O Massacre de 29 de Abril, como ficou conhecido o confronto onde o então governador Beto Richa e o então secretário de Segurança Pública do Paraná Fernando Francischini mobilizaram policiais militares de todo o estado para atacar servidores e servidoras em greve na capital do estado, completa hoje cinco anos.
Inúmeros relatos, artigos acadêmicos e publicações em geral foram feitos sobre os fatos que permearam o fatídico dia 29 de abril de 2015, desde as ocupações da ALEP em fevereiro, onde os deputados se esconderam em um camburão para tentar votar uma lei que acabava com o plano de carreira dos e das servidoras, até o fim da greve que se estendeu para além do dia 29.
Porém, neste breve texto, relembrando os 5 anos deste massacre, eu gostaria de fazer algumas reflexões sobre questões mais subjetivas que envolveram os e as trabalhadoras envolvidas nesse evento, e por isso parto de um relato mais pessoal.
Estávamos acampados desde o dia 27 junto com centenas de servidores, servidoras e estudantes na Praça Nossa Senhora de Salete, que fica em frente ao Palácio Iguaçu (sede do governo) e da Assembleia Legislativa, havia gente de todo o estado, e como o acampamento era muito grande, pequenos grupos se formavam, eu estava acampado junto com trabalhadores da educação do litoral, e alguns professores e professoras da UNESPAR.
O dia 29 de abril começou com uma grande tensão fruto dos acontecimentos dos últimos dias, na madrugada do dia 27 para o dia 28 a tropa de choque atacou o acampamento para roubar o caminhão de som que utilizávamos para a greve, resistimos, mas éramos um grupo de umas cem pessoas no máximo naquele momento, e ali recebemos os primeiros sprays, bombas e cassetetes daquela semana.
Ainda na madrugada a polícia apreendeu outro caminhão de som que se dirigia ao local do acampamento para substituir o caminhão roubado, e assim na manhã do dia 28 organizamos um grande ato para romper as barreiras policiais e garantir que um novo caminhão de som, bem menor dessa vez, conseguisse chegar até o local do nosso ato, novamente foram tiros, bombas, sprays, em um momento emblemático os e as trabalhadoras arrastaram no braço as viaturas da polícia que bloqueavam o caminho, e após um longo confronto, que só terminou com parlamentares subindo no caminhão e negociando com o comando da PM, colocamos novamente um caminhão próximo ao acampamento.
Em meio a esse confronto, eu tomei um jato de spray de pimenta nos olhos “a queima-roupa”, e sem enxergar nada, atorado pelo barulho, com medo de ser atropelado pela multidão ou pego pela polícia, um amigo que há pouco havia sido socorrido por um grupo de estudantes com magnésio e vinagre, dividiu comigo o magnésio que estava em seu óculos e rosto e foi o que me aliviou, grande Sérgio, pequenos atos naqueles dias dias, geraram conexões muito fortes.
Desta forma, o dia 29 começou com toda essa caraga de tensão, o sentimento é que poderíamos ser atacados a qualquer momento, a todo instante o assunto era medidas de proteção e segurança, não andar sozinho, roupas grossas, máscaras de proteção, vinagre, bicarbonato, leite de magnésio, naquele momento, acredito que a preocupação era maior em não perder ninguém, não ver nenhuma pessoa querida machucada, do que o fundo previdenciário, o clima de terror estava instaurado.
Quando um dos helicópteros começou a dar rasantes no acampamento e destruir as barracas a tensão chegou num ápice, era um ataque covarde e totalmente desnecessário por parte da polícia militar, não sei se foi logo em seguida, pois a noção de tempo daquele dia é meio confusa em minhas memórias, mas depois disso, os ânimos foram se acirrando até que a PM começasse a atirar as primeiras bombas.
Lembro que ainda no acampamento havíamos discutido que caso houvesse confronto (ingênuos achávamos que no máximo seria um confronto e não um massacre de duas horas de bombas) não deveríamos ficar sozinhos, mas como em momentos como esse não há como ficar em grupo, a encaminhamos que formássemos duplas, não lembro sei foi por isso, ou pelo acaso, mas o fato é que durante todo o período do confronto estive acompanhado por um professor que então atuava na UNESPAR em Paranaguá, o Marco Antônio.
Tinha pouca intimidade com o Marco, havíamos nos encontrado umas poucas vezes antes daquele dia, mas acredito que a solidariedade e o companheirismo que se estabeleceu naquele momento foram fundamentais para que tanto eu quanto ele chegássemos ao fim de toda aquela barbárie sem nenhum ferimento grave. Hoje o Marco é um grande amigo e sei que uma pessoa comprometida com as causas populares, um lutador, mas naquele momento não havia como saber, tão pouco ele sabia quem eu era, foi a necessidade do momento, e o sentimento que aquilo tudo criou que fez com que confiássemos um no outro.
Naquele período de pouco mais de duas horas de bombas e ataques, passamos por várias coisas, demandaria um artigo só para narrá-las, talvez até um livro, mas dois fatos me marcam muito até hoje no meio daquilo tudo, primeiro foi quando encontramos um grupo de estudantes, deveriam ter entre 15 e 16 anos, totalmente perdidos e apavorados, morriam de medo (nós também) e não sabiam o que fazer, senão me engano procuravam um amigo que tinham perdido, mas mesmo perdidos e preocupados com o amigo, eles vieram até nós porque uma bomba havia explodido perto de nós e estávamos com olhos ardendo e um tanto quanto desnorteados, e eles tinham uma garrafa com vinagre, magnésio ou qualquer outra coisa dessas que aliviam, orientamos eles a saírem dali e eles deixaram a garrafa com o “antidoto” conosco.
A garrafa foi útil, não só para nós, algum tempo depois encontramos um senhora paralisada em meio a praça, embaixo das árvores, com as mãos nos olhos, havia muita fumaça das bombas, e nós corremos para socorrê-la, o tal antidoto dos estudantes aliviou, mas ela estava em choque, era uma senhora que deveria ter quase uns 60 anos, que tinha virado alvo da tropa de choque da PM, para conseguir tira-lá dali precisamos acalmá-la, e enquanto trabalhávamos nisso, e estávamos concentrados nela, uma bomba veio do alto na nossa direção, não sei se veio dos helicópteros ou dos atiradores do alto do Palácio da Justiça, e não recordo se foi eu ou o Marco quem viu a bomba vindo e puxou os outros dois para longe, por muito pouco um dos três poderia ter se ferido gravemente ou até nem estar aqui.
Sei que as memórias se constroem de maneira subjetiva e muitas vezes são mais a nossa projeção sobre o que vivemos do que exatamente o que vivemos, talvez o Marco ao ler esse relato lembre de outra forma, talvez a senhora que ajudamos lembre de uma terceira forma, talvez os estudantes nem lembrem que nos encontraram no meio do caminho, porém acho muito difícil que a memória que eles construíram sobre sobre aquela semana de abril de 2015, não os tenha marcado e modificado sua forma de ver o mundo e se relacionar com as pessoas, sobretudo com as pessoas que viveram tudo aquilo também.
Certa vez discutia com um amigo que me questionava sobre o porque de ficar lembrando do 29 de Abril pois foi uma derrota, apanhamos, perdemos o fundo previdenciário, Richa foi inocentado e na hora não consegui argumentar, hoje rememorando os 5 anos daquele episódio, cheguei a uma conclusão: se por uma lado perdemos algumas coisas, por outro lado enfrentar aquelas mais de duas horas de bombas e tiros, encontrar pessoas que estão dispostas a enfrentar isso com você, que arriscam a própria integridade para garantir a sua, cria um sentimento de pertencimento a todos e todas que sobreviveram ao 29 de Abril, e nos da a certeza de que podemos ter perdido uma batalha, mas estamos do lado certo da história e somos muitos e muitas, de que a luta sempre vale a pena.
*Vinícius Prado é historiador, mestre em Educação pela UFPR, pesquisador de políticas educacionais e militante da Resistência/PSOL.
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