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BRASIL

Que cozinha é essa? Uma experiência de combate à fome em Campina Grande

No último dia 19 de maio completou um mês da ocupação da Cozinha Comunitária nos Bairros Jeremias/Araxá, no município de Campina Grande. E a comemoração não poderia ser diferente, foi feita com um ato político na frente da Prefeitura Municipal, no qual participaram as entidades que compõem o Comitê Sindical e Popular Contra a Fome, os moradores dos referidos bairros, além da Ocupação Luís Gomes que, no outro lado da cidade, luta pelo direito à moradia e no combate ao latifúndio urbano tão caro e especulado na “Rainha da Borborema”.

Este artigo, porém, pretende traçar um perfil da composição de classe dos moradores dos Bairros Jeremias/Araxá, nos quais temos atuado politicamente no combate à fome, ao vírus e ao neofascismo. Os resultados que pretendemos trazer nesse texto foram elaborados a partir de um cadastramento realizado pelo comitê logo nos primeiros dias da ocupação, além da observação participante realizada dentro e fora da cozinha no decorrer desse primeiro mês.

Foram cadastradas 201 famílias, das quais 110 residem no Bairro do Jeremias, 68 no Araxá, 05 no Monte Santo, 02 no Conjunto Universitário, 01 no Bairro da Palmeira e 15 não informaram o nome do bairro onde residem. Do ponto de vista do gênero, a maioria das famílias se apresenta hegemonizada por mulheres (157), seguida pelos homens (46). Aliás, o trabalho no interior da Cozinha, desde a limpeza do local até o preparo e entrega da comida é realizado majoritariamente por mulheres (17), acompanhadas de apenas 04 homens. O questionário apresentado para a coleta de dados durante o cadastramento não trouxe questões que nos permitam precisar em dados quantitativos o perfil étnico-racial, o de orientação sexual e de identidade religiosa dessa fração do proletariado campinense. Porém, o método de observação participante permite-nos arriscar a hipótese de que mais de 90% desses trabalhadores e trabalhadoras são negros e negras e que há uma preponderância considerável da religião evangélica. 

Diante disso, podemos perceber de início o condicionamento do racismo estrutural com seu peso opressor e excludente sobre as costas da fração da classe trabalhadora em questão. Esse racismo quando combinado com o Modo Capitalista de Produção joga o proletariado negro para o desemprego, o precariado, as desigualdades salariais no caso de comparação com trabalhadores brancos inseridos na estrutura produtiva, sem contar nas várias formas de assédio e preconceito sofridos no mundo do trabalho ou fora dele.

Quando complexificamos ainda mais a análise e colocamos em operação a categoria de gênero, podemos afirmar que as mulheres negras da classe trabalhadora compõem o segmento mais explorado e oprimido na estrutura social, pois elas ainda têm que enfrentar as determinações estruturais do patriarcado heterossexista. Todavia, negras ou não, as mulheres trabalhadoras no capitalismo se encarregam do trabalho de reprodução social, o trabalho do cuidado com a reprodução da força de trabalho que precisa está de pé para gerar valor e acumulação do capital por parte da burguesia. Mesmo que mulheres proletárias consigam um trabalho no setor produtivo explorador de mais-valor, elas ainda se encarregam dos papéis do trabalho doméstico e de mãe de família. Esse trabalho doméstico sequer é considerado pela ideologia burguesa como trabalho, ainda por cima é desqualificado, mas fundamental para a reprodução ampliada do capital. Parece-me que essa teoria marxista encontra nas Comunidades do Jeremias/Araxá uma realidade empírica que lhe dá sustentação e comprovação. Entretanto, o comitê deliberou pela inserção de homens também no trabalho do preparo da comida e na limpeza da cozinha a fim de que não reproduzamos a divisão sexual do trabalho. Por isso, também, as “cozinheiras” hoje exercem uma atividade política importantíssima, muito mais do que mão de obra são elas que estão na linha de frente da resistência, usando a palavra e participando da experiência concreta da luta de classes em defesa de comida no prato e vacina no braço. Dia 29 de maio, mais uma vez, lá estão elas na Praça da Bandeira na luta contra o neofascismo e pelo Fora Bolsonaro. 

No caso da fonte de renda da maioria das pessoas esta é oriunda do Programa Bolsa Família (60), seguidas de auxílio emergencial e trabalho precarizado: vende água no sinal (01), trabalho informal/bolsa família (01), catador/bolsa família (01), diaristas (06), revendedora da Avon (01) moto taxi/bolsa família (01), “bicos” (04), trabalho informal (02), reciclagem (01), “autônoma” (01), auxiliar de limpeza (01), “faz doce para vender” (01), vendedora (01), coveiro (01), pedreiro (01), “babá” (01) e “funcionária de uma padaria” (01). Trinta e seis famílias afirmaram que se encontram desempregadas, além de ser pequeno o número de aposentados (08) e pensionistas (02). 

Além das imensas dificuldades nas condições materiais de vida já relatadas, a questão da moradia agrava ainda mais a situação desse proletariado/precarizado que vive ainda dependendo do pagamento de alugueis ou ameaçado de despejo como no caso da ocupação no Bairro do Araxá cujas casas foram construídas pelos moradores no terreno da Rede Ferroviária, mas que convivem com as ameaças policiais cujo braço repressivo se encarrega de executar a reintegração de posse cuja ação corre no braço coercitivo do Direito burguês. Ainda mais, esse povo pobre das periferias tem que se deparar com as organizações que comandam o narcotráfico, um poder paralelo na comunidade que dita as regras de sociabilidade no bairro e impõe um controle social quase que total sobre a população. Esse poder como sabemos, não começa e se encerra na periferia, pois a elite do crime que lava dinheiro por dentro de igrejas e financia campanhas milionárias de políticos da República mora nos condomínios luxuosos das cidades. Como se não bastassem as agruras do capitalismo que suga como vampiro o sangue dos pobres, eles ainda têm que se submeter aos ditames dos chefes do tráfico ou às “balas perdidas” que as polícias sempre acham moradas nos corpos negros, jovens e pobres da periferia das grandes cidades. Partidos políticos de esquerda precisam enfrentar essa questão passando muito distante de projetos como o do suposto “combate as drogas”. Construir alternativas que cortem o mal lá na raiz dos grandes magnatas dos helicópteros de cocaína sem a eles se aliarem, me parece uma projeto acertado à esquerda, mesmo que exija média ou longa duração para sua execução. 

Do ponto de vista superestrutural, percebemos que a visão de mundo dessa população pobre e periférica de Campina Grande é marcada por uma consciência política fortemente alicerçada pela ideologia religiosa cristocêntrica, pelo clientelismo político das tradicionais oligarquias locais, da mídia burguesa e seus programas “pinga sangue”. Pudemos perceber em várias falas das pessoas da comunidade durante os atos políticos que realizamos alguns, cobrando de Bruno Cunha Lima a reabertura das cozinhas alegando nele terem depositado a confiança do voto desde o velho Ronaldo, outros, expressando que “o melhor prefeito de Campina Grande” havia sido Veneziano Vital do Rego, citado, inclusive, como o “fundador” das cozinhas comunitárias em 2012. No âmbito religioso, várias pessoas expressaram que depois do jantar iriam ao culto, ou que aprenderam a falar em público por incentivo do pastor. Nesse sentido, temos plena consciência de que há uma direção hegemônica por parte dos aparelhos privados de hegemonia e, nesse aspecto, a fração de trabalhadores do Jeremias/Araxá tem sua visão de mundo formulada na linha do que Antônio Gramsci denominou de senso comum. Cabe ao conjunto da esquerda, sobretudo se essa esquerda reivindicar o marxismo, fazer um trabalho de base molecular e duradouro a fim de elevar qualitativamente a consciência de classe. É um trabalho de formiguinha, leva tempo a luta de classe nas trincheiras da guerra de posição. Contudo, abrir mão da filosofia da práxis em nome da conciliação de classe e do apassivamento que lhe é inerente é um erro que não devemos cometer. Depois da cozinha, o que vamos fazer no Jeremias/Araxá?