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Os empresários bolsonaristas do Instituto Brasil 200 e o desprezo pela vida

Twitter/Jair Bolsonaro

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por: André Guiot*, de Duque de Caxias, RJ

Em artigo publicado neste portal, Elaine Bortone e Rejane Hoeveler dão conta das articulações do empresariado, de variados portes, que namoram ou transam despudoradamente com o bolsonarismo, atuando para atropelar todo e qualquer colchão protetivo para a classe trabalhadora diante da ameaça de contágio pelo Covid-19.

Muitos desses empresários constituem o Instituto Brasil 200 (IB200), uma entidade bolsonarista que possui laços não oficiais com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), mas que nela funciona como uma espécie de “bunker”: não apenas como abrigo do ideário e práticas olavo-bolsonaristas, mas também como canal de expressão e divulgação de uma sinistra e subterrânea visão de mundo conspiracionista, anticientífica e desumana.

A iniciativa de lançamento do IB200 foi encabeçada pelo empresário Flávio Rocha (Riachuelo) que, em resposta à revista IstoéDinheiro, olavizou: “O Brasil 200 se difere de outros centros de pensamento liberal por também apoiar uma agenda cultural. ‘O inimigo hoje é mais o marxismo cultural que o econômico’”. Segundo a reportagem, “Uma ação do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte contra a Riachuelo foi o estopim para a criação do movimento Brasil 200”. Pequenos empresários a favor da Riachuelo protestaram contra a ação do MPT. O empresário Gabriel Kanner (neto do fundador da Riachuelo), presidente do Instituo, afirmou que esse caso é um “exemplo de que no Brasil, o patrão é sempre o vilão e quer oprimir os empregados”.

Obviamente, a narrativa de criação do Instituto não apresenta seus reais interesses: serve essencialmente como engodo para atacar as frágeis instituições voltadas à fiscalização da exploração do trabalho dentro das regras da legislação burguesa – e, como sempre, se apresentam como vítimas destas. O próprio Kanner revela as pretensões do Instituto: “Queremos assumir um maior protagonismo político e furar os canais de lobby empresarial, com uma linha direta com o governo”.

No site do Instituto, constam como membro do Conselho Consultivo os empresários Gabriel Kanner (Riachuelo), Flávio Rocha (Riachuelo), Luciano Hang (Havan), João Appolinário (Polishop), Washington Cinel (Gocil), Sebastião Bomfim (Centauro), Cris Arcanlegi (Shark Tank Brasil), Marcelo Pessoa (Galápagos
Capital Gestora de Fundos), Afrânio Barreira (Coco Bambu) e o diretor da coordenação nacional Zizo Ribeiro (cofundador do Vem Pra Rua que afirma viver de “investimentos em negócios que fez ao longo da vida”, segundo o site The Intercept_Brasil).

De acordo com seu site, os debates promovidos pelo Instituto “contam com o apoio de uma rede ampla formada por representante em todos os estados da federação”. Serão necessárias pesquisas mais amplas, mas, ao que tudo indica, trata-se de uma entidade com grande peso em São Paulo (5 dos 15 coordenadores atuam em cidades do Estado), composta por empresas de pequeno e médio porte, que “juntas faturam mais de 40 bilhões de reais”.

Nas ruas contra o povo

No dia 15 de março de 2020, os empresários bolsonaristas se envolveram diretamente nas manifestações a favor de Jair Bolsonaro. Tentando se esquivar da imagem de golpistas, decidiram apoiar as manifestações, afirmando que as pautas teriam “evoluído”: “Defendemos a Reforma da Previdência, a reforma administrativa e o pacote anticrime de [Sérgio] Moro e, por isso, daremos o nosso apoio”, disse Kanner.

Tal álibi, contudo, não inibiu o grupo de participar, através de influência política e recursos financeiros, de manifestações declaradamente a favor do fechamento do Congresso Nacional e o STF, de chamamento à intervenção militar e a destruição de direitos dos trabalhadores.[1]

A lógica fúnebre do IB200

Muito embora o Instituto não tenha publicado editorial marcando sua posição em relação ao isolamento vertical (ou seletivo) e/ou horizontal (ou ampliado), dois dos empresários do grupo soltaram artigo sobre a questão e suas implicações econômicas e sociais. Como tais publicações constam no próprio site do Instituto – e não há artigos divergentes –, parece óbvio que o Instituto as endossa.

Em apertada síntese, o artigo de Zizo Ribeiro,  intitulado “A Cura não pode ser maior que a doença”, publicado em 24 de março, traz duas linhas-mestras: a) “deve-se manter a capacidade da população gerar renda para que possa SOBREVIVER” (caixa alta no original); b) apela para o “risco sistêmico” (convulsão social, 40 milhões de desempregados, resgatando estimativa de acionista da XP, “não pagamento gerando crise de confiança e de crédito”, baixa arrecadação para custeio do funcionalismo público).

As saídas apontadas pelo autor são: a) impressão de moeda; b) tomada de empréstimo junto ao setor financeiro; c) transferências de R$ 3 bilhões e R$ 1 bilhão, respectivamente, do fundo eleitoral e partidário para a saúde; e d) redução em ao menos 25% dos salários do funcionalismo público “que ganham mais que dois salários mínimos”. Conclusão do autor: “é extremamente necessário que os governantes iniciem a abertura do comércio de forma gradual e retome as atividades da indústria, escolas, restaurantes e serviços a partir do dia 7 de abril (…)” (destaques meus), com os devidos cuidados de higiene e comportamentais.

Percebe-se claramente que o que está em jogo é a manutenção dos negócios, apresentados como condição para manutenção da sobrevivência. Nesta linha, a viabilidade da vida social confina-se apenas na venda da mercadoria força de trabalho e, assim sendo, não teria a menor lógica entender a sobrevivência social fora das condições impostas pelo mercado, senão sob a ameaça de “risco sistêmico”. Ou seja, na sociabilidade empresarial, o foco é manter as condições gerais, seja qual for a situação, que minimizem impactos sobre as decisões de investidores – produzindo um “ambiente adequado para os negócios” – e, ao mesmo tempo, que “otimizem” medidas orientadas que implicam deterioração da qualidade de vida e trabalho dos trabalhadores em geral, e do funcionalismo público em particular.

É, de fato, estarrecedor (ainda que não seja de todo surpreendente) que o empresário bolsonarista publique um artigo incitando a retomada das atividades econômicas (inclusive de escolas!) para o dia 7 de abril, quando, na data em que publicou o artigo (24/04), 7 dias após o 1º caso registrado, já se contabilizavam no Brasil 46 mortes e, no dia 07 de abril, 800 mortos.[2] Como todos sabem, os óbitos contabilizados são oriundos de dados oficiais e, portanto, subnotificados, haja vista que o país está dentre aqueles que menos testam contaminados e óbitos por covid-19 no mundo, notificando como causa mortis doenças vinculadas à insuficiência respiratória ou enfermidades pré-existentes.

No dia posterior, em 25 de março, foi publicado artigo de Lúcio Flavio Rocha (empresário baiano e fundador à época do Movimento Brasil 200, em Sergipe) intitulado “Corona Vírus: o letal efeito colateral do remédio”. Nele, há também uma suposta “preocupação social” com os trabalhadores (desemprego e carestia), como também com a arrecadação dos estados e municípios, inquietações logo descartadas com os argumentos posteriores.

O texto carrega duas matreirices, bem rentes ao senso comum, que não suportam um exame crítico.

Na primeira, traz opiniões de três especialistas (um infectologista renomado, uma geriatra e um biomédico) que estão afinadas com suas filiações político-ideológicas e interesses econômicos. A primeira, dentre outras considerações, diz temer que a paralisação geral da economia crie problemas no sistema de saúde; a segunda afirma que há uma “pandemia de histeria”, profetizando que “na maioria absoluta dos casos não será mais que um resfriado leve”, com que o autor arremata em seguida “Lembra a tal gripezinha? Pois é”; e relata “longa conversa” com o terceiro, “que subscreveu tudo que os especialistas anteriores falaram”:

O vírus é de alto contágio, mas como já sabemos, a maioria absoluta das pessoas terá a doença de forma assintomática ou com sintomas leves. Aí mora o perigo: ao estar confinadas em suas casas, no mesmo ambiente com demais membros da família, a pessoa poderá estar levando o vírus para os idosos e mais vulneráveis no seu lar. Pronto! Este é o problema! A questão não deveria ser resolvida com recolhimento e paralisação de toda a sociedade, mas apenas com o isolamento total dos idosos e mais vulneráveis. Desta forma a sociedade mais resistente adquiriria o vírus sem maiores problemas, criaria uma imunidade coletiva e faria o famoso tampão de contágio. Ou seja, não precisa parar o mundo pois praticamente todo mundo vai pegar este vírus cedo ou tarde. É a opinião de quem entende do assunto.

Na segunda, diz o autor que

As estatísticas apontam que os efeitos na economia trarão mais sequelas do que a pior previsão de óbitos com a covid-19. É uma questão fácil de entender, de matemática de primeiro grau. E então? Manteremos o discurso politicamente correto com tudo fechado e deixaremos nosso país virar uma terra arrasada?

O autor reclama das medidas restritivas adotadas pelos estados e municípios, afirmando que “não possuem amparo legal ou constitucional, cabendo apenas ao presidente da República, com respaldo do congresso nacional, decretar tais impedimentos (…)”, o que foi posteriormente rechaçado pelo STF. Num arroubo bolsolavista típico, o empresário alerta: “Quem está de acordo com medidas autoritárias de governos que fecham comércios, prendem empresários e apreendem mercadorias, deveria estar empreendendo na China, Coréia do Norte, Venezuela ou Cuba”.

Fica claro o profundo menosprezo pelo cuidado com a vida humana, chegando às raias do deboche, tal qual seu “mito”. Engrossando o coro com seu colega empresário bolsonarista, lança mão da chantagem emocional de um alegado caos social (“tendência de um aumento drástico de falências, desempregos, violência e até suicídios”), operacionalizando medos, incertezas e mesmo ressentimentos. Em paralelo, os esforços de minimização dos efeitos da covid-19 (“gripezinha”) são, na verdade, um endosso ao negacionismo.

Altas autoridades científicas especialistas em epidemias, destacados médicos sanitaristas, epidemiologistas, infectologistas, entidades e organizações nacionais e transnacionais, ministérios governamentais, conselhos de saúde, universidades, centros avançados de pesquisa, laboratórios especializados, de todo o mundo, comprovam que o método mais eficaz de combate ao covid-19 é, por enquanto, o isolamento social horizontal.

A eficácia do isolamento vertical (ou “seletivo”) é fantasiosa e aponta para a negligência e, no limite, o “descarte” de vidas: jamais os grupos de risco conseguirão isolar-se do restante da população. O confinamento absoluto destes grupos é impossível, se se quer ampará-los minimamente, durante um período de meses, com recursos materiais (farmacológicos, alimentícios, vestimentas, etc.), psicológicos, emocionais, e de cuidados especiais que requerem envolvimento permanente de familiares, amigos e cuidadores. Simplesmente, não há como realizar um “tampão de contágio” sem pôr em risco permanente e sacrificar os grupos de risco “isolados”. Aliás, são numerosos os casos de óbitos (25%) daqueles que estão fora da faixa etária considerada “de risco” e que não são portadores de comorbidades responsáveis pelo agravamento do quadro clínico.

Por fim, é torpe e detestável o argumento que lança mão de “estatísticas” que “apontam que os efeitos na economia trarão mais sequelas do que a pior previsão de óbitos com a covid-19”. Trata-se da naturalização da barbárie social, acrescida da monetização da vida. Que tais “estatísticas” estejam balizadas por adoção de medidas de política econômica ultraliberais não é novidade – afinal elas não são “exatas”, ou seja, correspondem às relações de poder que atravessam a sociedade capitalista.

A questão passa, desde o ponto de vista empresarial, por tentar mensurar, em termos de impactos econômicos, macabramente, quanto perdem os donos do capital: ceifar milhares de vida ao liberar imediatamente as atividades de largos setores econômicos, resguardando seus negócios sob o pretexto da defesa da “economia” e da “manutenção de postos de trabalho” lhes parecem mais racional do que ingressar, num incerto cenário pós-epidemia (se isto de fato existirá), num projeto de “recuperação destrutiva” do tecido social que, de qualquer maneira – e tendo o atual campo de forças políticas mais ou menos preservado -, continue lhes sendo amplamente favorável. O pragmatismo, o imediatismo e o desprezo pela vida humana dos trabalhadores e das trabalhadoras, tendo o “lucro acima de todos”, é o caminho traçado pelos empresários bolsonaristas do IB200.

 * Doutor em História (UFF), Professor da rede municipal de Duque de Caxias e membro do Grupo de Trabalho e Orientação (GTO), coordenado pela professora Virgínia Fontes.

[1] Havia cartazes com mensagens como: “o bem vence o Maia”, “intervenção militar já”, “Congresso inimigo do Brasil” e “o vírus que mais mata é a corrupção”.

[2] Para acompanhar os casos de infectados, de óbitos e recuperados da covid-19 no Brasil e em muitos países do mundo ver https://www.worldometers.info/coronavirus/country/brazil/. No caso emblemático da Itália o número de óbitos oficiais era de 6.820 no dia 24/03 e de 17.127 no dia 07/04. https://www.worldometers.info/coronavirus/country/italy/.