Nos últimos dias, Campina Grande, cidade situado no agreste paraibano, virou notícia nacional. No exato momento em que o Brasil ultrapassava a China em número de casos da Covid-19 (com mais de 5 mil mortes e 80 mil infectados) e o presidente genocida desdenhava da tragédia nacional, a insuspeita “Folha de S. Paulo” publicou, na edição de 29 de abril, foto em que um grupo pessoas aparecia em fileira e ajoelhadas em frente a algumas das principais lojas da Rua Maciel Pinheiro, epicentro do comércio local, em gesto de oração coletiva comandada por um homem com trajes amarelo e preto. Abaixo a seguinte manchete: “Protesto por reabertura de comércio na Paraíba é investigado”.
Essa e outras fotos já haviam circulado em redes sociais, gerado uma onda de comentários e protestos desde a última segunda feira, dia em que o evento registrado pelo jornal ocorreu. Essa é daquelas imagens que meio que falam por si só. Em sua crueza, ela se dá a revelar num quadro feito de crueza e sordidez. Contudo, se quisermos captar camadas mais profundos de significados nessa contidos, é preciso ir além da imediaticidade dos fatos. Aqui um pouco de história pode ajudar.
Como muitos outros municípios brasileiros, Campina Grande se constituiu desde sua gênese em “costas negras”. Isso significa dizer que a riqueza social produzida na ‘Rainha da Borborema” (epíteto com o qual a cidade também é conhecida) foi gerada a partir de um intenso processo de exploração, opressão e humilhação cotidiana de milhares de homens e mulheres escravizadas.
Quando em meados do século XIX veio a crise do sistema que desembocou na abolição, os proprietários de terra e de gente local procuraram diversificar o emprego de seus ativos, investindo em imóveis urbanos, indústrias, serviços e atividades comerciais. Dos escombros do escravismo se amalgamaram os elementos que, de certa maneira, ainda hoje estão na base da economia de Campina Grande. Foi dessa “terra e desse estrume” pestilentos que se formou a fina flor de uma nova/velha classe dominante ciosa de seus privilégios, em relação a seus pares, ao Estado e as classes trabalhadoras sucessoras dos escravizados locais. Para isso ela criou, dentre outras coisas, organizações de classe para fazer valer seus interesses, como a Associação Comercial Campinense, nos anos 1920, a Federação das Indústrias do Estado da Paraíba, na década de 1950, e, em 1966, em plena ditadura militar, a Câmara de Dirigentes Logistas.
Essas entidades contribuíram para que os comerciantes se tornassem a principal facção da burguesia local, se apropriando de forma privada da maior parte da riqueza socialmente produzida e comandando com mão de ferro os destinos políticos da cidade. Como estes senhores concebem a urbes como uma extensão de seu mando pessoal, a classe trabalhadora sempre foi tratada com o maior desprezo e violência, um dos mais fortes componentes que seus antepassados dispensavam aos escravizados de um passado recente.
Pois bem, o que aconteceu em 27 de abril e colocou Campina Grande nas manchetes nacionais tem a ver, também, com a história aqui resumida. Ao contrário do que órgãos de imprensa e jornalistas venais divulgaram como verdade, aquela não foi uma manifestação espontânea, pensada em comum acordo entre patrões e “colaboradores”, termo esse que a ideologia burguesa inventou para diluir o caráter de exploração e opressão que continua a marcar a relação capital x trabalho. Ao que tudo indica, aquele foi um ato de classe, milimétrica pensado e organizado pelos representantes patronais, tendo à frente um notório bolsonarista/negacionista local, espécie de lupemburguês, que tem aproveitado a comoção gerada pelo coronavírus pra colocar nas ruas o funesto bloco de sua candidatura a prefeito municipal.
Usando da intimidação e do pânico gerado pelo desemprego e o desespero da fome, estes senhores obrigaram os trabalhadores a se submeterem a seu capricho e sua busca desenfreada pelo lucro representado pela reabertura de seus negócios, expondo a vida das pessoas ao contágio do vírus e à humilhação pública, um verdade caso de assédio moral a céu aberto. Esse ato patronal mesquinho muito provavelmente não se deu por acaso. Convém lembrar que os comerciários são os dos mais aguerridos segmentes da classe trabalhadora local (embora nem sempre as direções sindicais estejam a altura desse potencial, inclusive no caso aqui relatado), tendo participado de importantes momentos da luta da classe trabalhadora de Campina Grande, a exemplo das greves gerais ocorridas nas últimas décadas no Brasil. Nesse sentido, é preciso que os órgãos fiscalizadores investiguem a fundo o episódio, os responsáveis exemplarmente punidos e os trabalhadores sejam reparados em sua dignidade brutalmente violada.
A cidade do “Maior São João do Mundo”, conhecida por esse e outros superlativos tão ao gosto de suas carcomidas oligarquias, a partir de agora conta também com o título de capital da infâmia. Esse fato ocorre justamente na semana em que transcorre a data magna da nossa classe. Que esse deplorável acontecimento seja fortemente denunciado nesse 1º de maio de 2020, que coincide com o surto de uma pandemia que expôs, definitivamente, as vísceras de um sistema, o capitalismo, que precisa ser, urgentemente, destruído e superado historicamente.
*professor de História da Universidade Federal de Campina Grande
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