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Um necropresidente e o holocausto brasileiro à vista

Portinari

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

por: Carlos Tautz*, do Rio de Janeiro, RJ

O necropresidente Jair Bolsonaro manifesta inépcia política e administrativa, agressividade e até falta de decência para lidar com um momento histórico em que se amalgamam crise e depressão econômicas com o rápido agravamento da pandemia de coronavírus/COVID-19. Até aqui, nenhuma novidade. 

O problema é que a pior Presidência da história do Brasil manifesta-se em toda a sua descompostura e perversidade justamente quando um verdadeiro tsunami está a poucos dias de atingir o País. A partir de meados de abril, começa o primeiro pico da exaustão do sistema nacional de saúde e a consequente mortandade produzida pelo coronavírus. Já se sabe que no Brasil, a exemplo dos Estados Unidos, a letalidade desse patógeno atingirá especialmente a população pobre e negra de regiões precarizadas. 

Os resultados sociais são imprevisíveis porque à mortandade anunciada se somam a crise econômica e o desemprego crescente que já enfrentamos desde 2015. 

O “balanço do barco”

Em tal cenário, não passa de recurso discursivo a recente suavização do negacionismo de Bolsonaro sobre a COVID-19. Em verdade, continua a plena carga a estratégia bolsonarista de contrarrevolução preventiva. Como vê o professor Eduardo Pinto, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que se dedica a estudar as Forças Armadas, trata-se de um permanente “balanço do barco”. 

Em outras palavras, é uma compulsão de Bolsonaro simular diariamente crises e soluções para desnortear nossos sentidos e ocultar a total ausência de qualquer planejamento estratégico de seu governo que não seja destruir ou privatizar o patrimônio público. 

Para se manter, Bolsonaro fia-se no apoio, na lógica, na visão de mundo e nas armas dos militares. Ainda que as indivíduos das Forças Armadas pontuem contradições com o “estilo” do necropresidente, a vinculação de mérito entre Bolsonaro a elite da tropa (que ocupa bem remunerados postos de comando no primeiro escalão e em outros 2.500 cargos da estrutura do Estado brasileiro) indica a convergência de projetos e, o mais perigoso, de disposições para a realização de ações.

Bolsonaro não está isolado, como afirma uma imprensa que perdeu a capacidade analítica por não praticar a checagem de campo. Ele continua a ter muito mais respaldo do que todos do campo democrático gostaríamos que ele tivesse – inclusive entre a classe média branca e histérica que mantém escatológico apoio ao ocupante do Palácio do Planalto. 

Por sua vez, ele, sempre que necessário, reafirma a aliança férrea com as cúpulas das Forças Armadas, que no atual governo manobram orçamentos militares entre os mais altos da história da República e acumulam vantagens funcionais substantivas. Por exemplo, através das reformas da Previdência e trabalhista, a alta oficialidade distanciou-se salarialmente da baixa oficialidade  (de sargentos e de praças) – e adentrou a elite nababesca do funcionalismo, onde antes pontificavam juízes e procuradores.

Sabendo de que, para manter o apoio social, também necessita aliar-se à base da tropa e de suas famílias (que juntas a policiais e seus entornos sociais alcançam perto de 5 milhões de votos), Bolsonaro conferiu a esses grupos vantagens menores, embora importantes para a sobrevivência em tempos de crise. Entre outras migalhas, possibilitou-lhes a contratação, pela Previdência Social, de militares aposentados/da reserva para diminuir a fila de dois milhões de pessoas que tenta se aposentar – fila que se formou desde 2017 sob os golpistas Michel Temer e Bolsonaro. 

Assim consolidou-se entre Bolsonaro e os militares uma aliança férrea, que se baseia em dois pilares. Do lado militar, o fornecimento de quadros para gestão do Estado que a partir de experiências acumuladas, se “pós-graduaram” em termos de intervenção durante a campanha da ONU no Haiti (Minustah), iniciada em 2004, em papel subserviente ao serviço secreto dos EUA. Esses quadros militares ainda fizeram um estágio prático no Rio de Janeiro em 2018, quando o General de Exército Braga Neto, atual ministro da Casa Civil, chefiou a intervenção federal no Estado. 

Todos os comandantes brasileiros no Haiti, e também Braga Neto, que retém importantes informações sobre o assassinato da ex-vereadora Marielle Franco (ocorrido menos de um mês após ele tomar posse como interventor), integram hoje os primeiros escalões do governo federal. 

Parêntesis: o “golpe” de Braga Neto que quase ninguém viu

É lógico supor que Braga Neto tenha aprofundado conhecimento sobre dois assuntos que atormentam Bolsonaro: as milícias e o caso Marielle. Por esta circunstância, chama a atenção o informe do site defesa.net, a voz semiformal dos quartéis, segundo o qual Braga Neto, hoje ministro da Casa Civil, seria desde 30 de abril um “presidente operativo” após ter dado um golpe de Estado que quase ninguém percebeu. Conforme figura no referido site, 

“A nova “missão  informal” foi produto de um “acordo por cima”, envolvendo ministros e comandantes militares e o próprio presidente da República. Sua (de Braga Neto) “missão” busca reduzir a exposição do presidente, deixando-o “democraticamente” (Apud Paulo Guedes) se comportar como se não pertencesse ao seu próprio governo. O general passa a enfeixar as ações do Executivo na crise. Pode, inclusive, contrariar as declarações de Bolsonaro”.

Somente o cotejamento das próximas ações do general-Ministro, do governo e de Bolsonaro confirmarão ou não o golpe. 

Cadáveres a la  Equador?

Na lista de privilégios a militares, Bolsonaro atendeu sistematicamente os interesses pecuniários da elite da tropa, reforçou o status social das Forças Armadas e lhes ungiu com uma aura de honestidade e suposta capacidade administrativa que destoaram no primeiro inepto ano do mandato de nosso necropresidente. 

Essa estratégia deu um ganho estrutural para as Forças Armadas. Ao reforçarem sua imagem – que deve aumentar ainda mais quando as tropas forem mobilizadas para operar hospitais de campanha contra a COVID-19 -, os militares garantem que, no futuro, dificilmente se revertará o status social acumulado. Esta condição os vacinaria contra eventuais futuras Comissões da Verdade em que poderiam vir a ser enquadrados  – lembrando aqui que a CNV, durante o governo Dilma, com todas suas limitações, foi o verdadeiro e pragmático motivo do ódio que colocou este setor entre os principais golpistas (ativa ou passivamente) em 2016.

Apesar disso tudo, a aliança entre militares e o necropresidente já será firmemente confrontada nas próximas semanas, quando aumentar o número de mortos pela COVID-19. Basta uma só foto de corpos no meio da rua a la Equador “viralizar” nas “mídias sociais” e ser explorada pelo hegemônico Grupo Globo – opositor a Bolsonaro, mas não a Guedes, Moro  ou Mandetta – para as Forças Armadas serem obrigadas a decidir se continuam aliadas a um necropresidente que nega a gravidade do coronavírus porque necessita de um holocausto para se justificar.

Com um crescimento rápido e exponencial do número de mortos pela COVID-19 e o impacto da exaustão do sistema de saúde, os militares finalmente terão de responder à pergunta feita há algumas semanas pelo (quase demitido) Ministro da Saúde: “Alguém está preparado para ver os caminhões do Exército transportando corpos?”. Afinal, basta viralizar apenas uma foto de corpos e caixões sendo empilhados para que a população pobre, já duramente atingida pelo desemprego, exploda em reivindicações para muito além de saúde e comida, e passe a cobrar desorganizadamente direitos negados em 520 anos. 

Neste caso, dificilmente Bolsonaro conseguirá se livrar, diante da opinião pública, da responsabilidade maior pela resposta inadequada à COVID-19 e pelas mortes que já começaram a chegar.

O caldo de cultura em que pode se dar uma tal explosão social representaria um importante processo de desgaste político de Bolsonaro. Afinal, já se aproximam dos 30 dias consecutivos os panelaços contra ele nos bairros de classe média da maioria das capitais e maiores cidades do interior do País. Uma espiral de adesões a esses protestos nas favelas – que serão fortemente impactadas pelo coronavírus – produzirá uma situação explosiva no País inteiro.

Hitler operou o holocausto sobre seis milhões de judeus, ciganos, comunistas. A ver se as Forças Armadas brasileiras apoiarão um necropresidente e sua irresponsável política negacionista, que pode levar a morte de até 1,4 milhão de brasileiros – em particular os mais vulneráveis de sempre: pobres, negros e todos aqueles para quem um tal de Estado democrático de direito nunca passou de quimera. 

Se o necropresidente, militares e bancos (sócios ocultos do governo Bolsonaro-Guedes) dobrarem a aposta, como Bolsonaro tem feito reiteradamente, não existirão outras palavras para definir a situação que se instalará a não ser “golpe”, “ditadura” e “holocausto”.

O “vírus” Trump na Amazônia brasileira

A possibilidade de uma guerra na Venezuela, com uso intensivo de armas convencionais, envolvendo o Brasil, não pode ser descartada. Deve-se esta loucura à agressividade eleitoreira de Trump contra a resistência de Maduro em entregar as reservas de petróleo da Venezuela aos EUA. Mais letal para a humanidade do que o coronavírus, Trump, no início de abril, dobrou a capacidade militar estadunidense no Caribe e, como um ridículo pastiche de caubói démodé, lançou recompensa de 15 milhões de dólares pela cabeça de Nicolás Maduro.

O teatro de operações desta guerra, que tem a simpatia dos Bolsonaro 01 a 04, seria a caribenha/amazônica/andina Venezuela petroleira armada pela e aliada da Rússia e, subsidiariamente, da China e de seus interesses petrolíferos na própria Venezuela e no vizinho Suriname (que divide com a Venezuela a maior reserva de petróleo do mundo). 

Inevitavelmente a guerra arrastaria para o conflito os países Amazônicos fronteiriços à Venezuela, sendo o maior deles o Brasil (em grau de envolvimento impossível estimar) e o mais importante, a Colômbia (principal aliado dos EUA na América do Sul há décadas e fonte de 70% da cocaína do planeta).

Como se já não bastassem os problemas brasileiros anteriormente descritos, este cenário abriria duas possibilidades dramáticas: 1. A possibilidade de aprofundamento da pandemia do COVID-19 no ambiente de floresta amazônica, o que traria consequências sequer imaginadas; e 2. A possibilidade de erupção de outros patógenos hoje latentes na floresta, mas com potencial de escapar da região, devido à movimentação de tropas e de contingentes civis em condição de refugiados .

É muito improvável que passe de outra bravata uma aventura contra a Venezuela, embora o simples apoio político à agressão de Trump já introduza uma enorme interrogação ao misto de crise econômica e sanitária que vivemos. Porém, nada, como se viu até aqui, é impossível na “Macondo” (para lembrar García Márquez) em que Bolsonaro, os generais neoliberais e a corte miliciana e privatista transformam o Brasil.

Somos presididos por um ególatra que organiza manifestações em seu próprio apoio, distribui abraços aos fanáticos que o adoram e, em vez usar a ciência, preconiza jejuns e orações para combater uma pandemia de alta letalidade.

Espera-se que um fiapo de sanidade mental lhes permita avaliar o estrago que a negação das tragédias – a pandemia e a guerra – causaria a todos.  Inclusive eles próprios.

 

 

*Carlos Tautz é jornalista, doutorando no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro do GTO (Grupo de Trabalhos e Orientações) da professora Virgínia Fontes e membro do Observatório COVID-19 BR de análises estatísticas e previsões de expansão do coronavírus no Brasil