano no si ferma ou as políticas anti-isolamento social da prefeitura de Guayaquil, que em ambos os casos produziram grandes tragédias. Ainda no mês de março, os drásticos resultados humanos desta política se evidenciaram e a quase totalidade dos governos voltaram atrás, com destaque para as autocríticas públicas de Donald Trump e de Boris Johnson. Entre os principais países, há uma exceção parcial (Suécia) e uma integral (Jair Bolsonaro). O governo sueco admitiu a necessidade de políticas de contenção da pandemia, mas defendeu que estas fossem tomadas “em liberdade” pelos seus cidadãos e não através de medidas impostas pelo Estado. Hoje a Suécia tem a maior taxa de crescimento de casos e mortes entre os países europeus, com 3.646 mortes para uma população de 10 milhões de habitantes, uma taxa de 361 mortes por milhão, que contrasta com os demais países nórdicos, que detém taxas entre 4 e 9 vezes inferiores: Dinamarca (94), Finlândia (54) e Noruega (43). Jair Bolsonaro, por sua vez, confronta o mundo reafirmando, como fez há dois dias, que “Se dependesse de nós, estava tudo aberto e isolamento vertical, e acabou. (…) Se dependesse de mim, quase nada teria sido fechado, a exemplo da Suécia”. (2)

Hoje é possível dimensionar melhor o que significa a política de “Imunidade do rebanho”. Estudos feitos em locais com maior número de óbitos, com testagem ampliada que permitiu estimar o percentual da população contaminada, como Nova York, Espanha e França), coincidem em determinar uma taxa de letalidade que varia entre 0,7% e 1,2%. (3) Tomando o índice intermediário de 1%, isto significa que no Brasil, caso seja possível atingir a “imunidade do rebanho” com 70% da população contaminada (150 milhões), teríamos 1.500.000 de mortos, mais um excedente decorrente do aumento de índice em virtude do colapso do sistema de saúde e mais outro excedente decorrente das mortes por outras causas produzidas pela falta de atendimento. Não pode haver dúvidas de que a política do governo Bolsonaro propõe exatamente isto, como não pode haver dúvidas de que é uma política genocida e que se volta essencialmente contra a população pobre e periférica.

O outro caminho, que começou a ser trilhado muito cedo por países como o Vietnã, a Nova Zelândia e a Coréia do Sul, e com mais atraso e dificuldades pela maior parte dos países europeus, pressupõe um período mais alargado de efetivo isolamento social, onde coletivamente se construam as condições para a reabertura, satisfazendo algumas pré-condições fundamentais: 1) estabilização do número de novos casos; 2) expressiva ampliação da testagem, de forma a ter um quadro nítido e em momento real da situação; 3) esvaziamento dos leitos hospitalares, chegando a uma taxa de ocupação baixa; 4) educação popular, de forma a que se saiba claramente quais são as principais medidas de prevenção individual, como se utiliza a máscara, como se descontamina os alimentos, etc. 

Não é necessário esforço para perceber que estamos a léguas de distância de todos estes pontos. Mas é necessário observar também que as ações de Jair Bolsonaro incidem diretamente em nos afastar cada vez mais das condições para uma reabertura: estimulando o contato social, restringindo o número de testes e disseminando boatos e invenções acerca de remédios milagrosos ou de invenções sem qualquer fundamentação científica (como o “isolamento vertical”), Bolsonaro fala em reabertura ao mesmo tempo em que pelas suas ações concretas torna mais distante qualquer possibilidade de reabertura. É claramente a política de quem aposta no caos para impor uma ditadura.

Como retornar à “normalidade”?

Até que se tenha uma vacina ou um tratamento eficaz, e descartada a política genocida de “imunidade do rebanho”, não é possível vislumbrar o retorno da situação anterior. O que se pode pretender é chegar a uma “nova normalidade” onde progressivamente se retome atividades, mantendo rigorosos cuidados e normas de prevenção. O plano de retomada da Espanha prevê cinco fases: 0, 1, 2, 3, e “nova normalidade” como ponto final. No entanto, parte do país está na fase 0,5 (transição para a 1), e o restante na fase 1, estando apenas algumas ilhas progredindo para a fase 2. Portanto, mesmo em um país que já reduziu significativamente seus índices, reconhece-se a necessidade de prudência. É difícil dimensionar em que medida a reabertura gradual está sendo feita de forma prudente em países como Espanha, Itália e França (que já tem um crescimento das mortes que oscila entre 11% e 13% em 14 dias, contra 137% do Brasil). Menos difícil é identificar que a reabertura no Reino Unido (com taxa ainda de 26% nas mortes, mas de 33% dos novos casos) é precipitada pode produzir uma retomada de mortes e casos.

O Brasil está em situação de suposto “isolamento social” há 50 dias. Se neste período o isolamento fosse efetivo, teríamos já condições para a retomada. Poderíamos ter estancado os novos contágios, esvaziado os hospitais, ampliado a testagem e informado a população sobre as medidas de prevenção individual. Os exemplos da Venezuela, Paraguai, Uruguai e Argentina mostram que, em diferentes medidas, isto é possível, mesmo para países como estes que tem o azar de estar ao lado do maior pária internacional em tempos de Covid-19 e que é responsável, como no caso do Paraguai, pela maior parte dos novos casos (de paraguaios que retornam infectados do Brasil). 

É a experiência que foi trilhada com maior êxito por países que conseguiram, simultaneamente, reduzir drasticamente o número de casos e de mortos, e criar condições para a reabertura econômica. A tabela abaixo compara a situação do Brasil com três dentre estes países: Vietnã, Coréia do Sul e Nova Zelândia, países de culturas distintas e com diferente situação econômica, mas que igualmente foram exitosos no enfrentamento da pandemia.

 

País
Brasil
Vietnã
Coréia
do Sul 
Nova
Zelândia
População
212,4 mi
97,2 mi
51,3 mi
4,8 mi
Total casos
218.223
318
11.037
1.498
Total casos novos
em 15/5
15.305
4
21
0
Total de mortes
14.817
0
262
21
Total de mortes
em 15/5
824
0
2
0
Mortes por milhão de
habitantes
70
0
5
4
Internados
em UTI
8.318
2
55
17
Aumento mortes 30 dias
743%
0
17%
133%
Aumento casos 7 dias
50%
9%
1.6%
0,5%
Total testes por positivo
3.3
859
66
150
Total testes por milhão habitantes
3.462
2.828
14.177
46.486
 https://www.worldometers.info/coronavirus/,
Dados de 15/05/2020 (Sistematização: Gilberto Calil)

O que dizer diante deste quadro? Perdemos 50 dias, em um isolamento sabotado pelo presidente da República, e isto tem altíssimo custo em número de vidas, e igualmente na economia. A situação hoje é muito pior – inclusive na economia, com divulgação no The New York Times de hoje de que consultorias de risco político para investidores e negócios estrangeiros avisaram seus clientes para ficarem longe do Brasil. Bolsonaro enfrenta pedidos crescentes de impeachment e sua popularidade cai“, em matéria sintomaticamente intitulada de “Ministro da Saúde do Brasil sai em meio à resposta caótica do governo à pandemia” [“Brazil’s Health Minister Exits Amid Government’s Chaotic Response to Pandemic”].   (4)

Não há outra alternativa: agora em condições muito piores, o único caminho para os que seguimos recusando a política genocida que propõe produzir ao menos 1 milhão e meio de mortos, é, ainda que de forma tardia, reproduzir as políticas exitosas destes países, exato oposto do que vem propondo e fazendo o governo Bolsonaro.

 

 

NOTAS

1 – Reportagem da CNN: “Paulo Skaf defende delegar medidas de reabertura a prefeitos” 

2 – Idem

3 – Estas pesquisas são discutidas por Átila Iamarino neste link do site de Drauzio Varella e em www.youtube.com/watch?v=lOkuCd51v5g

4 – New York Times, 16.5.2020, p. A5