Tem sido uma constante a autoproclamação do patriotismo, sobretudo pelos setores vinculados ao “bolsonarismo”. Embora reverenciem a bandeira norte-americana com indisfarçável submissão. Entre nós, alguns setores ostentam o verde-amarelo nas suas manifestações. Fato que esteve presente nas mobilizações antipetistas, que culminaram no impeachment. Muitos parlamentares legitimaram o golpe evocando a pátria e outras ridicularidades bestiais. Serão, todos eles, patriotas ou exercem uma espécie de “patriotagem”?
Um dos pilares do anticomunismo, ou seja, uma das formas de atacar quem tem simpatia pelo comunismo sempre foi o estigma de “traidor”. Patto Sá explica essa perseguição: “os comunistas seriam agentes de uma potência estrangeira, a URSS, sua pátria real, o que os tornava traidores da pátria” (1). Como se sabe, os comunistas – ou todo aquele e aquela que se opõe as desigualdades sociais de forma crítica e contundente – não têm fronteiras. Partilham de uma concepção de mundo internacionalista. Dialogam com uma carta de despedida que um médico deixou aos seus filhos: “sobretudo, sejam capazes sempre de sentir profundamente qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte lugar do mundo. É a qualidade mais bela de um revolucionário” (2). No entanto, e sobretudo, os internacionalistas não descuidam daquilo que denominam de “questão nacional”, em especial, naqueles países que sofrem mais agudamente as agruras do imperialismo dos países centrais e, neste sentido, são legítimos patriotas.
Em defesa da pátria, mais de 20 mil seguidores de Antônio Conselheiro foram trucidados pelo Exército
No Brasil, o patriotismo sempre foi um recurso para legitimar atrocidades. Em defesa da pátria, mais de 20 mil seguidores de Antônio Conselheiro foram trucidados pelo Exército, na Guerra de Canudos (1893-1897), na Bahia. Em defesa da pátria, militares ceifaram mais de 15 mil vidas dos que se revoltaram na Guerra do Contestado (1912-1916), na divisa entre o Paraná e Santa Catarina. É bom lembrar que os camponeses de Canudos e do Contestado não conheciam nada dessa coisa de comunismo. Desejavam igualdade social, fortemente influenciados pela religiosidade.
Em 1917, em São Paulo, milhares de trabalhadores e trabalhadoras – sobretudo do setor de tecelagem – construíram um movimento grevista de grandes proporções. Suas reivindicações, entre outros pontos, eram: a carga horária diária de 8 horas de trabalho (a carga horária era, em média, de 12 horas por dia); a abolição do trabalho noturno das mulheres; a abolição do trabalho de menores de 14 anos; além de melhorias salariais e o direito de se organizarem, politicamente. Foram reprimidos pelas forças policiais daquele estado. Segundo José Luiz Del Roio: “há indícios de várias covas, as quais estariam sepultados mais de uma centena de corpos, levados clandestinamente pelas forças de segurança ao cemitério do Araçá, um dos mais tradicionais de São Paulo” . (3) Esta repressão também fora feita “em nome da pátria”.
Importa lembrar inclusive que, no Brasil, um nacionalismo de esquerda sempre fora um importante elemento na luta anti-imperialista, luta esta encampada, inclusive, pelo “partidão” quando em meados do século passado auxiliava, dentre erros e acertos, a construção de um projeto nacional-desenvolvimentista. Isso ocorria mesmo quando este partido se encontrava na ilegalidade, o que na nossa história não foi nada incomum.
A lista de truculências é longa. Abreviaremos. Durante a Ditadura Empresarial Militar (1964-1985), foram “anos de chumbo” para quem resistiu: houve tortura, assassinato, ocultação de cadáveres, censura, banimento de cidadãos ao exílio, cassação de mandatos e registros políticos, a suspensão do habeas corpus, até a pena de morte foi implantada no país. “Anos de glória” para empresários – nacionais e estrangeiros -, militares das Forças Armadas, agentes policiais civis/militares e setores expressivos da grande mídia, que implantaram um terrorismo de estado mantido intacto na redemocratização. Basta lembrar o assassinato – pelo Exército – de três operários na greve metalúrgica, em Volta Redonda (1988); o Massacre do Carandiru (1992), o Massacre da Candelária (1993), o Massacre de Eldorado dos Carajás (1996) e o recente assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, entre outras barbaridades perpetradas.
Esta “defesa da pátria” encobre, na realidade, a submissão dos interesses nacionais aos ditames dos países centrais, algo do tipo “um patriotismo em defesa da pátria alheia”
Para “os de cima” e seus aliados, defender a pátria é implantar uma autêntica guerra psicológica manipuladora. Nessa guerra, o alvo são os inimigos internos ou os sobrantes do mercado: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Nessa guerra, disseminam o ódio, impulsionam comportamentos coletivos possessivos e fundamentalistas. Muitas vezes associados a consigna: deus, pátria e família. Em nada coexiste fé, nem patriotismo e muito menos modelo familiar decente. Instaura-se a “patriotagem”. Muitas vezes associadas as passeatas e carreatas da morte. Por detrás da máscara, esta “defesa da pátria” encobre, na realidade, a submissão dos interesses nacionais aos ditames dos países centrais, algo do tipo “um patriotismo em defesa da pátria alheia”
É preciso desconstruir e ressignificar a narrativa do patriotismo. Implodir as suas amarras. Esse fenômeno insuflou a xenofobia, legitimou a dominação imperialista, gerou guerras fraticidas e horrendas, corroborou a emergência de regimes tirânicos – como o fascismo e o nazismo – e é um recurso de explícita violência política nas frágeis democracias. A rigor, a cultura de um povo e seu caráter nacional não são opostos aos valores universais, a diversidade e a convivência com o contraditório.
Nesse sentido, há um legado dos quilombolas do passado e do presente, entre mocambos, favelas e periferias; dos camponeses que lutaram e lutam por terra livre; dos que desenvolveram e irão desenvolver inúmeras greves; dos que lutam por moradia digna; dos que ousaram enfrentar a Ditadura Empresarial Militar, entre outras contendas. Tais formas de luta conjugam valores nacionais e universais, enfatizando a defesa dos direitos humanos no seu sentido mais amplo.
Afinal, aqueles que labutam de sol a sol, os invisíveis do nosso país, os trabalhadores informais, os pretos e pobres, a classe trabalhadora em geral carregam consigo a insígnia da pátria, construindo-a dia-a-dia, sem a necessidade de se auto proclamar patriota. Pois que, em tempos tão turvos, os verdadeiros patriotas não soerguem a camisa da CBF
Como cantou o poeta (4), é possível acreditar “na rapaziada, que segue em frente e segura o rojão”. Na “fé da moçada, que não foge da fera e enfrenta o leão”. É imperativo “ir à luta com essa juventude, que não foge da raia a troco de nada”. Seguir “o bloco dessa mocidade, que não está na saudade e constrói a manhã desejada”. Partilhar com “aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro”, que “apesar dos pesares ainda se orgulha de ser brasileiro”. É imprescindível acompanhar “a batucada com a cerva gelada”. Afinal, “o resto é besteira”.
* Professor Dr. Da Faculdade de Serviço Social do CURO- UFF- Rio das Ostras.
** Professor Dr. da Faculdade de Licenciatura em História IFF-Macaé
NOTAS
1 – MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em Guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2002. URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, extinta em 1991)
2 – GUEVARA, Che. Cartas. São Paulo: Edições Populares, 1980.
3 – ROIO, José Luiz Del. A greve de 1917: os trabalhadores entram em cena. São Paulo: Alameda, 2017. Ver também: BANDEIRA, Moniz. MELO, Clovis. ANDRADE, A.T. A Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
4 – Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha: “E vamos à luta” (1980).
Comentários