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OPRESSÕES

Como é o vírus visto em cores?

Lucas Brito, de Brasília, DF

Como de costume, todas as manhãs eu leio as notícias. Hoje, uma em especial, me chamou a atenção. A manchete dizia algo assim: ONG LGBTI+ do Reino Unido desaconselha jovens LGBTI+ a saírem do armário em período de lockdown pela pandemia. A justificativa do inusitado conselho é de que, como de costume, poderia haver represálias por parte dos familiares, incluindo a expulsão de casa, aumentando o risco de contágio pelo novo coronavírus. 

Como é cruel, não? Isso nos mostra que, nos marcos da situação relacionada à pandemia do novo coronavírus, as pessoas LGBTI+ têm não somente as mesmas preocupações que todos os demais, mas algumas especiais, um tipo de requinte da tragédia atual – típica do sistema capitalista, que comunga exploração, opressão e dominação. 

Há dias tenho pensado sobre como é a pandemia vista desde a questão LGBTI+. Pensando, lendo algo e nos vendo pelas redes sociais, cheguei à conclusão de que há, pelo menos, quatro aspectos fundamentais:

 

1 – Quarentena com lgbtifobia

O isolamento social ambientará um possível acirramento das violências dentro da família (homolesbotransfobia familiar). Já há um aumento da violência contra pessoas LGBTI+. Uma reação às conquistas alcançadas no último período, como o casamento ou a criminalização da homofobia e transfobia? Ou consequências de pontos sem nós, onde a “libertação” sexual e de gênero, mediadas pelo mercado, não foram tratadas de forma radical? Opino pelas duas, operando conjuntamente. 

Há uma disputa aberta sobre os padrões sociossexuais, o que ocorre em todo o mundo. No Brasil, mais da metade das pessoas LGBTI+ sofreu algum tipo de violência desde as eleições de 2018 até o início de 2019, revelando o impacto material do discurso sexual/moral conservador. Nem sempre dispomos de muitos dados precisos, mas muitas pesquisas indicam que a família é um dos principais ambientes da violência contra LGBTI+, muitas vezes o primeiro. Em quarentena, assim como os casos de violência machista, a homolesbotransfobia deverá crescer 

2 – Acesso à renda básica emergencial

Um grande desafio atual é a subsistência de profissionais precarizados/as, terceirizado(a)s, informais etc., impactando diretamente pessoas LGBTI+. No Brasil, 20% das empresas se recusam a contratar homossexuais. Ao mesmo tempo, setores caracterizados por maximizarem a exploração, como os call centers, preferem contratar pessoas LGBTI+, já que no atendimento telefônico/digital não têm receio de terem sua imagem associada a essas pessoas. Ou seja, estamos entre duas tendências: não sermos aceitos/as no mercado e sermos aceitos/as, preferencialmente, no mercado informal/precarizado. Portanto, as LGBTI+ engrossarão as filas para acessar a renda emergencial de R$ 600,00 (até R$ 1.200,00): cabeleireiras, barbeiros, prestadores de serviço em geral, maquiadores/as, etc.. 

Ai que entram, também, os/as profissionais do sexo que são LGBTI+, em especial mulheres trans e homens cis gays/bi. A prostituição é reconhecida na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), na categoria de trabalhadores dos serviços diversos. Afetadas/os pela pandemia, profissionais do sexo também estão entre o risco de contágio e morrer de fome. Mas qualquer que seja o caminho, o estigma estará presente. Vi em uma matéria uma fala que me marcou muitíssimo: “Já somos vistas como vetor de doenças, e agora também nos olham como responsáveis pela propagação do coronavírus”. Apesar de terem o direito ao auxílio, por toda a situação, temos de estar atentos/as para saber quantos/as profissionais do sexo conseguirão acessar o auxílio emergencial e lutar para que isso ocorra. As chances de esse direito ser negado são altíssimas. 

3 – O discurso conservador do pecado e o discurso fascista do “sobrevivente do caos”

Mesmo na pandemia, está mantida a propaganda conservadora de disputa dos padrões sociossexuais. Por isso vemos lideranças religiosas culpando as pessoas LGBTI+ pela pandemia, como se essa fosse algum tipo de praga pelo pecado da carne;

O ministro de Israel e o pastor dos EUA não estão sozinhos nessa de dizer que a pandemia é um castigo de deus contra o casamento gay e variações desse mesmo discurso sexual/moral conservador. Aqui no Brasil, tem pastor que associa a pandemia ao carnaval. O próprio Silas Malafaia, em vídeo, associa carnaval, pandemia e o isolamento social, para “provar” que Bolsonaro está certo. Sem dizer diretamente, o pastor mistura tudo em um discurso conservador e pretensamente preocupado com os trabalhadores que não têm seu direito à quarentena garantido. E o discurso fascista de Bolsonaro apresenta, nitidamente, o “novo homem” que irá sobreviver à pandemia: masculino, atlético, jovem… Assim, dialoga com todo o discurso que tem movido os ressentidos, embalando o programa do “retorno” do homem branco, cis e hétero ao posto de visibilidade (de onde nunca saiu). 

4 – Solidão LGBTI+

Sim, desgraçadamente, há uma solidão típica LGBTI+. Ambientada pela sociedade repressiva e, ainda, hetero e cisnormativa, essa solidão é alimentada, inclusive, pela dessublimação repressiva (conceito de Marcuse). São exemplos disso: depressão, suicídio, consumo alienado de drogas sem diversão genuína, prática de sexo desprotegido e associado ao risco para obtenção de prazer, questões graves de autoestima, ansiedade etc..

A “revolução sexual” liberal trouxe uma série de avanços, mas com limites que não só os impediram de seguir, como os degeneraram. Passamos de uma sociedade da sexualidade reprimida- da qual não se podia falar -, para uma sociedade em que o sexo é uma mercadoria permanente, persistente, onipresente – tudo é sexo e todos têm que gozar, mesmo que ninguém goze! Não alcançamos uma sociedade genuinamente erótica nesse caminho, uma sociedade livre… Chegamos aos dias de hoje com a nossa sexualidade fetichizada, focada nas genitálias e na imagem, no espetáculo – uma sexualidade dessexualizada. A visibilidade propiciada pelo mercado, desassociada de garantias reais de direitos sociais, traz, também, uma série de problemas. Como é mercado, os padrões são fundamentais. Quais são os corpos aceitos pela visibilidade do mercado? E os que são aceitos, por ser pelo mercado, alcançam felicidade? Onde está a felicidade LGBTI+? Qual é a imagem disposta no nosso espetáculo multicolorido do mercado? Diversão permanente, exercícios físicos, corpo em construção, sexo no sigilo, masculinidade exacerbada, uso alienado de drogas sem diversão genuína, beleza padronizada… money, success, fame, glamour? Porque nós estamos vivendo na era da coisa! Quarentenados/as, como ficaremos?

Sim, é possível ver o vírus em cores. E é preciso!