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BRASIL

A UNESP durante a quarentena: debates sobre o EaD e a permanência estudantil

Isabela Tamaki Otani e Gustavo Carneiro Pinto

Espalhada por 24 cidades, a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) soma aproximadamente 200 cursos de graduação e 150 programas de pós-graduação, sendo uma referência nas áreas de ensino, pesquisa e extensão universitária no país. No estado de São Paulo, foi pioneira a implementar a política de cotas em 2014, incentivando o ingresso de pessoas negras, indígenas e oriundas de escolas públicas. Apesar dessa vitória, resultado das mobilizações estudantis de 2013, até hoje os estudantes deparam-se com um atraso imenso nas políticas de permanência estudantil, traduzido no número insuficiente (quando não nulo) de vagas na moradia estudantil e de refeições no restaurante universitário, fora outras precariedades.

Não à toa, os últimos anos foram marcados por muita luta na UNESP. Além do descaso com as políticas de permanência, denunciamos o arrocho salarial de professores e servidores, o congelamento de contratações e os cortes nas bolsas de pesquisa e extensão. Organizamos comitês, conselhos, paralisações e greves a nível estadual, movimentando os quatro cantos de SP. Como resposta, a reitoria e o governo do Estado alegaram que o atendimento das nossas demandas era impraticável, devido a fatal “insustentabilidade financeira” da UNESP.

Mas muito se engana quem acredita na “inevitabilidade” da crise. Até porque, nos últimos 20 anos, foram inauguradas nove unidades universitárias em 8 cidades, sem aumento nenhum do financiamento. É lógico que a conta não fecharia. A principal fonte de recursos das universidades estaduais paulistas, parte da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), permanece estagnada desde 1995, mesmo feitas inúmeras reivindicações de professores, servidores e estudantes pelo aumento do repasse. O desfinanciamento das universidades estaduais paulistas não foi um “erro” incalculado.

Em março, os problemas sociais, econômicos e políticos que vinham se avolumando há tempos, precipitaram-se como uma avalanche após a pandemia do Covid-19. Com isso, a pobreza extrema, o índices alarmantes de informalidade, a falta de acesso a saneamento básico, dentre outras questões urgentes, ganham cores mais dramáticas. Assim, propostas invisibilizadas em terreno social, mas historicamente defendidas pela esquerda, tornaram-se assunto de parcela considerável da população. Um exemplo é o aumento do investimento no Sistema Único de Saúde (SUS), que hoje desponta como nosso diferencial ao combate da  Covid-19.

Contudo, mesmo com avanços no debate, a história nos ensina que problemas sociais não são fáceis de resolver. Afinal, os ricos e poderosos, menos de 1% da população, nos impedem de empreender mudanças amplas na sociedade. Isso aconteceu na luta pelo maior repasse financeiro às universidades públicas.

Voltemos à UNESP. Antes da quarentena, aos estudantes, professores e servidores preocupados com a manutenção do “tripé universitário”, a implementação do EaD não era vista como algo razoável. Afinal, enquanto alternativa, é precária: dificulta o engajamento daqueles sem acesso ao computador e à internet estável, onera a qualidade didática da aula e abre precedentes para o ensino tornar-se cada vez mais padronizado e acrítico, sem possibilidade de reflexão e construção coletiva do conhecimento. Fora os efeitos imediatos, o EaD menospreza os trabalhos de pesquisa e de extensão, justifica a demissão de docentes e em última instância, acelera o processo de desmonte da universidade pública, há décadas em curso, incentivado pelo governo do Estado e da reitoria.

Desde que a quarentena foi decretada no estado de São Paulo, uma série de recomendações e elogios ao EaD foram feitos, tanto pelo governador João Doria, quanto pela pró-reitoria de graduação da UNESP. Esse alinhamento não é casual. Ao se prestar alguma atenção à Universidade Estadual Paulista e sua direção, é possível perceber que os trabalhos dos últimos reitores estavam alinhados aos dos governadores do estado. A conclusão é simples: o desmonte das universidades públicas paulistas, da UNESP, nesse caso é um projeto.

Assim, pressionada pelas investidas “de cima”, parcela da comunidade unespiana, que antes mal considerava a precária alternativa, passou a defender e relativizar a adoção do EaD, sob o pretexto de manter a  produtividade acadêmica e o calendário letivo. Mas vistos de maneira ampla, sob o cenário de ameaça ao ensino superior público e à vida da população, tais argumentos são indefensáveis. Assim como vínhamos reivindicando, devemos impedir a marginalização dos grupos mais vulneráveis, garantindo as condições para todos estudantes permanecerem em casa, ocupando-se de tarefas de cuidado físico e mental.

É claro que, no nosso tempo, é necessário pensar em iniciativas que modernizem o sistema de ensino. O ensino à distância, inclusive, não deixa de ser uma dessas iniciativas, pensando de forma cautelosa em projetos de pesquisa e de extensão que usem o EaD para prestar serviços à comunidade. Porém, apostar na implementação irresponsável dessa modalidade de ensino não é certo, já que ela representa uma estratégia desonesta para implementar esse modo de ensino excludente a muitos estudantes da universidade pública. Nesse momento de enfrentamento à pandemia, a preocupação da reitoria, assim como dos servidores e alunos, deve ser a de preservação da vida de todos da comunidade, com a manutenção das bolsas de permanência e os auxílios às mães e pais trabalhadores, e não a nota nos boletins. As notas se recuperam. As vidas, não.