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Colunas

Eu sou você, hoje. Bolsonaro e burguesia em tempos de pandemia

Desastres de la guerra / Francisco de Goya

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Um filho é sempre um filho, mesmo que não planejado. Em certos casos, ele não é fruto só de uma noite, de um fortuito caso ou mesmo do acaso. Para alguns estratos, altos, há ainda sempre a opção de se interromper a gestação, quando se percebe o real problema e sua pletórica dimensão. Assim, talvez convenha sempre lembrar que se não fosse pelo romance impudico que a nossa burguesia estabeleceu desde 2015 com o plebeu neofascista, se não fosse pela incontrolável atração carnal que aquela sentiu por este durante as tétricas micaretas que terminariam no carnaval do Golpe de 2016 – onde o rufião disse que amava, porém batia – não estaríamos hoje na situação que estamos. 

Em 2018, o arrivista disse que se fosse pra casar, seria nas suas condições, e a donzela burguesa, enamorada, aceitou. Dito de outro modo: sem Globo, Fux, Barroso, Carmem Lúcia, Maia, Mandeta e todos os senhores da Casa Grande, não haveria o governo Bolsonaro. Mas todas aquelas pessoas da sala de jantar estavam tão aterrorizadas com os escravos, mesmo com os mais cordatos, que se encantaram pelo feitor, pelo seu jeito firme de segurar o chicote, e o convidaram para jantar. Depois da mesa posta, e com os comensais já aguando, o jantar parece finalmente servido, mas agora o anfitrião é o feitor, é ele que comanda a prosa, limpa a boca com a toalha e cospe no chão. O prato principal, claro, somos nós. 

O espírito de um é, também, o espírito de todos, embora os três, neofascismo, burguesia e governo, ainda são sejam um só. Ainda

Assim, do ponto de vista histórico, a burguesia brasileira parece só se realizar efetivamente sob Bolsonaro. O seu governo é o produto da união entre uma burguesia golpista com medo das urnas e um neofascista com excelentes chances nelas. O Bolsonaro de hoje é, portanto, o filho daquele romance, o qual, entre tapas e beijos, segue. Bolsonaro é, assim, o Pai e, ao mesmo tempo, o filho, só que o filho, neste caso, veio para trazer a verdade e propagar a palavra da Mãe, nada virgem. Uma burguesia medrosa, apaixonada por um líder neofascista, deu à luz a este governo de traços bonapartistas que, para protegê-la, intenta subverter o seu próprio regime, em nome do Pai.  Mas o espírito de um é, também, o espírito de todos, embora os três, neofascismo, burguesia e governo, ainda são sejam um só. Ainda. 

A morte apregoada por Bolsonaro é o máximo que a vida da sociedade burguesa pode hoje oferecer. Pode-se dizer, desse modo, que a prática autocrática da nossa classe dominante encontrou, enfim, sua expressão teórica no bolsonarismo reinante. A ancestral e intermitente violência burguesa é vocalizada por Bolsonaro de forma impudente. Este fala o que aquela sempre fez, mas nem sempre falou, porque nem sempre pôde falar, porque nem sempre pode falar. A burguesia é, portanto, o porquê de Bolsonaro. Ele faz, e agora fala, por ela, para ela. A contumaz aversão empírica da nossa burguesia à arte, à cultura e à ilustração parece agora finalmente condensada na teoria bolsonarista e seu ódio à teoria, sua ode à ignorância, seu culto ao simplório, e seu amor ao bruto – e, claro, às brutalidades. A política sempre pragmática da nossa classe dominante, isto é, sua rejeição prática à teoria política, ou, se quisermos, à política como teoria, se exprime agora na teoria política da antipolítica de Bolsonaro, cujas ideologias, programas e projetos se realizam na prática justamente na medida em que verbalmente negam ser ideologias, programas e projetos. O característico desprezo ordinário da burguesia brasileira pelas formas democráticas é o conteúdo contido na extraordinária forma da retórica autoritária bolsonarista. 

O permanente horror à vida dos de baixo por parte dos de cima é agora totalmente revelado quando o próprio horror, no poder, conduz, de cima, à morte os de baixo. Com Bolsonaro, a pandemia se torna o clímax histórico da burguesia. Ao fim e ao cabo, Bolsonaro é a burguesia sem superego, é o seu desejo nem tão secreto assim, é a sua já sabida verdade revelada, é a libertação formal e exótica de todo o seu conteúdo letal na história. Assim, a necessária luta contra Bolsonaro só poderá verdadeiramente pôr fim a nossa agonia se for tomada como um momento necessário da nossa verdadeira libertação em relação à burguesia.