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TEORIA

Karl Marx: ateísmo e política na Prússia (1836-1841)

Este texto é o terceiro de uma série sobre a vida de Karl Marx

Wesley Carvalho

Frederico Guilherme IV, Karl Marx, Arnold Ruge

Muito antes do século XIX, intelectuais foram produzindo leituras alternativas e críticas a dogmas religiosos. Alguns defendiam uma perspectiva panteísta, ou seja, de que Deus não seria um ser personificado. Outros entendiam que os milagres de Jesus eram, na verdade alegorias, ou faziam análises histórico-críticas dos escritos sagrados, destacando fraudes nos textos e contradições nos relatos, concluindo que a Bíblia não poderia ter inspiração divina. Vários dos estudos eram uma forma de se chegar ao que seria o cristianismo autêntico sem as adições posteriores que teve a Bíblia. Mas estes e outros acúmulos científicos acabaram desenvolvendo também posições decididamente ateias. Muitas vezes estes estudos eram publicados de forma anônima, já que poderia haver repressão (por exemplo, fechamento de jornais ou prisão por blasfêmia). No início do século XIX, na Alemanha, a suspeita de ateísmo já poderia ser o suficiente para impossibilitar uma carreira acadêmia. Na década de 1820, o influente Hegel, muito embora tenha promovido em sua filosofia uma conciliação entre estudos científicos e religião, temia ser identificado como ateísta, e procurou se declarar como protestante. (1)

No período em que Karl esteve como estudante na Universidade em Berlim, no final da década de 1830, o debate sobre religião se intensificou. Este era um tema de caráter altamente político. A Revolução Francesa iniciada em 1789, com seu combate aos poderes do rei e da igreja, havia gerado na Prússia, como reação, uma onda de fundamentalismo cristão. Entendia-se inclusive que a revolta na França havia sido diretamente causada pelo ateísmo crescente. O cristianismo protestante foi então reforçado como um alicerce fundamental do estado prussiano. Pastores e professores de teologia eram funcionários públicos – ou seja, pagos diretamente pelo Estado, controlados por supervisores estatais e passíveis de demissão em caso de divergências doutrinárias ou políticas. Os católicos eram permitidos nos territórios, mas vistos com desconfiança e eventualmente alvos de repressão, uma vez que o papa era também um líder secular e aliado à França (rival da Prússia). Assim, temas teológicos e filosóficos tinham uma significação política. Disso se ocupavam grupos de discussão em Berlim, como o “Clube dos doutores”, de que Marx participou desde pelo menos 1837, quando tinha 19 anos. Foi uma experiência fundamental para que ele ampliasse seus conhecimentos em filosofia e história, além de fomentar suas perspectivas políticas. (2)

Arnold Ruge

Algumas figuras próximas a Karl foram expoentes do debate filosófico-político-religioso do momento. Arnold Ruge havia sido detido em 1824 por participar de uma associação estudantil secreta e ficou 6 anos na prisão. Saindo de lá, continuou seu ativismo publicando anonimamente artigos sobre liberdade de imprensa, constituição e um governo orientado pela maioria dos representantes eleitos. Para Ruge, o protestantismo significava racionalidade e liberdade de pensamento, enquanto o catolicismo tinha a ver com o absolutismo (poderes concentrados no rei). Em uma linha de pensamento bastante difundida entre intelectuais da época, esperava que a Prússia se orientasse de forma racional, com base no protestantismo e nesse sentido demandava condições mais democráticas. (3)

Bastante próximo a Marx era o teólogo Karl Köppen. Em 1840, Köppen escreveu um livro sobre Frederico, o Grande, que reinara cem anos antes. Neste estudo, considerava como progressista a Reforma Protestante de Lutero (do século XVI), o absolutismo esclarecido e as reformas empreendidas pelo antigo monarca. A amizade de Köppen era significativa a ponto de este livro ser dedicado justamente a Marx. Essa dedicatória é a primeira vez que o nome de Marx aparece impresso no debate público. (4)

Ludwig Feuerbach era outro nome de peso no momento e foi um filósofo fundamental para Marx nos anos seguintes. Em 1839, havia radicalizado o debate. Para ele, a questão não deveria mais ser colocada como uma oposição entre catolicismo e protestantismo, e sim entre ciência e religião. Feuerbach rejeitou a ideia de uma filosofia ser cristã, pois para a filosofia a religião apenas poderia configurar como objeto de crítica. (5)

O principal amigo de Marx em Berlim foi Bruno Bauer, um teólogo, que havia sido seu professor na universidade em um curso sobre o profeta Isaías. Bauer foi desenvolvendo estudos histórico-críticos dos evangelhos sublinhando problemas factuais e indicando serem criações literárias e, no final dos anos 1830, já não era mais protestante, e sim ateu. (6)

O ano de 1840 se mostrou fundamental na definição de posições religiosas e políticas. Foi quando um novo rei chegou ao trono da Prússia, Frederico Guilherme IV. Karl, então um estudante de Direito de 22 anos, talvez tenha tido a mesma esperança de muitos de sua época: a de que o novo monarca pudesse ser mais liberal. De fato, Frederico Guilherme IV chegou a libertar presos políticos e permitiu o retorno às universidades de pessoas que o governo havia afastado. Porém, no mesmo ano, ficaria clara também sua postura autoritária: não haveria uma constituição (prometida havia muitos anos) e nem um parlamento (além dos parlamentos provinciais que já existiam). Frederico Guilherme IV, que entendia seu poder baseado na doutrina do direito divino, acentuaria ideologicamente o cristianismo como justificativa de seu poder. Nas universidades, logo se verificou uma ofensiva com a ocupação de cátedras por parte de conservadores alinhados com o governo e o bloqueio de professores críticos. Esse quadro político foi uma frustração não apenas para jovens da camada social de Marx, mas também para a burguesia alemã que almejava ganhar mais poder político dentro do Estado(7)

A crítica ao governo em grande parte se radicalizou através da discussão sobre religião e sob a defesa do ateísmo. Para Bruno Bauer, a religião era um entrave para o desenvolvimento humano e a crítica filosófica, uma arma para combatê-la. O principal amigo de Karl no período também nutria a expectativa revolucionária a partir de um conflito épico entre religião e a livre auto-consciência. Em 1841, planejavam a publicação de um jornal chamado Arquivos do Ateísmo. Sobre o projeto, disse Georg Jung em uma carta endereçada a Ruge: “O dr. Marx, o dr. Bauer e L. Feuerbach estão se associando para fundar um periódico filosófico-teológico; que todos os anjos se reúnam ao redor do velho Deus Nosso Senhor e que ele seja misericordioso consigo mesmo, pois esses três com certeza vão expulsá-lo do Céu e, ainda por cima, processá-lo judicialmente.” O jornal não foi concretizado, e também não há registro de nenhum dos cinco estudos filosófico-religiosos que Marx realizou no período, quando pretendia inclusive publicar um livro. (8) De qualquer forma, é certo que desenvolveu um sólido conhecimento em teologia. 

Em 1841, Karl tinha uma posição decididamente ateísta, mas em 1835, com 17 anos, já havia manifestado a seu pai dúvidas em relação à fé. Em poemas que escreveu em 1836 e 1837 também é possível notar certa rejeição à crença em Deus. (9)

Em Berlim, enquanto um jovem estudante de Direito e aspirante a um doutorado em Filosofia, no período de 1836 a 1841, o comunismo ainda não era tema de seu interesse. (10) Era na crítica à religião e com inspiração na Revolução Francesa que jovens como ele (mas não necessariamente ateus) projetavam mudanças para a sufocante realidade prussiana. Entretanto, em poucos anos, suas perspectivas, amizades e inspirações mudariam e Karl daria contribuições originais para a reflexão sobre religião e política, as quais são referências até hoje.


LEIA MAIS

PARTE 1 – Karl Marx em Tréveris (1818-1835) 

PARTE 2 – Karl Marx estudante de Direito (1835-1841)

 

NOTAS

1 – HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento da sociedade moderna. Biografia e desenvolvimento de sua obra.Vol.1 (1818-1841). Tradução de Claudio Cardinali. São Paulo: Boitempo, 2018. pp. 290-308. SPERBER, Jonathan. Karl Marx. A nineteenth century life. Londres: Liveright Publishing, 2013. p. 61

2 – HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento…p. 278; 291. JONES, Gareth. Karl Marx: greatness and illusion. Cambridge: Belknap Press, 2016. pp.69-77.

3 – HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento…pp. 317-34.

4 – HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento… pp. 280-1

5 – HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento… p. 326

6 – HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento…pp. 248-53; 280-4.

7 – HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento…pp. p.286-90. JONES, Gareth. Karl Marx: greatness… p. 96. SPERBER, Jonathan. Karl Marx: a nineteenth… p. 62

8 – HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento…pp 265-6; 360-4; JONES, Gareth. Karl Marx… p 98;  MCLELLAN, David. Karl Marx: his life and thought. Londres: the Macmillan Press, 1973. p. 37.

9 – HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento…pp. 354-8. Infelizmente aqui devemos observar a caracterização de que Marx era satanista, bastante difundida na extrema-direita alucinada (como Murray Rothbard e Olavo de Carvalho). Aponta-se que Marx participava de ritos satânicos, bem como associa-se ateísmo a satanismo. A base para esta leitura são poemas de Marx escritos nesta época da universidade em que há menções ao inferno e ao Diabo. Esta temática, longe de ser uma idiossincrasia do jovem Karl, era, na verdade, uma tendência literária bem difundida à época conhecida como “romantismo sombrio”. Dela faz parte um dos principais monumentos da literatura alemã até hoje, o “Fausto” de Goethe. HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento…pp 218-9;  ROTHBARD, Murray. “O caminho escatológico de Marx para o comunismo” IN: Mises Brasil https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1405 . Acesso em 25 de abril de 2020.  Ver também “Olavo de Carvalho Fala sobre as Inclinações Satânicas de Karl Marx” https://www.youtube.com/watch?v=z2RSjP_J364

10 – HEINRICH, Michael. Karl Marx e o nascimento…p.84