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BRASIL

“É tudo muito ‘você que lute’, sabe? […] era possível a gente ter ficado mais resguardado”, desabafa enfermeira infectada com covid-19

Conheça a história de Aline, servidora pública, enfermeira, mãe, filha e profissional da saúde infectada com Covid-19

Relatos da Linha de Frente

Grafite de Jackson Brum em, Porto Alegre, RS

“Eu precisei de um tempo para pensar.. porque a gente vai fazendo as coisas tão no automático   típico do ser enfermeira  ficamos tão acostumadas a abrir mão para cuidar, e tão preocupadas em cuidar que quando a gente para pra pensar a prática e o cotidiano de cuidado, a gente precisa se rever em vários aspectos, como mulher, mãe, filha, irmã. O meu cotidiano de enfrentamento [à pandemia] tem sido um cotidiano muito duro no sentido de ser uma mulher extremamente combativa e me ver impotente, e ser uma mulher para quem as injustiças doem, as opressões me sufocam de várias maneiras. 

Neste momento, trabalhar na emergência tem sido uma das maiores experiências da minha vida de ver como somos negligenciados como força de trabalho, como seres humanos, nas necessidades que temos. Eu me sustentei dentro dessa emergência com a seguinte missão: A minha ideia era fazer todo o possível para que meus amigos não adoecessem. E para isso eu montei fluxo, conversei com as chefias, mostrei que a realidade que vivemos todos os dias lá é de exposição do ser que cuida (Enfermeiras, técnicos de enfermagem, maqueiros), exposição às inúmeras situações de humilhação o tempo todo. 

A primeira escolha difícil que eu fiz para continuar cuidando, foi escolher proteger a minha filha, com a qual eu tenho uma relação extremamente amorosa, zelosa, cuidadosa, onde ela cuida de mim e eu cuido dela (ela sabendo que eu sou a mãe e ela a filha).

Uma filha que insistia em dormir comigo na minha cama, apesar dos perigos, de me abraçar quando eu chegava do plantão. Então acho que a primeira grande dor que eu senti, uma dor real, foi um dia que eu cheguei do plantão de manhã e ela veio me abraçar e eu tive que fazer o movimento de me esquivar. Eu comecei a chorar e eu chorei muito, na mesma hora, e ela chorou muito também. Aí eu falei: “não dá mais. Você precisa ir para um lugar onde fique segura”. Foi quando eu fiz a opção de pedir à minha mãe. E foi uma coisa que meio que fluiu naturalmente porque eu não tenho essa relação com minha mãe, eu não tinha. Ela fala que hoje em dia a gente se reencontrou. 

Mas a minha maternidade foi sempre muito solitária. E no primeiro final de semana que minha  filha foi pra casa da avó, minha mãe falou pra mim: “Eu a partir de agora vou assumir os cuidados dela para você fazer o que você acredita que tem que fazer”. Isso me deu um alívio amoroso, de saber que as duas sempre se cuidaram muito bem, de saber que minha mãe maior de 70 anos não ia ficar sozinha, e que ela e a neta iam criar essa rede de proteção entre elas. E aí eu pude olhar direto para os cuidados de enfermagem. E tem sido muito doloroso, porque é de uma mesquinharia as coisas que a gente tem vivido… logo na primeira semana eu criei uma alternativa para que enfim se abrisse o Centro do tratamento intensivo CTI do Hospital do Câncer 3 – HC3 (O Instituto Nacional do Câncer tem várias unidades), um lugar ocioso, com 6 leitos. E a primeira resposta foi não, “o diretor não tem interesse de fazer isso”.

Fiquei insistindo, brigando muito, porque aquela emergência não tem estrutura física para dar conta dos pacientes que chegariam e isso está se provando hoje.  Com sete dias depois mais ou menos, esse CTI começou a ser estruturado, organizado para que em algum momento ele receba esses pacientes. Mas é tudo muito difícil…há uma “fala de corredor “que o diretor do HC3 não quer paciente COVID dentro do hospital. E isso é apoiado por alguns médicos que dizem que algum hospital do INCA deve ser livre de COVID. O INCA tem senso de realidade alterado sobre sua importância No afã de ter o HC3 ser supostamente livre de COVID o Serviço de Pronto Atendimento foi sobrecarregado, tão sobrecarregado que num determinado momento do dia 17/04 tinham 5 pacientes positivos. Eu saí de manhã, passei plantão com três pacientes positivos e durante o dia um internou e chegaram mais três. 

Tem uma paciente internada em condições sub-humanas, ela é obesa mórbida, não consegue mudar de posição na cama e ela fica sozinha naquela sala, não tem TV, ela não levou o celular, ela fica o tempo todo olhando para a parede, com aquela luz o tempo todo ligada, uma paciente com distúrbios psiquiátricos e tendências suicidas, então isso me angustia demais. Eu tempo todo entro, converso, eu tento apagar essa luz e ela me diz: “eu tenho medo, eu tenho medo dessa luz apagada”…é o medo de várias coisas que essa escuridão representa né? o medo da solidão, da morte..Ela internou dia 16 e não foi regulada por que o sistema já estava sobrecarregado. Por 2 plantões eu a encontrei lá. Dessa última vez já com uma piora clínica, já saturando pior…e como se isso não bastasse eu comecei a encontrar amigos adoecendo, e nenhum apoio. nenhum apoio de nenhuma direção…. houve um desentendimento entre a direção das unidades 3 e 4 do INCA e a solução foi aumentar o nosso trabalho. Foi criar triagens diferentes para a mesma equipe por que não quiseram pagar os adicionais de plantão necessários para ter uma equipe mínima para esse atendimento e isso é um absurdo. Hoje nós temos 3 salas para o atendimento de paciente COVID, uma do HC4 e duas do HC3, tudo é separado, e a gente com uma equipe só, tendo que se dividir.

 

Eu me sinto muito sozinha, tenho chorado muito nos últimos dias, porque é uma solidão em vários níveis ne? De não ter minha filha em casa, de não ter um parceiro, a solidão de falar sozinha, de mostrar que nós vamos adoecer e isso não chegar a ouvido de ninguém e não ser dada nenhuma importância isso. É a solidão de ver sua chefia racionando máscaras, dizendo que você numa porta de entrada, numa emergência, tem que fazer a sua máscara durar 6 horas, quando isso te coloca em risco. É a solidão de você saber que a despeito de qualquer trabalho, de todo esforço que você faça, você por exemplo não conta com o adicional de insalubridade no teto máximo, que é o que deveria estar posto hoje para a equipe de saúde, e principalmente para as enfermagens de emergência. Então é muita solidão, eu desde sábado – para para chorar – comecei a apresentar sintomas. Eu já tenho duas colegas positivadas. A minha chefia as afastou na sexta-feira. Eu desde sábado tive calafrios, febre, dores…e ontem fui para o plantão e durante a noite a mesma coisa…e outro colega, um colega que começou os atendimentos comigo, um técnico de enfermagem extremamente competente…o Ivo Carvalho, um parceiro, também apresentando os mesmos sintomas, com a mesma data de início que eu, sábado. E nós trabalhamos essa noite toda, de máscara. Ambos com calafrio…ele taquicárdico, com dor de garganta. eu com dor de cabeça, mal conseguindo me movimentar com dor no corpo. 

 

Ao amanhecer eu solicitei o teste, não tem previsão, depende de uma direção aprovar…e o Ivo ia dobrar o plantão, então eu mesma, mesmo não sendo chefe do setor, fui atrás disso, de mostrar que ele não tinha condições de ficar no plantão e ele foi liberado.

Então agora a gente tem reafirmada a orientação de que o servidor com quadro gripal precisa se afastar por 7 dias e durante esses 7 dias, dar um jeito de fazer o teste, e se der negativo voltar ao trabalho, e se der positivo ficar 14 dias afastado.

 É tudo muito: “você que lute, sabe?”. Então eu tô primeiro sentindo uma sensação de incapacidade, de frustração, de não ter conseguido fazer as coisas acontecerem, porque era possível a gente ter ficado mais resguardado, era possível terem sido mais generosos com a gente, era possível as coisas terem acontecido de uma outra maneira, mas sob essa lei de “eu preciso que vocês produzam, eu preciso que vocês se calem”… a gente tá sofrendo.

 

Eu como mãe, estou me sentindo…. nem sei dizer…queria muito poder abraçar minha filha mesmo, abraçar…. eu tenho doença crônica, tenho lúpus. Então assim como a paciente  convive com os medos dela trancada numa sala insalubre, emocionalmente insalubre, eu confronto meu medo de piorar, de acabar tudo e de não conseguir abraçar minha filha, minha mãe, nem meu irmão…. É uma sensação de solidão abissal.

 

Essa coisa da solidariedade…vai só até a página dois. Ninguém nunca veio aqui me perguntar se eu tava precisando de um copo de água, de um prato de arroz, porque eu tava exausta de tanto trabalhar….pelo contrário, eu tava tendo que dar conta da duda, tentando ajudar minha mãe….então acho que falta amor entre as mulheres, entre os seres humanos…falta carinho da pessoa ver que você postou 38 graus de febre, que você tá esperando o teste e de ninguém falar que vai ficar tudo bem. 

Eu escutei isso da minha mãe, do meu irmão…, mas essa hora você sente uma solidão muito grande…onde estão as pessoas? Uma coisa que eu aprendi nessa vida é que as trocas precisam ser justas…eu sempre dei demais, sempre dou demais, e o retorno amoroso é muito curto, muito pequeno. As N95 (máscara para proteção) são contadas, os capotes são contados, a gente tem que ficar pensando como usar, porque tem que poupar e os afetos são escassos também….

A fala é de que cada vez vai chegar mais paciente e temos que dar conta sem pensar nos danos que isso causa para além do corpo. 

Então hoje é o meu terceiro dia de sintoma, tenho uma preocupação entre o quinto e o sétimo…to fazendo de tudo para chegar bem lá. Já lavei louça…já limpei geladeira, banheiro…já apliquei reiki, já iniciei vibração de chama verde para mim, para o mundo, para as pessoas que confiam em mim, que estão doentes, que mandaram seus nomes para orações…eu sou espiritualista. Então to fazendo tudo isso…hoje a noite talvez seja o dia de escrever minhas cartas, cartas com meus desejos, nunca tive medo disso (da morte), sou paliativista na veia, a morte para mim é só um transcender… 

 

O que me dói são as saudades de tudo o que eu já vivi, do que eu nunca vivi…o que dói é saber que a gente vai lá pra frente, dá a cara a tapa, mas os interesses do capital, os interesses políticos dentro desse instituto, se sobrepõem a qualquer possibilidade de humanidade e de humanização. mas eu tô aqui, tô na luta, ainda sigo na esperança de que a gente, ao invés de receber doação de chocolate, a gente receba doação de máscaras e materiais de proteção, parcerias, apoios, alguém que diga para  esse diretor que ele não está brincando de organizar o condomínio dele, que ele precisa pensar no bem-estar dos servidores que ainda estão lá. Eu ainda tenho esperança e eu espero que o que quer que aconteça comigo não seja em vão, sabe?

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O relato acima é da enfermeira Aline Melo, que estava trabalhando arduamente no Instituto Nacional do Câncer (INCA) desde o início da pandemia da covid-19.  A primeira conversa com a profissional foi no dia 17 de abril de 2020.  

Após alguns dias, retomamos o contato com a Aline que confirmou o teste positivo para a doença (exame que só conseguiu realizar após pressão). Atualmente, Aline  está de licença médica por 14 dias —  direito assegurado para ela enquanto servidora pública da esfera federal.

Até que tudo isso acontecesse, a trajetória foi exaustiva. Por quê?

Aline, infelizmente faz parte do símbolo da luta dos profissionais de saúde, sobretudo, as mulheres que estão doando tudo de si para cuidar do outro (e, infelizmente, esse cuidado custou-lhe a própria saúde, a distância da filha e uma situação de risco ainda maior por conta da doença crônica que ela já trata).

Lutar é verbo presente no cotidiano de quem está no serviço público no Brasil, seja pela manutenção dos serviços, pela manutenção dos direitos trabalhistas ou condições de assalariamento. 

Faz tempo que os profissionais lutam pelo óbvio. Desde a conquista por saúde universal e pública, na década de 80, aos dias atuais, a luta é pela manutenção da saúde em meio aos ataques diários.

Com a história de Aline e de tantas outras servidoras, é claro que o desrespeito à quem se doa pela vida das pessoas é real.  

Não são só apenas mulheres que estão na linha de frente como profissionais mas também são mulheres que chefiam o lar, cuidadoras,  filhas,  amigas e companheiras que já enfrentam desafios todos os dias por ser mulher e enfrentar uma série de desigualdades. Precisamos lutar por elas e por todas nós.

 

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