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Tornar-se mãe em tempos de pandemia

Politiza

Jovem e mãe, Iza Lourença é feminista negra marxista e trabalhadora do metrô de Belo Horizonte. Eleita vereadora em 2020 pelo PSOL, com 7.771 votos. Também coordena o projeto Consciência Barreiro – um cursinho popular na região onde mora – e é ativista do movimento anticapitalista Afronte e da Resistência Feminista.

Estar grávida ou puérpera em meio ao colapso do sistema de saúde, crise econômica, desemprego, sem uma rede de apoio presencial e fazendo parte do grupo de risco. É preciso falar do nível de vulnerabilidade e ansiedade que milhares de mulheres estão vivendo no país com a pandemia e a crise sanitária, política, econômica e (por que não) humanitária. A defesa dos nossos direitos reprodutivos, também é garantia do direito à vida.

Se já vivemos em uma cultura de isolamento social da grávida e recente mãe, jogando no colo dela a responsabilidade da reprodução familiar que deveria ser coletiva e social, em tempos de quarentena esses aspectos se tornam praticamente obrigatórios para todos nós. As avós, tão necessárias nesta rede de apoio, ou moram com os netos ou só os conhecem e convivem por fotos e vídeo-chamadas. 

Sem conseguir acesso ao pré-natal pelo sistema de saúde público, ou até por medo de ir ao hospital, as mulheres também ficam sem informações de um profissional de saúde sobre o próprio Covid-19 na gravidez ou para o recém-nascido. Mesmo as que conseguem garantir suas consultas, estão muito menos assistidas e com menor frequência do que em tempos normais ou ideais. 

Da mesma forma, a contracepção também não é uma possibilidade tão simples assim. Segundo a própria Organização Mundial da Saúde, o direito à contracepção deve ser respeitado independente da crise do Covid-19, mas os governos no Brasil aproveitam da pandemia para cortar toda e qualquer procedimento “não urgente”. Cortam procedimentos contraceptivos do sistema de saúde no momento em que é mais preciso evitar a gravidez. Nada de novo, já que a ministra Damares, bem antes do vírus chegar ao Brasil, já defendia como política pública para evitar a gravidez indesejada na adolescência a abstinência sexual. Como sempre, os direitos reprodutivos das mulheres estão em risco. Em meio a toda essa crise, precisamos garantir a continuidade de atendimentos pré-natal, neonatal, contracepção e aborto legal. Em um contexto de caos sanitário, esses atendimentos ajudam a salvar vidas, já que a consequência direta seria o aumento da mortalidade materna e neonatal.

A pressão pela cesariana se intensifica. Uma opção para evitar o parto em uma crise mais aguda do vírus no país, mas é importante afirmar que não há justificativa clínica para isso. Inclusive, marcar cesarianas ou induzir o parto sem necessidade é menos seguro, uma vez que há maior tempo de internação. Além disso, uma cirurgia exige maior aglomeração. Os blocos cirúrgicos para a cesariana em geral concentram quase dez profissionais e o uso superior de EPIs, que seguem escassos nesse momento.

Imagine passar pelo parto sem direito a um acompanhante. Essa está sendo a realidade de hospitais em muitos países, que vem adotando essas e outras medidas restritivas para parturientes. A violência obstétrica com certeza se intensifica nesse momento. A crise da saúde não pode ser uma justificativa para violação de direitos das mulheres.

O projeto de extensão da UFMG chamado Sentidos do Nascer tem buscado fazer o debate sobre os direitos reprodutivos e o parto cuidadoso, baseado em evidências e práticas humanizadas. A iniciativa, composta por uma equipe multidisciplinar de saúde e educação, foi idealizada pela pediatra e epidemiologista Sônia Lansky e pelo historiador e professor da Faculdade de Educação da UFMG Bernardo Jefferson de Oliveira. Recentemente lançaram uma série de recomendações para a atenção e atendimento à saúde das mulheres grávidas. Além de reivindicar o direito ao acompanhante, tomando precauções, e ser contrário a cesária desnecessária, ou seja, sem indicação clínica, apontam o parto domiciliar como uma saída. Com planejamento e reorganização dos atendimentos para existir retaguarda hospitalar, a maioria dos partos poderiam ser realizados em casa, diminuindo o risco de infecção da mulher, bebê e acompanhante. Os partos domiciliares planejados realizados pelo Hospital Sofia Feldman demonstram que é possível esse atendimento pelo SUS. A própria Defensoria Pública de Minas Gerais endossa grande parte dessas recomendações, inclusive para a rede particular.

O aprofundamento da desigualdade social e as famílias brasileiras 

As projeções para o futuro ainda são inimagináveis. Seja para os direitos das mulheres trabalhadoras, mas também de seus filhos no mundo todo. Segundo a Unicef, antes mesmo da pandemia interromper a imunização, mais de 13 milhões de crianças já estavam sem acesso a nenhuma vacina. Se as crianças não morrerem pela infecção do vírus, podem haver novos fatores para o aumento da mortalidade infantil com o colapso do sistema de saúde como sarampo, cólera, poliomielite. Em Minas Gerais, por exemplo, vivemos uma epidemia de dengue com um aumento de 10% em relação ao ano passado, totalizando quase mil e novecentos casos só em Belo Horizonte.

No Brasil, aqueles que já tinham dificuldade em acessar saneamento básico seguem ainda mais vulneráveis. É o que observamos nas favelas, vilas e comunidades sem acesso a água e sabão, mesmo que a prevenção mais básica contra o vírus seja lavar as mãos com frequência. O que demonstra porque a taxa de mortalidade no país é tão alta. Em São Paulo, por exemplo, o risco de mortes por Coronavírus é 62% maior entre os negros em relação aos brancos.

Quem estava com dificuldades de alimentar sua família, voltou a cozinhar a lenha por culpa da política de preços abusivas do gás e combustíveis, agora vive ainda mais na incerteza. Em 2019 Bolsonaro dizia que era mentira que as pessoas passam fome no Brasil, mas os dados de segurança alimentar ainda de 2016 já apontavam que 15 brasileiros morrem de fome por dia. As crianças são o grupo mais vulnerável. Com as escolas fechadas e o governo se negando a garantir a alimentação dela e de suas famílias, a desnutrição pode ser um outro fator de aumento da mortalidade no país.

Com a pandemia, a vulnerabilidade das mulheres e famílias das comunidades aumenta consideravelmente e aprofunda a desigualdade social. Consequentemente, pensar em construir hoje um futuro novo, que supere o momento anterior, é transformar toda uma sociedade e um sistema que nos trouxe até essa situação. O capitalismo, combinado com as suas crias de governos neoliberais, de extrema-direita e neofascistas, aprofundam os ataques às mulheres na esfera do mercado de trabalho com a retirada de direitos como a reforma da previdência, a trabalhista, a informalidade, o aumento do desemprego, o rebaixamento de salários. Mas não deixa de nos negar também os direitos reprodutivos e à vida. Nossos corpos estão na mira e querem controlar quando, como, onde, porque teremos nossos filhos e em quais condições podemos criá-los. 

Solidariedade e organização das trabalhadoras sempre foram o caminho

Nas comunidades, as mulheres historicamente só podem contar com as outras mulheres. Sem vaga na creche, a necessidade de trabalhar e alimentar a família não espera. Por isso, as crianças ficam com as avós, tias, vizinhas. Enquanto saem para trabalhar em outras casas, criando outras crianças, garantem a reprodução da sociedade em todos os níveis. O custo de uma fralda para mulheres que lutam cotidianamente pela sobrevivência, trabalhando na informalidade, sem saber quanto terá no bolso ou na mesa na semana que vem, é incrivelmente alto.

Foi pensando nisso que o Cursinho Popular Consciência Barreiro, conjuntamente com o Afronte MG e o Manifesta MG, está fazendo uma campanha de solidariedade para ajudar 30 mães em situação de vulnerabilidade no Barreiro, periferia de Belo Horizonte. Além de recolher doações de roupinhas e artigos de bebês, também estão fazendo um levantamento financeiro para comprar produtos de higiene para as recém mães e seus filhos. Saiba como ajudar na pagina @bhficaemcasa

 

Não queremos voltar a “normalidade”! Ela já não será mais possível

Precisamos construir uma nova forma de fazer política. Atuando em campanhas solidárias nesse momento, sem deixar de apresentar uma saída global para as mulheres trabalhadoras que estão sendo massacradas, junto com seus filhos e companheiros, nas periferias do Brasil. Só assim é possível derrotar e desmoralizar o projeto do golpismo autoritário do bolsonarismo. Precisamos reverter a lógica dos lucros valerem mais que nosso direito à vida. 

A taxação das fortunas bilionárias, construídas com sangue e suor do povo preto e trabalhador, é um primeiro passo para investir no que é de mais imediato para combater a pandemia. Aumento do investimento no futuro com a valorização do SUS, acesso à educação pública e saneamento básico, combinados com a valorização do salário, oferta de empregos formais e garantia de direitos democráticos é a ponte para construção de um novo futuro. Seguimos na luta. Afinal, somos a maioria.