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BRASIL

Refletindo a cidadania: um diálogo necessário em tempos de pandemia

Isaías Reis de Paula*, de São Paulo, SP
PMC/Fotos Publicas

Diante da lógica neoliberal em tempos de pandemia, num cenário em que milhões de trabalhadores estão perdendo suas fontes de renda, é que se constituiu a análise aqui expressa.

O dinheiro e tudo o que este pode proporcionar, sobretudo o poder, funciona como um grande regulador de todos os mecanismos que fazem o mundo movimentar, colocando o Estado, para além da gestão da morte – Necropolítica –, como um “Estado Suicidário”, nas palavras do Prof. Vladimir Safatle, onde é ele, o Estado, o agente das catástrofes, aquele que cria mecanismos, gera meios com o propósito de se estabelecer verticalmente um processo quase que autodestrutivo. As ideias de um “mandatário” se legitimam nos atos impensados de seguidores fiéis e cegos, mas são fundamentais para a consolidação de todo e qualquer ideário fascista.

Ao longo do tempo, os interesses sociais foram suprimidos pelos econômicos. O mercado e sua lógica de auto regulação funcionam como o centro de todas as ações e os trabalhadores vivem com suas migalhas. Em períodos de liberalismo ou neoliberalismo, em que os princípios de Estados mínimos[1] espalharam-se, os trabalhadores e a população, de forma geral, “órfãos” ficaram, sem proteção ou regulação do Estado:

Propaga-se um neoliberalismo fundamentado principalmente na ideologia da modernização do Estado, que deve se dar pela sua reforma e reestruturação, em vista da profunda crise de acumulação e a  consequente impossibilidade de manutenção dos direitos sociais dos cidadãos, que devem ser transformados em mercadorias a serem atendidos pelo mercado ou extintos, no caso da incapacidade de consumo. (Mestriner, 2005, p. 22).

Mestriner procura evidenciar o que se tornou a proteção social em tempos de neoliberalismo, uma mercadoria a ser consumida por aqueles que têm condições de assim fazer. Mas os questionamentos são em relação àqueles que não têm e não terão recursos para comprá-la, sobretudo no hodierno. A estes não pode restar, única e exclusivamente, a sorte.

Uma das facetas da desresponsabilização do Estado está na culpabilização das famílias usuárias de programas de transferência de renda, que em meio a todo cenário adverso são responsabilizadas pelo fracasso, enquanto mantenedoras e mediadoras de seus membros com o mundo externo e abandonados à própria sorte, independente do contexto.

Os mecanismos utilizados pelos governos são muitos, mas a permanência partidária no controle político, no Brasil, tem no uso das políticas sociais uma grande aliada. Determinados paradigmas, como a desresponsabilização do Estado ou a propagação da cultura da benevolência, servem à manutenção no comando da máquina estatal.

No caso dos programas de transferência de renda, os regulares e os instituídos em regime de emergência, tais como o Auxílio Emergencial[2] de 2020, a fim de abrandar a carência material do por vir, a estrutura doadora fica evidente, pois aos olhos de quem recebe e, sobretudo, dos que a eles não terão acesso, esse ato pode indicar a ajuda, o favor, o presente que foi concedido na contramão do que a Constituição preconiza.

Os contornos do Estado de Doação são de suma importância para a construção cultural dos mais pobres, uma vez que os elementos subjetivos que os conformam são a base da construção cultural do que Cintia Sarti classifica como “moral dos pobres”. Vale ressaltar que há algumas implicações em face da desresponsabilização do Estado, no caso, para o que aqui se problematiza, esta se apresenta na tese de que alguém ou algo está sendo responsabilizado. O que pretendemos demonstrar nesta análise é a responsabilização instituída sobre as famílias pobres que sobrevivem apoiadas numa rede informal de proteção, seja para a alimentação ou nos cuidados com crianças e idosos:

Os papéis familiares complementam-se para realizar aquilo que importa para os pobres, repartir o pouco que têm. Isso, entretanto, não se limita à família. Na mesma medida em que a alimentação é a prioridade dos gastos familiares, oferecer comida é também um valor fundamental, fazendo os pobres pródigos em oferecê-la. (Sarti, 2005, p. 61).

Oferecer comida, dividir o pão, a luta, o sofrimento e/ou padecer juntos funcionam como mecanismos de uma estratégia de sobrevivência, obviamente, assim será por todo o período da quarentena. Todavia, impossível seria sobreviver sem a intervenção do Estado, usufruindo apenas de uma rede parental/amizades como estratégia de sobrevivência. Ao Estado o que é do Estado, conforme preconiza a Constituição, independente da torpe moral que se estabeleceu pelo Executivo Federal.

A construção da proteção social no Brasil pode ter formado uma identidade cultural de assistidos, de incapazes, do ser que não consegue andar com suas próprias pernas e que tem no Estado o seu porto seguro, “pois ele é quem garante sua sobrevivência”, mesmo num período como o atual, onde a economia está quase  paralisada.

Inclusive, é importante ressaltar que hoje se instiga a ideia de uma eventual falência do país por conta da não vontade/desejo dos brasileiros em deixar suas residências para “seguir seguindo”, ou seja, assistimos, mais uma vez, um discurso alusivo a uma culpa dos trabalhadores pelas tempestades que passaremos no pós pandemia.

Entendemos, portanto, que há um distanciamento entre o que estabelecem as leis e o imaginário popular, isto, obviamente, reverbera na lógica de apropriação/efetivação dentro de uma determinada cultura, afetando, assim, a forma como elas serão experimentadas/vivenciadas. A lei, por si só, não garante equidade e sim como ela é percebida e vivenciada no cotidiano.

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  (Constituição Federal de 1988, artigo 6°).

As políticas de proteção social brasileira, no entanto, sempre estiveram atreladas à condição de trabalhador formal. Telles afirma que o indivíduo só tem proclamada sua condição de cidadão quando consegue o seu primeiro registro em carteira, portanto, aqueles que não o tem, detêm uma subcidadania:

[…] sua identidade é atribuída pelo vínculo profissional sacramentado pela lei e que o qualifica para o exercício dos direitos. O cidadão como indivíduo não tem identidade e figura própria: a verdadeira figura da cidadania é o sindicato. É ele que tem a posse de direitos e é através dele que o trabalhador reconhecido pelo seu vínculo legal à corporação profissional pode ter acesso aos benefícios sociais garantidos pelo Estado. (Telles, 2008, p. 90).

Não muito improvável, assistiremos/ouviremos discursos que apontam que aqueles em condição de desemprego e que não exercem nenhum tipo de atividade autônoma com fins remuneratórios não fazem jus – do ponto de vista moral – ao recebimento dos recursos a serem disponibilizados na forma do Auxílio Emergencial.

O Brasil “adentrou” ao mundo moderno, conforme se nota, trazendo para essa modernidade velhos preceitos que o atrelam a um passado que ainda não abandonou. A velha sociedade patriarcal, na qual a Assistência Social estava ligada à caridade, ainda persiste em uma realidade que, teoricamente, deveria ter sido ultrapassada nos pós Constituição de 1988. Entretanto, o peso do atraso ainda pode ser percebido, como comenta Telles:

Em primeiro lugar, estamos diante de uma sociedade que não apenas se quer moderna como, em alguma medida, se fez moderna: é uma sociedade que se industrializou e se urbanizou, que gerou novas classes e grupos sociais, novos padrões de mobilidade e de conflito social, deixando para trás o velho Brasil patriarcal; é uma sociedade portadora de uma dinâmica associativa que fez emergir novos atores e identidades, novos comportamentos, valores e demandas, novas formas de organização e de representação que teceram a face pública de um Brasil moderno; é uma sociedade, enfim, que fez sua entrada na modernidade, que proclamou direitos, montou um formidável aparato de Previdência Social, que passou pela experiência de conflitos e mobilizações populares e construiu mecanismos factíveis de negociações de interesses. Nesse caso, a persistência desconcertante da pobreza parece reativar velhos dualismos nas imagens de um atraso que ata o país às de seu passado e resiste, tal como a força da natureza, à potência civilizadora do progresso. (2006, p. 80).

Entender a construção da cidadania no Brasil é de suma importância no encontro de respostas que possam sanar as lacunas obtidas ao analisar os direitos sociais. Pensar “Direito” é antes de tudo pensar naquilo que acompanha o indivíduo como algo imprescindível e inalienável; não tratamos aqui de medidas supérfluas ou insignificantes, já que os direitos sociais são de grande relevância para “sobreviver” em uma sociedade de economia pautada na desigualdade – ainda mais em tempos de pandemia – onde há o risco real e imediato a vida de todos os cidadãos, sobretudo os mais pobres, já que “necessitarão” de diretas intervenções.

Como pode ser observado na passagem de Telles, acima, a construção da cidadania no Brasil moderno, ocorreu seguindo velhos preceitos. O peso cultural da benemerência é fato e está presente nas relações sociais cotidianas. Compreender direitos, antes de tudo, significa conhecer direitos, ter ciência daquilo que legalmente lhe pertence, ou que se faça jus. Para tanto, é necessário lembrar do jogo de interesses que se tem entre os governantes, capitalistas e a sociedade de uma forma geral. A pobreza é reflexo de um atraso que se quer negar a todo custo, pois nos evoca a um passado que se quer purificar, já que nos amarra à condição de subdesenvolvidos.

Os usuários de programas sociais, culturalmente, são percebidos como os que sobrevivem com as “migalhas” deixadas pelo sistema através de práticas voltadas à benemerência, à doação, uma vez que não conseguem caminhar com suas próprias pernas, assim sendo, não são considerados cidadãos, ou detêm uma cidadania parcial/limitada.

Isto posto, ganha sentido a ideia de “ajuda” largamente veiculada durante a proposição do Auxílio Emergencial, cuja finalidade é manter a sobrevivência bem como o poder de compra de um extrato da população.  Tais recursos, importante ressaltar, farão com que uma parcela da economia continue se movimentando, sendo específico, não serão só os cidadãos os beneficiados, muito pelo contrário, as empresas das quais consumirão serão, talvez, as principais beneficiadas, já que estas contabilizarão lucros e não apenas encherão suas barrigas e/ou suas mãos higienizarão.

Este é um grande desafio a ser enfrentado, pois a cultura da doação está intrinsecamente atrelada ao desenvolvimento de nossa sociedade, que se constituiu como tal, durante décadas de políticas sociais vinculadas a benemerência, aliada a trivializarão da pobreza que Telles explicita:

Como paisagem, essa pobreza pode provocar a compaixão, mas não a indignação moral diante de uma regra de justiça que tenha sido violada […]. A pobreza é trivializada e banalizada, dado com o qual se convive – com um certo desconforto, é verdade -, mas que não interpela responsabilidades individuais e coletivas. Como se sabe, a trivialização é sinal de uma incapacidade de discernimento e julgamento. (2006, p. 105).

Ver a pobreza como uma mera paisagem contribui com a manutenção dessa realidade cultural, que, por sua vez, se apresenta como grande entrave no desmonte do imaginário assimilado. Tal percepção faz com que o atendimento de necessidades emergenciais que demandem a transferência direta – ainda que insuficientes – de recursos a um estrato mais pobre da população, mesmo sendo previsto em lei, seja alvo de fervorosas discussões.

A ausência de direitos socialmente instituídos configura uma possível incivilidade, pois não há como construir uma cidadania plena sem a efetivação deles. Trazer o Brasil à modernidade sem proclamá-los é perder-se em falácias. Muito mais do que se pretender moderno, tem que se constituir moderno.

A modernidade que aqui se configurou aconteceu em meio a crescentes iniquidades sociais, para as quais o pobre só tem direito a não ter direitos, e, como tal, poderá ter acesso a todo o tipo de doações (ajuda), seja ela feita por políticas sociais diretamente controladas pelo Governo, seja por meio de Organizações Não Governamentais (ONGS) e entidades Filantrópicas:

[…] incivilidade que se ancora num imaginário persistente que fixa a pobreza como marca da inferioridade, modo de ser que descredencia indivíduos para o exercício de seus direitos, já que percebidos numa diferença incomensurável, aquém das regras de equivalência que a formalidade da lei supõe e o exercício dos direitos deveria concretizar […]. (Telles, 2006, p. 87).

Este peso cultural de não detenção de direitos está presente em todos os campos da sociedade e as políticas sociais não fogem a essa regra. A incivilidade atribuída para aqueles que estão à margem da detenção de direitos implica uma série de paradigmas, que tendem a inferiorizá-los e colocá-los como incapazes e/ou desvalidos.

A pobreza que sempre caminhou junto com a sociedade brasileira nunca despertou indignação social, mesmo sendo sinal de retrocesso, nunca adentrou no debate cotidiano, nem aflorou a ponto de mobilizar a sociedade a fim de obrigar os Poderes a instrumentalizar a plena efetivação dos direitos constitucionais:

Seria possível dizer que essa figuração pública da pobreza diz algo de uma sociedade em que vigoram as regras culturais de uma sociedade de uma tradição hierárquica, plasmadas em um padrão de sociabilidade que obsta a construção de um princípio de reciprocidade que confira ao outro o estatuto de sujeito de interesses válidos e direitos legítimos. (Telles, 2006, p. 86).

A concepção de direitos na sociedade brasileira, como dito, atrela-se ao merecimento: quando o cidadão o detém é porque socialmente tem alguma valia; o seu trabalho ou sua condição financeira lhe facultam direitos. Quando ele não possui nenhum desses pré-requisitos, vive a margem da sociedade, a qual, com as migalhas de sua caridade, poderá, se assim desejar, lhe subsidiar mínimas condições de sobrevivência.

O descompasso entre a lei e o cotidiano fomenta percepções/discussões descabidas e desnecessárias, ainda mais em tempos de crise humanitária, tal como a que se atravessa. Um Estado que desampara, que deixa órfãos seus cidadãos, de forma alguma pode ser considerado um equipamento de uma democracia.

Para além do tamanho do Estado, o que aqui se discute é a função moral e legal de sua existência. Entendemos o Estado como a única instituição que pode, frente aos anseios e necessidades do coletivo, fazer frente ao capital. Agora, ver a defesa escancarada e imoral da virilidade da Economia em face de milhares de mortes é por demais desumano, sendo que tais ações só se materializam em nações que não esclareceram as bases de sua cidadania.

Vale frisar, portanto, que o pretendido aqui é chamar atenção para Políticas de Redução de Danos, já que os recursos não resolverão o problema, apenas atenuarão o sofrimento de milhões de cidadãos, pois dinheiro algum nos livrará das inúmeras mortes. Todavia, a discussão que se propõe centraliza-se no Estado que queremos em todos os momentos, tanto na bonança quanto na tempestade.

Referências

BRASIL, Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1998 / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

MESTRINER, Maria Luiza. O Estado entre a filantropia e a assistência social. 2. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005.

PINSKY, Jaime. Introdução. In PINSKY, Jaime, PINSKY, Carla B (orgs.). História da cidadania. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

SAFATLE, Vladimir. Bem-vindo ao Estado suicidário. O jornal de todos os Brasis. Disponível em: https://jornalggn.com.br/blog/doney/bem-vindo-ao-estado-suicidario-por-vladimir-safatle-n-1-edicoes/. Acesso em 28/03/2020.

SARTI, Cyntia Andersen. A Família Como Espelho. São Paulo: Cortez Editora, 2005.

TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania no Brasil. São Paulo: Editora UFMG, 2006.

 

Notas:

[1] Tendência do liberalismo econômico, onde os Estados tendem a diminuir suas áreas de atuações, sendo práticas constantes as privatizações e transferências de responsabilidades.

[2] Política implantada em Abril de 2020 em face das consequências da pandemia da Covid-19, onde cada pessoa que tiver direito deve receber três parcelas de R$ 600. A lei prevê a possibilidade de o governo prorrogar o benefício enquanto durar o estado de calamidade pública por causa da covid-19. Cada família pode acumular, no máximo, dois benefícios, ou seja, R$ 1.200. A mulher que sustentar o lar sozinha terá direito a R$ 1.200.

* Graduado em Geografia e Pedagogia; Mestre em Políticas Socias; Coordenador Pedagógico na Secretaria Municipal de Educação (SME-SP); Palestrante/formador.