Morto! Não pertencia mais àquele lugar. Era preciso atravessar Aqueronte, o rio da dor, e singrar do mundo dos vivos para o dos mortos. Apenas Caronte, barqueiro dos mortos, fazia a viagem entre as margens, atravessando as almas. Pôs-se a caminho. Chegou ao rio da dor, vislumbrou imensidão de almas em sofrimento. Gemiam e se contorciam, enquanto fitavam com olhos taciturnos a outra margem, o mundo dos mortos. Sofriam, mas não atravessavam. Não atinou com a razão, sequer pensou no fato. Como ingressavam as últimas almas para mais uma travessia, acelerou o ritmo e buscou embarcar. Não conseguiu. Viu-se bloqueado, antes que seus pés tocassem o interior da embarcação. Fora impedido por Caronte que lhe cobrava o óbolo, a moeda de pagamento. Lembrou que os vivos, temendo que as almas voltassem para atormentar, colocavam moedas na boca dos mortos para o pagamento do barqueiro da morte. Explorou em vão a própria boca, não havia óbolo, apenas o vazio. Crivado de espanto, entendeu, de súbito, seu destino. Graças à mesquinhez de Caronte, eternamente preocupado com o dinheiro, seria mais uma das pobres almas que, não podendo pagar a travessia, vagaria e agonizaria por eras às margens do rio da dor.
Quantas destas mortes cabem a Bolsonaro? Seria justo colocar na conta do presidente todas as almas brasileiras que atravessarão o Aqueronte?
Muitas almas sairão do mundo dos vivos durante a pandemia do Covid-19. Quantas destas mortes cabem a Bolsonaro? Seria justo colocar na conta do presidente todas as almas brasileiras que atravessarão o Aqueronte? Seria correto ignorar que diversas mortes terão relação direta com a política de morte (necropolítica) do presidente? Consideremos essas questões detalhadamente.
Todas as mortes decorrentes do Covid-19 podem ser atribuídas a Bolsonaro? Todas, não! O vírus não tem relação direta com o presidente, apareceu no mundo e segue produzindo mortes globalmente. Mas a política de enfrentamento ao vírus, que cabe ao presidente, vai resultar em mais ou menos mortes, dependendo do acerto das medidas adotadas. A OMS e todos os países ao redor do mundo têm trabalhado com o isolamento social horizontal buscando “achatar a curva” com resultados importantes na prevenção de mortes. Países que pensaram diferente, como Itália, Reino Unido e Estados Unidos, se curvaram à realidade e acabaram por adotar o isolamento social.
Bolsonaro, por sua vez, insiste em salvaguardar apenas as pessoas do grupo de risco e incentiva o contágio acelerado, sob a equivocada premissa de que isso preservará a economia. A política adotada pelo presidente provoca um pico acentuado de internações e mortes que extrapolará a capacidade de atendimento do sistema de saúde. Assim, todas as mortes que vierem a ocorrer em razão do número de pacientes exceder a capacidade do sistema caem na conta da necropolítica do governo. Sem mas, nem meio mas, as mortes decorrentes da incapacidade de atendimento, são mortes que cabem a Bolsonaro!
Ah, e o PT? Questão válida! Podemos culpar a fragilidade do sistema de saúde decorrente de governos anteriores? Sim, podemos e devemos, pois há muito o SUS agoniza com políticas de baixo investimento. Críticas merecidas foram feitas aos presidentes anteriores por investir pouco e sucatear o SUS quando governavam o país. Agora, temos outro presidente e são as políticas dele, sem desconsiderar o país que recebeu, que reduzirão ou ampliarão o número de mortes. Contudo, é necessário lembrar que a atuação do governo Bolsonaro desde que assumiu não se direcionou a resolver os problemas existentes e fortalecer o SUS, ao contrário, sempre buscou reduzir ainda mais os investimentos em saúde.
Para Bolsonaro e Guedes, se gasta demais com a máquina pública, incluída a saúde. A política neoliberal de enxugamento do Estado, reduzindo o investimento em saúde (equipamentos, insumos, pessoal…), limitando os gastos com a área social (conforme a malfadada Emenda Constitucional 95), entre outras ações, mostram que a política deste governo pegou um sistema frágil e o fragilizou ainda mais. O ministro da Saúde, Nelson Teich, alinhado com o presidente, ao falar da compra de respiradores para o período de crise, disparou: “O que você vai fazer com eles depois?” Ou seja, salvar vidas não é importante, evitar gastos com equipamentos, é. Então, sim, há culpa de governos anteriores, mas este governo, ao avançar em sua política neoliberal, destruindo o SUS e reduzindo profissionais e recursos, limita ainda mais a capacidade de atendimento da saúde. Então, as mortes que ocorrerem por exceder a capacidade de atendimento do sistema de saúde são mortes que cabem a Bolsonaro.
É preciso considerar ainda as ações de Bolsonaro que auxiliaram a dispersar o vírus, fazendo a curva acelerar e o número de casos estar acima da capacidade do sistema de saúde. O presidente atuou como dispersor do vírus através dos atos e marchas que convocou e apoiou; do incentivo permanente para que as pessoas fossem para as ruas; do espetáculo midiático quase cotidiano de não cumprir as recomendações do ministério da Saúde e da OMS; dos discursos direcionados aos autônomos e pequenos empresários de que deveriam voltar ao trabalho. Além disso, é razoável considerar a hipótese, muito provável, de que estando e se sabendo contaminado (nunca permitiu a divulgação do resultado do seu exame para a Covid-19), Bolsonaro tenha dispersado direta e intencionalmente o vírus ao contatar pessoas, incluindo apoiadores e membros do governo. Todas essas ações do presidente contribuíram para a aceleração da curva de contágio e, assim, as mortes que vierem a ocorrer porque o contágio foi acelerado, ultrapassando a capacidade de suporte, cabem a Bolsonaro!
Apenas as mortes do Covid-19 podem ser atribuídas a Bolsonaro? Não, afinal quando a capacidade de suporte do sistema tiver sido ultrapassada, qualquer pessoa em qualquer emergência (acidente de trabalho, atropelamento, fratura, avc…) não poderá ser atendida prontamente pela falta de leitos, equipamentos e profissionais. Portanto, Bolsonaro é culpado por todas as mortes, mesmo aquelas não oriundas do Covid-19, decorrentes da falta de atendimento que venha a ocorrer nos momentos em que a demanda ultrapassar a capacidade de suporte do sistema.
Além disso, é necessário recordar que, junto com Guedes, Bolsonaro é o dono do cofre da União. Cofre que eles buscam manter fechado para o povo, embora fique escancarado para o capital rentista (ao qual destinaram mais de 1 trilhão de reais logo no início da epidemia). Para a população, liberações a conta-gotas e a contragosto associadas às ameaças de que, sem o suporte da União, estados e municípios irão quebrar enquanto tentam salvar vidas. Bolsonaro ameaça deixar os gestores estaduais e municipais em condição de penúria, em vez de assumir políticas de resgate econômico para que possam funcionar em tempos de crise e salvar vidas.
O saldo desse cômputo é o número de mortes que cabe a Bolsonaro e aos bolsonaristas que apoiam a política de morte. Não importa que diga “E daí?”, “Não sou coveiro”, “Quer que faça o quê?” ou “Eu sou Messias, mas não faço milagres”, qualquer pessoa que venha a morrer porque o colapso do sistema não permitiu o atendimento adequado, morreu porque o presidente implantou uma necropolítica onde a economia e o interesse dos grandes rentistas está acima da vida humana. Tal qual Caronte em sua mesquinhez, Bolsonaro, preocupado apenas com o dinheiro, condenará muitos a sofrerem às margens do rio da morte. Então, durante a pandemia, qualquer um que venha a perder um parente ou um amigo por conta da saturação do sistema de saúde pode dizer sem medo de errar: “Essa morte cabe ao presidente Bolsonaro!”
* Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
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