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BRASIL

Coronavírus e desigualdades territoriais: uma contribuição geográfica

Caetano Branco, de Porto Alegre, RS
Agência Brasil

Desde a descoberta do novo coronavírus no final de 2019 e seu avanço no começo de 2020 o mundo passou a experimentar um momento histórico pelo qual nossa geração jamais passara. O mais próximo, historicamente, do momento que estamos vivendo foi a gripe espanhola em 1918 e nos anos seguintes, agravada ainda por uma guerra mundial e condições sanitárias ainda piores das que temos hoje. Mas, se é verdade que as condições sanitárias melhoraram significativamente no mundo, também é real que as condições ambientais do planeta se agravaram. O sistema capitalista, que se desenvolve sobre uma lógica consumista desenfreada e extrativismo de igual ritmo para suprir essa demanda, não permite que a curva do consumo seja achatada e, assim, cada vez mais chegaremos ao colapso. E esse colapso não é apenas do sistema de saúde, como no caso do Covid-19. É o colapso da Terra baseado na sua capacidade de suportar uma economia estruturada no capital e não nos recursos. E o que a questão ambiental tem a ver com as desigualdades? Bem, ainda que muitas das mudanças ambientais causadas pelo capitalismo não sejam de ordem intencional, as consequências destas mudanças são muitas vezes intencionais dentro da lógica capitalista. David Harvey, importante geógrafo marxista estadunidense, traz uma importante contribuição sobre este ponto em texto recentemente publicado:

O capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas o faz num contexto de consequências não intencionais (como as mudanças climáticas) e contra as forças evolutivas autônomas e independentes que estão perpetuamente remodelando as condições ambientais. Deste ponto de vista, não existe um verdadeiro desastre natural. Os vírus mudam o tempo todo. Mas as circunstâncias nas quais uma mutação se torna uma ameaça à vida dependem das ações humanas. (DAVIS, 2020, p.15)

Portanto, a ameaça do vírus é real a todas as classes, é comum a todas as etnias e gêneros, mas o nível da ameaça varia para cada um. No presente texto não tenho a pretensão de fazer uma análise social profunda, não teria nem mesmo capital teórico para isso, mas me atenho naquilo que meu conhecimento geográfico me proporciona: uma leitura e análise do espaço geográfico. Dessa perspectiva, podemos analisar sob óticas diferentes conforme o conceito geográfico o qual daremos enforque. Neste caso, farei uma abordagem através do conceito de território e suas diferenciações.

Quando trabalhamos com o coronavírus precisamos entendê-lo enquanto um fenômeno urbano. Isso não significa que o vírus exista apenas nos centros urbanos, mas que não encontraria meios para se tornar uma pandemia se não estivéssemos em um estágio de sociedade globalizada e constantemente interligada por um conjunto de redes. O Espaço Urbano é fragmentado e articulado. É fragmentado por processos (culturais, econômicos, etc) que constituem de diferentes formas e geram desigualdades, e articulado a partir do ponto que os fragmentos interagem, principalmente através do trabalho. Este mesmo espaço urbano é reflexo e condicionante social, uma vez que é nele que se materializam os processos sociais e também contribui para a continuidade destas formas, respectivamente (CORRÊA, 1995). Por fim, a partir desta conceituação, Lobato Corrêa apresenta o espaço urbano capitalista como campo de lutas. Para ele, o espaço urbano é um produto social, resultado das ações acumuladas através do tempo e engendradas por agentes que produzem e consomem espaço.

A proposta teórica agora pode então embasar melhor uma análise da disseminação do coronavírus como um fenômeno urbano capitalista. Voltando para as contribuições de David Harvey sobre a Covid-19:

Em segundo lugar, as condições que favorecem a transmissão rápida através dos corpos hospedeiros variam muito. Populações humanas de alta densidade pareceriam alvos fáceis do hospedeiro. É bem conhecido que as epidemias de sarampo, por exemplo, só se manifestam em grandes centros populacionais urbanos, mas desaparecem rapidamente em regiões pouco povoadas. A forma como os seres humanos interagem uns com os outros, se movem, se disciplinam ou se esquecem de lavar as mãos afeta a forma como as doenças são transmitidas. (DAVIS, 2020, p.15)

A distribuição e organização das populações influenciam diretamente no potencial de propagação do vírus. Mas como dito anteriormente, não é apenas a concentração populacional o fator preponderante para o contágio, mas a maneira como é feita a gestão do território e o nível da desigualdade social presente são importantíssimos em nossa análise. Se fosse verdade que apenas uma grande concentração populacional seria o suficiente para que o vírus produzisse um maior estrago, a China teria sofrido com incalculáveis números de mortos, uma vez que é o país mais populoso do mundo e é densamente povoado nas suas cidades a leste do território. Todavia, a China conseguiu controlar o avanço da doença (é verdade que com certa demora no princípio de contenção) para as demais regiões do país, como Pequim, por exemplo. Isso, claro, fruto de uma política estatal rígida que forçou o fechamento de Wuhan por mais de dois meses. Ninguém podia sair de casa a não ser para atividades essenciais como comprar comida, tampouco ficou permitida a saída e entrada da cidade por qualquer cidadão.

Para entender o avanço do Covid-19 ou até mesmo as políticas acertadas para sua contenção, é preciso se debruçar sobre alguns conceitos apresentados por Milton Santos no entendimento dos territórios e sua relação com a sociedade. Em sua obra O Brasil: território e sociedade no início do século XXI Santos aborda conceitos como fluidez e viscosidade e espaços luminosos e opacos. Quando falamos em espaços de fluidez estamos falando na necessidade de serem criadas condições para maior circulação dos homens, dos produtos, das mercadorias, do dinheiro, da informação, das ordens, etc. Os espaços luminosos serão aqueles que mais acumulam densidades técnicas e informacionais, ficando assim mais aptos a atrair atividades com maior conteúdo em capital, tecnologia e organização (SANTOS, 2001). Por que essas categorias de análise do território são tão importantes neste momento? Bem, a partir do entendimento destas categorias podemos realizar uma análise prática da pandemia conforme sua organização territorial, por exemplo: os países europeus como Itália e Espanha, que hoje são os que mais sofrem com a pandemia, acumulam grandes densidades técnicas e informacionais e por isso possuem grandes condições de circulação de pessoas e capital. Podemos então caracterizar, de modo geral, os territórios em questão como fluídos e luminosos. Desta forma temos um cenário perfeito para a disseminação de uma pandemia, uma vez que estas redes bem articuladas e desenvolvidas proporcionam grande poder de infiltração territorial para o vírus.

A experiência anterior tinha mostrado que uma das desvantagens da crescente globalização consiste no fato de ser impossível deter uma rápida difusão internacional de novas doenças. Vivemos em um mundo altamente conectado, onde quase todos viajam. As redes humanas de difusão potencial são vastas e abertas. (DAVIS, 2020.)

Contudo não podemos deixar de encaixar em nossa análise os fatores políticos, administrativos e econômicos. As decisões por não realizar uma imediata paralisação das atividades comerciais e industriais nestes países foram fundamentais para que hoje estivessem com um dos piores cenários possíveis. A lógica capitalista endossada por governos neoliberais de uma permanente exploração da classe trabalhadora não aceitou a ideia de paralisação das atividades, pouco se importando com a vida dos mesmos.

Há um mito conveniente de que as doenças infecciosas não reconhecem classe ou outras barreiras e limites sociais. Como muitos desses ditados, há uma certa verdade nisto. […]Mas hoje as diferenças de classe e os efeitos e impactos sociais contam uma história diferente. Os impactos econômicos e sociais são filtrados através de discriminações “costumeiras” que estão evidentes em todos os lugares. Para começar, a força de trabalho que se espera que cuide dos números crescentes de doentes é tipicamente altamente sexista, racializada e etnizada na maioria das partes do mundo. Ela reflete a força de trabalho baseada na classe que se encontra, por exemplo, em aeroportos e outros setores logísticos. (HARVEY, 2020.)

Quando pensamos no Brasil e como o vírus pode nos atingir devemos entender primeiramente algumas diferenciações em relação à realidade europeia. Utilizando o exemplo da Itália não é possível traçar uma relação direta com a realidade brasileira. A população italiana tem uma expectativa de vida próxima aos 82 anos e possuí grande concentração na parte média e alta da pirâmide etária, representando maior presença de idosos. Isso, em uma análise prática, associada às condições de fluidez do território antes apresentadas, significa que o poder de infiltração do vírus na Itália foi rápido, bem como a mortalidade foi alta, devido a uma maior presença de indivíduos no grupo de risco (idosos). Isso significa então que o Brasil, com sua expectativa de vida em torno dos 75 anos e sua concentração etária de adultos, não sofrerá tanto com o Covid-19? Não. A nossa problemática será outra em relação à pandemia. Aqui, voltamos às contribuições de Milton Santos quanto as categorias de análise do território e suas diferenciações. Apesar de não termos um território tão fluido quanto o europeu, possuímos uma desigualdade social muito mais grave do que a italiana. Essa desigualdade social nos leva à identificação de inúmeros espaços opacos em nosso território, e é partir destes espaços que devemos pensar a proliferação do vírus como preocupante. Estes espaços concentram grande parte da classe trabalhadora, negra e pobre. Estes espaços não contam com nenhum tipo de assistência estatal e tampouco possuem condições sanitárias satisfatórias para o enfrentamento de uma pandemia. Muitos moram em barracos insalubres e amontoados. A relação comunitária forte entre os moradores destas regiões agrava ainda mais a disseminação do vírus, dificultando o combate.

Esta “nova classe trabalhadora” está na vanguarda e suporta o peso de ser a força de trabalho que corre maior risco de contrair o vírus através de seus empregos ou de ser demitida injustamente por causa da retração econômica imposta pelo vírus. Há, por exemplo, a questão de quem pode e quem não pode trabalhar em casa. Isto agrava a divisão social, assim como a questão de quem pode se isolar ou ficar em quarentena (com ou sem remuneração) em caso de contato ou infecção. (HARVEY, 2020.)

Ou seja, quando falamos que “estamos todos no mesmo barco” não é mentira, mas esquecemos de dizer que enquanto neste barco há quem esteja utilizando colete salva-vidas e botes para fugir do naufrágio, há aqueles que estão distribuindo os coletes e ficarão sem para eles próprios. Portanto, a situação do Brasil deve ser ainda mais grave que a chinesa e a italiana. A desigualdade social constante, o agravante de uma crise política desde 2016 e uma recente crise sanitária tratada como um projeto genocida pelo presidente da república pode nos levar a um caminho sem volta, e esse caminho está explícito: genocídio da população negra, pobre e trabalhadora.

Por fim, Harvey ainda nos trás proposições sobre o mundo pós Covid-19:

A vida quotidiana vai abrandar e, para algumas pessoas, isso será uma bênção. As regras sugeridas de distanciamento social podem, se a emergência continuar por tempo suficiente, levar a mudanças culturais. A única forma de consumismo que quase certamente beneficiará é o que eu chamo de economia “Netflix”, que de qualquer forma se destina aos espectadores compulsivos. (DAVIS, 2020, p.22-23)

Desta forma, devemos seguir atentos aos desdobramentos desta crise humanitária e econômica que forçou o sistema capitalista a mudar suas práticas rotineiras, com a paralisação da produção, fechamento das bolsas de valores e, mais uma vez, o socorro dos estados nacionais às economias neoliberais e aos bancos. Se é que podemos falar em lições positivas deste processo, falemos de como fica evidenciado tudo aquilo que Marx já nos apresentou séculos antes. A classe trabalhadora segue sendo o motor do sistema capitalista, sem trabalho não há lucro. A paralisação forçada pela epidemia evidencia o quanto o sistema é insustentável, tanto sob o aspecto social, quanto pelo aspecto ambiental. O planeta não suportará muito mais tempo neste ritmo desenfreado de produção e consumismo, tampouco a classe trabalhadora.

 

 

Bibliografia

Coronavírus em países pobres: o que a ciência geográfica tem a nos dizer?” Justificando, 2020. Disponível em: https://www.justificando.com/2020/04/03/coronavirus-em-paises-pobres-o-que-a-ciencia-geografica-tem-a-nos-dizer/. Acesso em: 07/04/2020.

DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020. O artigo de David Harvey também está disponível aqui.

LOBATO CORRÊA, Roberto: O Espaço Urbano. Editora Ática, Série Princípios, 3a. edição, n. 174, 1995.

SANTOS, Milton: O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Editora Record, 2001.

 

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