Karl Marx nasceu em 5 de maio de 1818 em uma cidade da Alemanha, Tréveris (“Trier” em alemão), que contava então com 11 mil habitantes. (1) Até pouco antes, a cidade havia sido ocupada por tropas de Napoleão, mas este domínio estrangeiro não produzira maiores reações por parte da população. Depois da expulsão dos franceses, Tréveris ficou sob domínio do reino da Prússia, e teve aumentados os impostos fundiários e sobre cereais, além de sofrer com mais controle político. Fazia parte da tensão política a suspeita de que a pequena cidade alemã nutrisse simpatias pela França, além do fato de ter uma maioria católica, enquanto a Prússia era um reino protestante.
A família em que Marx nasceu era judia, e as menções a religiões não são detalhe, mas algo fundamental para se entender o contexto europeu e os destinos individuais. Em 1812, a Prússia revogou parte dos direitos dos judeus que haviam sido instituídos sob Napoleão, e também os excluiu das funções de professor, juiz, oficial, advogado e farmacêutico. Neste contexto, o pai de Marx, o advogado Heinrich Marx, com sua subsistência ameaçada, foi batizado como cristão. Optou pelo protestantismo provavelmente por este ser entendido como mais racionalista que o catolicismo. Heinrich tinha apreço por concepções iluministas e nada indica que fosse especialmente religioso enquanto judeu. Também não há indícios que tenha dado aos filhos uma educação religiosa judaica ou, posteriormente, cristã. Acreditava em Deus, mas sem o considerar na forma que alguma religião específica lhe dá. Quando adulto, Karl Marx discutiria a “questão judaica”, e isso fez com que detratores especulassem alguma espécie de trauma ou complexo vindo da infância e envolvendo sua família e a religião. Mas simplesmente não há nada que sustente minimamente esta hipótese.
A cidade de Tréveris era muito marcada pelo fenômeno europeu do pauperismo. De 20 a 30% dos domicílios dependiam de auxílios públicos. Os pobres ou que estavam em risco de cair em pobreza eram 80% dos domicílios. A família de Marx, entretanto, estava entre as 8% melhor situadas economicamente e, no início de sua adolescência, chegou a ter duas empregadas domésticas. Suas infância e adolescência foram tranquilas, tendo Marx crescido em um meio confortável e culto. Ludwig von Westphalen, um administrador público de ideais liberais e progressistas, semelhantes aos de seu pai, foi uma influência intelectual para o adolescente. Ludwig era pai de Jenny von Westphalen, de quem Marx foi amigo de infância e com quem iria se casar.
O evento político mais marcante para muitas gerações naquela época foi a Revolução Francesa iniciada em 1789 (uns 30 anos antes de Marx nascer). Ela foi construída por muitos agentes sociais diferentes e tem uma história complexa e com idas e vindas difíceis de sumarizar. Entretanto, sobressaem alguns de seus significados que animaram e amedrontaram pessoas de várias nações. A Revolução pautou limites ao poder dos reis seja pela ideia de que deveriam obedecer a uma constituição, seja pela de que a soberania política emana do povo, e não de Deus – ou, mais diretamente, pelo fato de ter cortado cabeças da família real e asseclas. A Revolução se bateu contra o poder da Igreja abolindo o dízimo e favorecendo um estado laico. Liberdade de imprensa, de expressão e religiosa eram também elementos explosivos contra a antiga ordem, além, é claro, do levante violento de camponeses contra a exploração senhorial. A declaração instituída de que os homens nascem livres e iguais, apesar de excluir mulheres, trazia um abalo ao edifício de dominação vigente na Europa. Era contagiante para alguns e desesperador para outros que a ação política coletiva pudesse mudar radicalmente a sociedade. Por toda Europa, havia quem se identificasse com os setores mais radicais da Revolução Francesa. Já outros queriam colher certas liberdades, empreender reformas sociais e políticas, mas temiam as demandas e a agitação dos mais pobres. E havia também os reacionários, para quem a palavra “revolução” evocava os medos mais profundos: um de seus principais pilares era justamente a monarquia prussiana.
Enquanto Marx ainda apenas brincava (o que envolvia fazer as irmãs comerem “bolos” de terra) (2) , na sua cidade ia crescendo o descontentamento com o governo prussiano. Além do problema econômico já citado, o rei não cumpriu uma promessa de assembleia representativa que fizera, o que fomentava inclusive ideias separatistas na região (muito embora também houvesse expressão de apoio, como o próprio pai de Marx chegou a manifestar em situações específicas). Buscava sua legitimidade através de uma renovada ênfase na religião e se expressava fortemente na vigilância sobre a população. Temia a atuação de “demagogos” que espalhassem o jacobinismo (que foi a tendência mais radical da revolução francesa) e atacava diversas associações, como a de estudantes. (3)
As instituições de educação eram espaços do exercício deste controle, e Marx o vivenciou no ginásio de Tréveris. O governo promoveu retrocessos nos currículos, com a perspectiva humanista sendo combatida em favor do esteticismo; e o ensino do grego desvalorizado porque a antiguidade grega era associada à liberdade. Até a prática organizada da ginástica foi proibida. Um decreto de 1819 dizia que nenhum professor deveria incitar a juventude “à arrogante presunção de achar que lhe competiria ter opinião própria acerca dos acontecimentos atuais” ou “a colocar em andamento uma sonhada melhoria na ordem das coisas”. Em relação às aulas de História, se esperava que não se fizessem comparações com acontecimentos contemporâneos e se devia evitar “discussão com os jovens, para que aprendam desde cedo a seguir as leis impostas sem questionar e a se submeter docilmente à autoridade vigente.” Esperava-se também que professores verificassem se os alunos participavam de reuniões entre si ou com outros jovens e o que discutiam ali. Johannes Steininger, que deu aula a Marx de Ciências Naturais, Física e Matemática, tematizava em suas aulas que resultados de pesquisas contrariavam leituras literais da Bíblia. Ele sofreu um processo por conduzir seus alunos ao ateísmo e também foi suspeito de não ter “sentimentos patrióticos” por ser leitor de obras francesas. Por outro lado, Marx também teve professores conservadores como Vitor Loers, que se recusou a ministrar aula a um estudante por conta de seu bigode.
Não é possível saber com detalhe como Marx vivenciou estas situações em sua escola. Mas, por influência de seu pai e de Ludwig, provavelmente o adolescente se identificasse mais com os professores progressistas e repudiasse a atmosfera reacionária que cercava a sociedade. No mais, pelas notas, Marx foi um bom aluno, mas não um excepcional. (4) Recebeu reclamações por conta de sua caligrafia (cuja qualidade não mudaria com o tempo) e por se expressar, em uma redação, de maneira considerada muito incomum.
Vale menção um episódio da pequena cidade que deve ter chamado a atenção de Marx. Em janeiro de 1834, um jantar foi oferecido a muitas pessoas no Cassino Tréveris, e dele participaram inclusive o pai de Marx e alguns de seus professores. Em hora já avançada, e depois de alguma bebida, os convivas, em um gesto de ousadia, começaram a cantar em francês músicas revolucionárias, como a Marselhesa. Mais desinibidamente, alguém estendeu a bandeira tricolor (um símbolo da Revolução) e outro, um advogado de nome Brixius, disse que, se não fosse pela França, ali estariam todos pastando como gado. Brixius sofreria um processo por alta traição: do lado de fora, um capitão do exército prussiano flagrava tudo pela janela e delatou o que vira a seu general.
Em 1835, com 17 anos, Karl Marx saía de Tréveris para estudar direito em Bonn.
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PARTE 2 – Karl Marx estudante de Direito (1835-1841)
NOTAS
1 – Salvo quando indicado diferentemente, todos os dados biográficos de Marx tem como referência HEINRICH, Michael. Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna. Biografia e desenvolvimento de sua obra.Vol.1 (1818-1841). Tradução de Claudio Cardinali. São Paulo: Boitempo, 2018. pp 37-144.
2 – JONES, Gareth Stedman. Karl Marx: greatness and illusion. Cambridge: Belknap Press, 2016. p. 35
3 – Idem. p. 22
4 – Idem p.38
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