As metáforas

Celso Eduardo Lins de Oliveira*, de São Paulo, SP
Reprodução

Churrascos, passeios e lanchas, símbolos de prazer, lazer ou de posição social. As infiltrações e rachaduras que aparecem no tecido social brasileiro vão me fazendo refletir sobre as metáforas embutidas no mundo compartilhado das redes sociais, desnudando os meandros de uma elite econômica cada vez mais bruta e ignorante.

Graças às redes sociais podemos ver “ao vivo” os movimentos orgulhosos de parte de uma classe média perdida em seus devaneios de poder. Para entender este fenômeno precisamos do distanciamento do tempo, avaliar as consequências históricas e ter a visão do todo como nos conta Yuval Harari em Sapiens, quando narra a invasão de Cortés ao império Asteca. Cortés tinha pouco mais de 500 homens e já havia passado por várias invasões menores nas ilhas do que hoje chamamos Caribe, “Então quando ancorou naquela praia ensolarada em julho de 1519, Cortés não hesitou em agir, Como um alienígena de ficção científica saindo de sua espaçonave, ele declarou aos locais boquiabertos: “Nós viemos em paz. Levem-nos ao seu líder…” Cortés estava mentindo, a história que conhecia, sua formação e sua índole já diziam tudo sobre suas intenções, porém os Astecas nada sabiam sobre Cortés ou sobre a Espanha e, como seus hábitos civilizados e educados exigiam, os Astecas levaram o alienígena a sua capital, onde Cortés com uma força de soldados bem equipados, quando comparados com os locais, mas em número infinitamente inferior, sequestraram o poder e usando do conhecimento e da estrutura do Estado e Governo Asteca iniciaram sua dominação.

Continua nos contando Harari: “…No entanto, a essa altura várias rachaduras haviam aparecido no edifício imperial (Asteca) Cortés usou o conhecimento que havia adquirido para forçar ainda mais as rachaduras e destruir o império de dentro para fora.”

Convenceu muitos súditos do império a se unirem a ele contra a elite asteca. Os súditos calcularam mal. Eles odiavam os astecas, mas não sabiam nada sobre a Espanha nem sobre o genocídio no Caribe. Presumiram que, com a ajuda espanhola, poderiam abalar a influência asteca. A ideia de que os espanhóis assumiriam o poder jamais lhe ocorrera. Eles tinham certeza de que, se Cortés e suas poucas centenas de escudeiros causassem algum problema, poderiam ser subjugados facilmente…” As consequências deste namoro de uma parcela insatisfeita da população com uma liderança dominadora e mal intencionada sabemos muito bem onde levou, mas o autor nos esclarece da seguinte forma: “… Os sobreviventes se encontravam sob o domínio de um regime racista e ganancioso que era bem pior que o dos astecas. ”

Talvez esta lição tenha sido pouco estudada, pois no início do século XX a ascensão do nazismo nos mostra traços de similitude, como escreveu Hannah Arendt: “Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime”.

Nada foi mais claro neste sentido do que este domingo, 10; dia do churrasco marcado pelo presidente, cujo nome não escrevo para que dele não reste nem história. Este, em sua ironia sobre os milhares de mortos, cuja imensa maioria é de pessoas com menos recursos, nos postou a metáfora perfeita ao encontrar-se com um grupo de pessoas fazendo seu churrasco numa lancha no lago Paranoá.

O presidente chegou ao poder com o apoio cordial das instituições democráticas, travestido na sua formalidade polida, na “educação e bons modos”. Eleito com o discurso de combater o “Sistema” disseminado por um grupo talvez pequeno, mas bem armado, de robôs nas redes sociais, ao contrário dos astecas, conhecemos seu passado, sua história e seu pensamento.

Só para deixar claro para os que lerão isto fora do contexto atual, o Brasil registrou mais de 10 mil mortos pela COVID-19; a recessão econômica é certa e o desemprego tem índices para lá de alarmantes.

Feito o quadro vamos a metáfora onde um pequeno grupo da Elite que para não sofrer com qualquer tipo de inconveniente pela quarentena pedida à população, usa de seus bens preciosos de status e poder “a lancha, a carne” para fazer um churrasco utilizando um bem público ao qual a maioria da população não pode ter acesso, “o lago”. Este grupo adula e é adulado pelo presidente que, com um segurança armado (escudeiro), pilota uma moto aquática (outro símbolo de status que se não fosse pelos anos de flerte com o poder e a apropriação do que é público ele não teria acesso). O “Brazil” não quer reconhecer o Brasil, diria Aldir Blanc.

Tudo isso enquanto outros que aderiram a ilusão de fazer parte desta “Classe média”, mas não foram convidados para o churrasco, desfilam seu ódio aos astecas, ops, às  instituições que representam o poder em praça pública, à qual tem acesso, mas sem os privilégios que seus alvos acumulam e sem serem incomodados pela polícia, situação contrária à vista ao longo do ano passado quando forças de segurança foram  colocadas para evitar as marchas populares na Esplanada. Gritam seu ódio não ao genocídio à sua volta, mas ao “sistema”, aos astecas.

Esta constatação à luz das redes sociais  que, em tempo real, nos mostram as caras felizes de uns e de outros, nos traz uma duvida: será ironia acreditar que não precisarão ou que terão um respirador?! O ar que eles acreditam respirar não é o que nos cerca, não é o ar dos trabalhadores que não tem o conforto da geladeira cheia ou a certeza da vaga de UTI; é um ar virulento não de coronas, mas de medo, de ignorância e raiva. Medo de perder o que nunca tiveram, ignorância de saber que nunca tiveram, e raiva de nunca terem tido: a lancha, o lago, o aperto de mão do presidente, o afago dos ricos, do poder, o acesso dos privilegiados, o privilégio de fazer parte da sociedade de consumo.

Como os espanhóis e portugueses não se importaram com a mortandade dos nativos americanos e sua necropolítica foi um instrumento de dominação, pois ao final substituíram sua mão de obra pela negra escravizada, a elite do capitalismo mundial também não se importa com os mortos da COVID-19. Os que não são consumidores nunca existiram na lógica do capital, e os empregos perdidos são substituídos pelo “empreendedorismo de si mesmo” estimulado pelos governos. A industrialização, força de geração de trabalho no século passado, que está distribuída onde a mão de obra é mais barata e as leis ambientais mais brandas, desloca as vagas de emprego de país em país, e o neoliberalismo escancara então sua face não na internet, não nas redes sociais, mas na vida real nas ligações atômicas da sociedade, nas famílias, na religião, na educação…

A esta altura minha querida leitora e meu querido leitor, você pode estar pensando que preferia não ter lido isto e em seu lugar assistir uma série na Netflix, ou quem sabe “O Poço”, mas não sejamos como os povos dominados pelos astecas, que não sabiam quem eram e o que queriam os espanhóis.

Nós sabemos, sabemos que Chaplin estava certo ao retratar em “Tempos Modernos” o operário entre as engrenagens da fábrica. O neoliberalismo flertando com o fascismo no Brasil só quer nos colocar presos nas engrenagens de um modelo econômico concentrador, explorador e opressor. Não podemos, jamais, acreditar que por sermos a maioria e a Constituição nos abrigar, isto não vai acontecer. Toda forma de posicionamento contrária a este modelo deve ser feita.

Desde o Impeachment até a reforma política, nenhum centímetro de licença ou de inocência para o retorno a regimes menos democráticos que o atual, a um Estado menor que o atual, a uma cultura popular ou uma política ambiental menor que a atual, aos diretos dos povos indígenas e quilombolas menores que os atuais…

Quero um mundo maior para que as mortes de hoje não sejam em vão. Para isto, a cooperação é o lugar a ser aberto. Não deixemos os fascistas gritarem mais alto contaminando nosso ar de vírus e medo. Não é hora de silêncio, não é hora de acomodação é hora de recusar a metáfora e entender a história, é hora de acreditar.

Viva o Povo Brasileiro.

 

*Celso Eduardo Lins de Oliveira é professor do Departamento de Engenharia de Biossistemas da USP.