Pular para o conteúdo
Colunas

O vírus da burocracia: ciência, universidade e pandemia

Magritte

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

As mortes se sucedem e alimentam a tristeza. A agonia é a nossa companheira mais fiel nessas semanas com gosto de fel. Não sabemos quanto tempo isso vai durar, nem mais quantas horas cabem em cada dia, de onde vêm a ansiedade e as manias das entediantes rotinas, e nem mesmo mais quanto tempo o tempo tem, ou melhor, quanto tempo ainda temos. A pressa para nos livrarmos logo dessa pandemia vem acompanhada da indagação sobre em quanto tempo haverá uma nova mutação, em quanto tempo teremos que novamente nos trancafiar na solidão, nos isolarmos dos outros e limparmos obsessivamente tudo que é e não é de limpar, tudo que, quem sabe, possa nos tornar mais um transmissor da morte para o amigo, o pai, a mãe, o avô ou alguém com, digamos, menos sorte. Alguns analistas, tão catastrofistas quanto realistas, já cogitam para amanhã uma sociabilidade sem social, um convívio sem convivência, um mundo no qual todo e qualquer contato físico, do aperto de mão à penetração, passando pela prosaica e vital respiração, será sempre perigoso – sem nada ter de divino ou maravilhoso. 

Do lado do capital, a defesa é de que o show não pode parar, a acumulação não pode parar de acumular, e suas frações se dividem por ora quanto às proporções do espetáculo, isto é, quanto ao número de contrarregras, montadores, eletricistas, roodies e demais trabalhadores que precisam labutar, com ou sem máscara, para que o palco, luz e som estejam sempre prontos, de modo que, com mais ou menos público, tudo siga mais ou menos como estava. Alguns querem mais, e outros, menos delirantes, porém não menos gananciosos, toleram menos, pelo menos por enquanto. A lógica de um autômato que não pode deixar de ser alimentado custe o que custar – e esse custo pode ser calculado em corpos – não se restringe, porém, aos dominantes. Afinal, as ideias dominantes de um tempo, já disseram lá dois alemães de antanho, são as ideias da classe dominante. Não é assim de surpreender, salvo para os adversários do conceito de ideologia, que milhões de trabalhadores não só estejam trabalhando compulsória e ordinariamente, como também o estejam fazendo enquanto bradam a necessidade da manutenção do funcionamento da máquina. Como coveiros enlouquecidos que cavam a própria cova a serviço daqueles que deveriam ser, eles sim, historicamente enterrados, levantam suas pás e exigem seu direito de trabalhar, ainda que seu trabalho não lhes ofereça mais do que um trocado que lhes permite pouco além do que estar vivo no dia seguinte para trabalhar, outros enterrar e, um dia, sem aposentadoria, sem paz, sem nada, na cova descansar.

Curiosamente, até mesmo entre os declarados alvos do capital em tempos de capitalismo ultraneoliberal a lógica acima não só tem lugar como só faz grassar. Como o covid 19, ela parece não ter limites em sua expansão e transmissão, penetrando sub-repticiamente ou não tanto na rotina do mais longínquo rincão, no mais árido cenário de extrema pobreza, assim como nos espaços comandados por aqueles tidos como homens de talento, ciência e destreza. Assim, nas universidades, fontes de todo o mal segundo o ideário neoliberal, e de todo o doutrinarismo segundo o neofascismo, também é possível notarmos como, por meio de uma forma mais suave e melhor redigida, também nossas vidas são impelidas a tentar seguir ordeiramente o ramerrão, ainda que com lamentação, afinal, o show intelectual, cada vez mais burocrático e formal, também não pode parar, ao menos enquanto um professor, pesquisador, aluno ou técnico puder respirar. 

Os tecnocratas dos governos federal e estadual, seus gerentes nas organizações de fomento e os “guardas da esquina” de cada área – sempre os mais perigosos, já alertava um reacionário de outrora – aparentam travar uma luta por prazos e verbas, e até a travam mesmo, mas o fazem todos segundo as mesmas regras, inquestionáveis. Há tempos os professores e pesquisadores foram submetidos a exigências burocráticas que tornaram praticamente impossível lecionar e pesquisar satisfatoriamente. “Mas sem o atendimento a tais exigências” – muitos doutos-burocratas e burocratas-doutos alegavam – “não haverá verbas para aulas e pesquisas de qualidade!”. A justeza e a veracidade, ou, se quisermos, a certeza dessa assertiva, não eram senão o momento verdadeiro de “uma certeza que se perde na verdade”, para citarmos Hegel. Nossos doutos e burocratas estavam, portanto, em parte certos, e esta parte servia como a aparência de verdade que obnubilava a verdade efetiva dialeticamente produzida. Sim, sem tais verbas tornava-se muito difícil a execução de aulas e pesquisas de qualidade, é verdade. Contudo – e como o “verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo”, disse o supracitado idealista alemão –, com o atendimento às exigências necessárias à obtenção das tais verbas também aquelas aulas e pesquisas foram prejudicadas, na medida em que viram-se obrigadas a se ajustar a um tempo cada vez mais escasso, tomado por tarefas burocráticas, e a um modelo de realização subsumido às injunções burocráticas. Em suma: com a justificativa de se ter verbas junto à burocracia para que se possa pesquisar acabou-se fazendo da pesquisa algo burocrático cujo sentido último parece ser o de poder ser burocraticamente comprovada de modo a obter junto à burocracia verbas para se pesquisar. A tautologia burocrática, sem pressa, foi se impondo, e o meio se converteu no fim, e vice-versa.

No atual momento, onde o mundo parece em suspenso e o capital clama por sua aterrissagem, também as burocracias universitárias correm atrás do “tempo perdido” e se movimentam para superar a defasagem. Mas de nada parece adiantar. E não vai adiantar. Não haverá um momento de sintonia, pois não é esse o objetivo da harmonia que os músicos de cima buscam. Não haverá ponto de chegada, salvo aquele em que a verdadeira ciência estiver enterrada. A cada exigência arduamente cumprida, as Capes da vida colocam outra. A cada tempo gasto com a burocracia necessária à pesquisa, o tempo dos relatórios consome o tempo dos laboratórios, e o das planilhas, o das teorias. “Ora, mas se não fizermos isso, se não cumprirmos as novas exigências, aí sim é que eles aproveitarão para acabar com as universidades”, dizem alguns, tendo ou não ciência de que é justamente assim que viemos e seguimos cavando a cova onde jazerá a própria universidade e, por conseguinte, a ciência.

Quando o mundo despenca a nossos olhos, qualquer ação que não vise a transformá-lo se converte inexoravelmente em uma maneira de acelerar sua queda, e isto vale, por óbvio, para a ciência e a Universidade. Qualquer pesquisa científica, qualquer aula de graduação e pós-graduação que não seja motivada, com todas as mediações necessárias a cada tema e área, pela compreensão e superação das condições sociais que nos trouxeram até aqui não fazem mais o menor sentido. Qualquer atividade intelectual que não busque examinar e revolucionar as relações materiais e culturais que nos fizeram ser vítimas de uma natureza que depois de tanta sujeição pelo capital nada mais tem de natural, sobretudo quando se fala de uma nova cepa viral,  já não merece mais a menor importância. Diante de um mundo no qual milhões só poderão contar com Deus ou com a sorte, os prazos, planilhas, capesprint, sucupiras e consortes não são para a ciência senão as flores que adornarão sua cova – e as flores têm cheiro de morte. Quem quiser que as cheire.