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BRASIL

O combate ao Covid-19 como uma luta antirracista

Martina Pereira Gomes*, de Santo André, SP
PMRJ

Os números revelam que, ainda que o vírus não escolha quem será atingido, a desigualdade de condições de acesso a uma vida com dignidade indica que a população negra está muito mais vulnerável a essa pandemia. As doenças não são entidades democráticas, elas têm incidências determinadas pela classe social, pelo gênero e pela raça. E na condição brasileira, a raça vem sendo o determinante para sobreviver ou não em tempos de pandemia.

Coronavírus escancara a “sub-vida” nas periferias ao redor do globo

Os EUA têm cerca de 13% da população autodeclarada negra. Os dados divulgados com o perfil racial das mortes e contaminações revelam, no entanto, que, em média, a mortandade de pessoas negras é três vezes maior do que a composição racial dos estados norte-americanos, pois vivem em condições mais precárias que afetam a saúde, trabalham em atividades que os deixam mais expostos e têm menos acesso ao sistema de saúde que é pago e um dos mais caros do mundo.

Já a África foi o último continente a ser atingido em sua totalidade, pois a geografia de classe da disseminação da doença também é uma marca da história dessa pandemia. Os países com maior nível de globalização iniciaram o processo de contágio antes com mais força, mas isso em nada nos permite concluir que os países da periferia do capitalismo sofrerão menos as consequências da Covid-19.

Para além do que os atuais números da doença no continente comunicam, com os países africanos ainda distantes da maioria dos países europeus e dos EUA, a situação já é de imensa gravidade social. Isso se deve à economia dependente dos organismos internacionais, como FMI, que na iminência da crise optam por voltar todos os seus investimentos aos países imperialistas.

Esses dois exemplos expressam a realidade que também podemos encontrar na América Latina, onde a incapacidade dos países de enfrentar a pandemia faz agravar rapidamente o quadro, como demonstram os corpos espalhados pelas ruas de Guayaquil, no Equador.

O discurso neofascista: salvar vidas ou a economia?

“Vamos lá, vou começar aqui. Vocês viram que o diretor, diretor-presidente da OMS, falou? Viram aí? O que ele disse praticamente? Em especial, né, os informais têm que trabalhar
Jair Bolsonaro em entrevista no Alvorada, no dia 31 de março de 2020.

Diante de uma crise das dimensões que estamos vivendo respostas superficiais não nos auxiliam a compreender a dinâmica do momento. Devemos desvendar o que significa a disjuntiva vida versus economia propagada por governos como Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro (BR). Discursos que escancaram uma disputa aberta entre diferentes setores da burguesia a nível internacional.

Muito além de uma postura moral, que dividiria instituições e ou governos entre bons e maus – no caso do Brasil a briga entre Dória e Maia contra o governo Bolsonaro, por exemplo – está a disputa pela forma como a reprodução do sistema capitalista vai continuar. Uma ala, hoje vista como moderada, está a favor de salvar o sistema com redução de danos, pois compreende que não é possível que a economia capitalista se desenvolva e que ao mesmo tempo grandes contingentes de pessoas venham a morrer. Estes não estão pelo salvamento de vidas em detrimento dos lucros, mas sim pela contenção das mortes para o funcionamento mais “saudável” do capitalismo. De outro lado, há a ala, vinculada à extrema-direita internacional, que se utiliza de um discurso genuinamente liberal para defender o salvamento do sistema e da sua lógica de lucro.

Para entender essa disputa, e sua dinâmica, em especial no Brasil, a chave explicativa sobre a formação da sociedade brasileira marcada por uma estrutura racista é determinante. Pois, ao ganhar peso e viabilidade de governo, essas ideias neofacistas resgatam ideologias tais como: darwinismo social, eugenia e o racismo biológico, que hoje retornam para justificar a morte de milhões de pessoas. Aqui falamos, das pessoas que “podem e precisam” ser descartadas para que o sistema capitalista sobreviva à crise com a maior lucratividade possível.

Darwinismo social e Eugenia

 “12 mil mortes para 7 bi é pouco para histeria”

Roberto Justos, 2020.

O mentor desta teoria é Hebert Spencer (1820-1903), que ao se apropriar da teoria de Darwin cunha o termo “sobrevivência dos mais aptos” para explicar as desigualdades da sociedade capitalista como algo inerente aos seres humanos que dela fazem parte. Logo, a vida em sociedade seria uma permanente luta pela sobrevivência e, portanto, seria normal que os mais aptos vençam ou, em outras palavras, que uma parcela dos seres humanos fique mais rica, adquira sucesso e tenha mais condições materiais, tudo a partir de suas aptidões inatas. Assim, o contrário também se justificaria, que outra parcela viverá com menos acesso a bens de consumo e poder, neste caso por sua falta de aptidão para se desenvolver na sociedade. Spencer teoriza que o Estado cumpriria um papel negativo para o desenvolvimento social, porque ele seria o mediador das relações sociais e tenderia a contribuir com os mais pobres, causando distorções no desenvolvimento dos mais aptos.  Outra consequência dessa análise é a ideia de que os menos aptos deveriam morrer mais cedo e deixar menos descendentes.

É nítido que esta teoria, que mescla bases do campo da biologia com a psicologia e as ciências sociais, têm forte cunho ideológico, justificando a defesa do livre mercado e do capitalismo. Por isso, rapidamente o darwinismo social uniu-se às ideologias eugenistas e racistas.

A elaboração que unifica a ideia de darwinismo social com racismo científico e eugenia está em Gobineau (1816-1882), que defendeu a superioridade da “raça ariana”, ideia essencial para a hierarquização da raça humana entre inferiores e superiores.

No Brasil, foram inúmeros os intelectuais do início do século 20, no período pós-abolição, que se filiaram a estas linhas de pensamento para realizar a interpretação da sociedade brasileira a partir da desigualdade racial e social da sua formação. Entre eles: Silvio Romeiro (1851-1914), Raimundo Nina Rodrigues (1862- 1906), Azevedo de Amaral (1881-1950), Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), Arthur Ramos (1903- 1949), sem citar o escritor, sociólogo e político Gilberto Freyre (1900-1987).

Miséria, morte e pandemia: necropolítica

Achille Mbembe, intelectual camaronês, cunhou um termo que pode nos auxiliar a compreender a prática dos governos frente à pandemia: necropolitica- “politica de morte”. Seu pensamento é denso e merece ser estudado com atenção por todos nós. Apoiado em Foucault, Marx, Fanon, dentre outros, o autor nos propõe uma análise da colonização como processo e prática permanente de empecilho ao desenvolvimento da vida.  O conceito de necropolítica, em especial, analisa como a racializacão das práticas sociais conformam a produção de um inimigo público que precisa ser combatido.

Raça, como construção social, foi fundamental para o desenvolvimento do capitalismo (escravidão) e para a expansão da exploração às diversas colônias que foram construídas. A partir da racialização dos seres humanos e da divisão entre superiores e inferiores, a ideia do negro foi construída como a dos “indesejáveis” ou descartáveis ao sistema.

A provisoriedade da vida, que era uma realidade no período da escravidão, segue como um contínuo para negros e negras. O estado permanente de exceção, identificado nas periferias brasileiras e nas penitenciárias, produz um consenso sobre a violência do Estado. Essa violência, que produz a morte da população negra no Brasil, está localizada também na ausência de políticas públicas e serviços essenciais, como é o caso do acesso à saúde, nesse momento.

Muito distantes dos ideais de um pretenso “Estado de Direito”, mais de 800 mil presos no Brasil (terceira maior população carcerária do mundo), em sua maioria negra, desconhece acesso a direitos humanos. As penitenciárias no Brasil são verdadeiros “submundos”, onde tortura, maus tratos, péssimas condições de higiene são a norma. Essa situação é conhecida pelo Estado e pela sociedade civil como um todo. O que sustenta a permanência dessa situação é a ideia da necessidade da política de morte sobre o “inimigo” a ser descartado. Por isso que, ao invés de medidas mínimas de proteção à população carcerária, o que vemos é um isolamento das penitenciárias (restrição de assistência jurídica e visitas), o que contribui para a disseminação do vírus e para o aumento da privação de direitos mínimos. Já existe o registro de 54 internos com a doença e um morto no estado do Rio de Janeiro. Em perspectiva, essa situação tem potencial para virar um massacre da população encarcerada.

Desta forma, a frase “vida X economia” que aparece os discursos governamentais de hoje, em verdade, reflete escolhas recorrentes neste estágio do capitalismo neoliberal em crise. A morte é uma saída quando ameaça a economia: cortes de direitos sociais, tributação dos mais pobres, fim dos direitos universais. São práticas que só podem ser feitas através de uma sistemática de morte de horizontes.

BRASIL: raça como forma de organização da classe trabalhadora

O Brasil tem 210 milhões de habitantes. Dentre estes, 60 milhões moram em favelas e periferias. Estamos diante de um laboratório para entender como a Covid-19 se disseminará em um ambiente onde faltam condições mínimas de saúde.

No dia 9 de abril, após a divulgação da maior incidência de mortes entre os negros nos EUA, a Coalizão Negra por Direitos apresentou uma solicitação ao Ministério da Saúde para a divulgação dos dados raciais dos contaminados e das mortes no Brasil. Nos primeiros números disponibilizados, negros representavam 23,1% das pessoas internadas por Síndrome Respiratória Aguda Grave, ao mesmo tempo em que correspondiam por 32,8% dos óbitos. Sofremos de subnotificações em relação aos diagnósticos no Brasil, porém em áreas periféricas isto é ainda maior pela falta de acesso a unidades de saúde que realizam esse atendimento.

Em São Paulo, os bairros da periferia têm o maior número de mortes confirmadas ou suspeitas de contaminação pelo vírus. Segundo dados divulgados pela prefeitura da capital paulista, 686 óbitos relacionados à Covid-19 foram registrados entre os dias 23 de fevereiro e a última segunda-feira, dia 13, no município. A região com maior quantidade de vítimas fatais foi a Brasilândia, periferia da zona norte, com 33 casos.

Houve inúmeras políticas de inclusão social nos últimos 15 anos no Brasil, em especial as políticas de transferência de renda, focadas na população periférica. Entretanto, políticas de cunho universalista não foram suficientes para combater as desigualdades raciais mesmo com a sobre-representação dos negros entre a população em situação de pobreza.

A sobreposição de raça e classe é a principal característica da desigualdade brasileira. Esse retrato é possível de se verificar a partir da análise de dados sociais, tais como: negras e negros compõem 47% dos trabalhadores informais, formam 77% dos entregadores de aplicativos, compõem 90% das trabalhadoras de limpeza, enquanto jovens negros morrem 75% mais do que jovens brancos.

Hoje, 80% dos usuários do SUS se autodeclaram negras e infelizmente esse sistema carece de investimentos básicos para atender a população. Mais do que isso, a invisibilidade das desigualdades raciais na hora do planejamento das políticas e ações de saúde leva a óbito milhares de negros. Um exemplo disto é a anemia falciforme (doença que se dá predominantemente entre a população negra no país), que torna as pessoas propensas ao desenvolvimento de casos graves de insuficiência respiratória, o que as inclui no grupo de risco da Covid-19.

Reprodução social e racismo estrutural

A reprodução social do sistema capitalista — e é para explicar a reprodução do sistema que Marx usa o termo — não é, portanto, sobre uma separação entre uma esfera não econômica e econômica, mas sobre como o impulso econômico da produção capitalista condiciona o chamado não-econômico. O “não-econômico” inclui, entre outras coisas, que tipo de estado, instituições jurídicas e propriedades formam uma sociedade — enquanto estas, por sua vez, são condicionadas, mas nem sempre determinadas, pela economia. (Tithi Bhattacharya,2018)

No processo de reconstrução da reprodução do capitalismo serão acentuados os aspectos de racialização do modo de produção. Cresce a demanda por hierarquização dentro da classe trabalhadora, ou seja, que pessoas racializadas sejam submetidas a uma situação de violência e miséria a níveis muito superiores.

Diante da pandemia, o Estado vem ampliando seu poder sobre a vida de cada pessoa. Seja pela vigilância e monitoramento através de celulares, sem nenhuma garantia do direito ao sigilo de informações individuais, seja pela forma como distribui os recursos públicos. Por exemplo, a escolha por compra de EPI’s por parte do Estado brasileiro é determinante para dizer se a contaminação pelo vírus será maior ou menor entre os trabalhadores expostos ao contágio. Esses trabalhadores, que hoje são tidos como essenciais para o funcionamento mínimo da vida de amplas camadas da população, são majoritariamente negros no Brasil. Ao negar proteção a esse setor, ou ao deixar de exigir que as empresas o façam, o Estado está lançando mão do seu poder de decisão sobre quem vive e quem morre.

Nós organizamos nossas vidas nos limites da reprodução do capitalismo, ou seja, nos momentos pós-jornada oficial de trabalho, seja de oito ou doze horas, com ou sem carteira assinada. Sendo assim, uma crise na produção do sistema capitalista, é também uma crise em nossas possibilidades de reprodução enquanto humanidade.

A volta à normalidade, defendida pelas elites, é a volta à reprodução de um sistema que gesta a morte de parcelas significativas dos brasileiros. Como? A pandemia vem demonstrando isso. A falta de seguridade social, a falta de saneamento básico, a falta de leitos de UTI, a falta de renda mínima num período de emergência. Todas essas escolhas sobre quem vive e quem morre não foram gestadas em fevereiro ou março de 2020, e sim todos os dias quando se escolhe no que investe e onde se corta gastos.

Portanto, é muito importante termos ações imediatas de exigência ao Estado pela sobrevivência da população. Mas apenas isso não basta, precisamos refletir sobre a reconstituição desse sistema que nos trouxe à situação atual. A morte de milhões é fruto da desigualdade social e racial que gere a lógica do sistema em que vivemos.

Construir um novo pacto civilizatório é tarefa fundamental. Não aceitar mais a morte de negros e negras como um fato, compreender que a naturalização de como os corpos negros são executados pelo Estado de diferentes formas todos os dias no país se sustenta pelas ideias que conformaram o racismo como algo fundamental ao sistema.

A solidariedade antirracista é uma arma poderosa para @s trabalhadores resistirem

O combate frontal à desigualdade racial neste momento é uma ação anticapitalista. Por isso, diante da condição brasileira, as ações de solidariedade em bairros e comunidades periféricas, protagonizadas por organizações vinculadas ao movimento negro, assim como as ações de movimentos de luta por moradia e entidades sindicais, ganham importância central.

Dar os devidos contornos raciais para essa ação é muito importante, pois a pobreza tem cor. Dizer isso é buscar junto a essas ações ampliar a consciência racial em nosso país. Mas porque isso é importante nesse momento? Porque estimativas indicam que pós-pandemia podemos retornar a índices de pobreza de 30 anos atrás. O retorno a esta situação não será uniforme, e com certeza já carrega consigo uma carga de discursos ideológicos fortes para explicar a situação que se avizinha.

Falar das ações de solidariedade antirracistas que vem ocorrendo nas comunidades em todo o Brasil é combustível para a esperança. Se é certo que não temos motivos para otimismo, pois a realidade se apresenta com muitos desafios, é certo que a necessidade de ter esperança é o que pode nos movimentar em busca da superação desse modo de sociabilidade existente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOLSANELLO, Maria Augusta. “Darwinismo social, eugenia e racismo científico”. Revista Educar. Curitiba, 1996.

BHATTACHARYA, Thiti. Como não pular a classe: reprodução social da força de trabalho e classe trabalhadora global. 2018. Artigo acessado em: https://medium.com/feminismo-com-classe/como-n%C3%A3o-pular-a-classe-reprodu%C3%A7%C3%A3o-social-da-for%C3%A7a-de-trabalho-e-classe-de-trabalho-global-bcea36904835

MBEMBE. Achille. Necropolítica. Editora: N-1 Edições. São Paulo, 2019.

* Professora, integrante do Setorial Nacional de Mulheres do Psol e da Resistência Feminista

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coronavírus / Racismo