“As grandes cidades são habitadas principalmente por operários (…) estes estão constantemente expostos ao perigo do desemprego, que equivale a morrer de fome e são muitos os que sucumbem. Por regra geral, as casas dos operários estão mal localizadas, são mal construídas, mal conservadas, mal arejadas, úmidas, insalubres, seus habitantes são confinados num espaço mínimo e, na maior parte dos casos, num único cômodo vive uma família inteira; o interior das casas é miserável (…)” (ENGELS, 2010, p. 115). (1)
O fragmento acima remonta a situação deplorável em que viviam as classes operárias nas cidades do Reino Unido (Londres, Manchester, Leeds, Emdiburgo, Glasgow, etc.) na metade do Oitocentos, mais especificamente nos anos 1840. Engels elabora um livro de denúncia e rico em informações. A inovação da obra reside em colocar a Revolução Industrial no centro de sua análise, bem como o papel do capital no controle da produção e circulação de mercadorias e na exploração do capitalista sobre o proletário. Aponta caminhos para a superação desta situação e coloca o operário como agente ativo, sujeito revolucionário, em busca de sua emancipação.
As condições dos bairros operários eram desumanas, excrementos pelas ruas emanavam o que se chamava na época de ‘miasmas’, um perigo para a saúde da coletividade, intensificando-se assim o medo da cidade, medo das aglomerações, medo da fábrica, medo das epidemias, que possuía tanto um viés político (temor da rebelião das massas), quanto um viés sanitário ( medo de doenças oriundas dos ambientes em que os pobres viviam), por isso que Foucault (2) afirmou que a sociedade capitalista investiu, primeiramente, no controle político-sanitário sobre os corpos, através de políticas públicas e legislação (Lei dos Pobres na Inglaterra), compreendidos como realidade biopolítica. A Medicina na Inglaterra na segunda metade do século XIX, por exemplo, exerceu fortemente esse papel autoritário de controle biopolítico, já que o operário era força de trabalho, mas também, como já mencionado, uma ameaça política e sanitária à ordem estabelecida.
Voltando ao fragmento de Engels na epígrafe do texto, observa-se grande semelhança – guardadas as devidas proporções e condições político-econômicas e históricas – com a realidade de territórios marginalizados dos grandes centros urbanos de países periféricos e semiperiféricos em pleno século XXI, incluindo o Brasil.
O Brasil viveu um processo de urbanização acelerado a partir do terceiro quartel do século XX e a expansão dos territórios urbanos carregam, até hoje, marcas que remontam os séculos de escravidão via exercício de poder oriundo de uma elite política e econômica que concentra renda, terras e age na formulação de leis que favorecem sua atuação nas áreas urbanas.
No período da ditadura militar houve uma expansão do crédito para financiamentos de moradias, criou-se então o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e o Banco Nacional de Habitação (BNH) com o objetivo de “estimular a construção de habitações de interesse social e o financiamento para aquisição da casa própria, especialmente pelas classes da população de menor renda” (3)
O BNH, desta forma, teria condições de ser o grande fomentador para sanar grande parte do déficit habitacional brasileiro no período militar, mas ficou claro depois que, o que era arrecadado pelo BNH foi transferido para agentes privados diversos, sobretudo os ligados ao capital imobiliário, um exemplo disto foram medidas obrigando administrações municipais a elaborar Plano Diretores para as cidades, mas a condição de serem qualificadas para a obtenção de volumosos empréstimos era a de que estes deveriam ser elaborados pela iniciativa privada. “Até mesmo as cobranças das prestações devidas estavam a cargo de uma variedade de agentes privados, companhias habitacionais, sociedades de crédito imobiliário, entre outros”.(4) As consequências deste processo foram o aumento da especulação imobiliária, a valorização da terra urbana e, portanto, o não direcionamento da habitação a uma imensa parcela empobrecida da população, que crescia e começava a ocupar encostas de morros, lugares com variação de marés, margens de rios e também áreas debaixo de pontes e viadutos.
Com a redemocratização do país a situação piorou muito devido à recessão econômica e aos elevados índices de inflação, que resultou na falta de crédito imobiliário para assalariados da classe operária, trabalhadores autônomos e até de camadas da classe média. Nesta perspectiva, criou-se o que Lúcio Kovarick (5) designou de espoliação urbana, termo que se refere aos grupos de trabalhadores pauperizados e segregados nos grandes centros urbanos devido ao processo de acumulação do capital e que não são atendidos pela atuação do Estado no que se refere à oferta de serviços públicos, transporte, equipamentos de saúde, saneamento, infraestrutura e legalização fundiária.
Francisco de Oliveira, em um texto (6) escrito para a abertura do ENANPUR em 2003, afirma que “as cidades [brasileiras] são os lugares por excelência de diversas exceções, o conjunto delas é a administração da exceção”.(7) Dentre as exceções apontadas pelo autor, chamado por ele de novo modo de produção da periferia capitalista e representado pelo ataque ideológico neoliberal, está o aumento das desigualdades e da pobreza e o endividamento crônico do Estado e da população, a expansão da informalidade no mercado de trabalho e até mesmo as políticas sociais.
Oliveira afirma ainda que o Brasil é o “ornitorrinco como exceção permanente”, já que para num capitalismo em expansão, o “subdesenvolvimento não era a exceção, era uma singularidade histórica”. (8) A racionalização da exceção problematizada pelo sociólogo, dita de outra forma, é a exceção que se transformou em regra, pois o Estado aceita a exceção e a financeirização. Ou como Milton Santos já asseverou: “os condutores da globalização necessitam de um Estado flexível a seus interesses”(9), fato observado e sentido na realidade brasileira, já que os grandes centros urbanos e as metrópoles são o grande laboratório do neoliberalismo de mercado.
Desta forma, o “planejamento urbano, com suas regras de utilização do solo, corredores de tráfego, (…) é a cidade como exceção: ele busca compatibilizar com as piores tendências de concentração de renda e da sociabilidade indesejável”. (10) O que se pode inferir a partir disso é que o planejamento urbano é um elemento que compete ao Estado, embora ele não necessariamente atue na totalidade do urbano, já que frequentemente não se faz presente em grandes porções das cidades, o que acarreta a proliferação de espaços opacos, (11) detentores de problemáticas graves, dando prioridade e potencializando as demandas empresariais existentes, estimulando a atração de novos investimentos privados em áreas bastante específicas nos centros urbanos. A legislação urbana é um dos mais importantes elementos deste tipo de planejamento.
É inegável que o Brasil está imerso em crise urbana crônica há décadas, mesmo com uma maior participação do Estado no fomento de políticas públicas (Programa de Aceleração do Crescimento, Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família, etc.) desenvolvimentistas entre 2003 e 2012, com reflexos na melhora substancial do PIB, diminuição do desemprego, expansão de investimentos na construção civil e redução das desigualdades. Mas tais medidas não se mostraram suficientes, pois não mexeram nas estruturas que sustentam o sistema. Como escreveu Ermínia Maricato, “o coração da agenda da reforma urbana, a reforma fundiária e imobiliária, foi esquecido”(12), os movimentos sociais foram esvaziados, a especulação expandiu, elevando ainda mais o preço da terra urbana e dos imóveis a altos patamares, o que acarretou uma busca desenfreada por novos territórios passíveis de investimentos nas cidades, de modo a se realizar a reprodução ampliada do capital, possibilitando assim novas formas de espoliação e segregação.
Pelo exposto até aqui, se faz necessário algumas palavras sobre a Pandemia do Coronavírus que afeta o planeta atualmente, uma doença que surgiu na China em dezembro de 2019 e se espalhou geograficamente com uma rapidez impressionante, o que a diferencia de todas as outras que já apareceram na face da Terra, não somente pelas suas características específicas, mas principalmente pelas condições próprias do meio técnico-científico-informacional(13), em que o intenso e veloz fluxo de pessoas pelo mundo é permitido pelos modernos meios de transporte.
A pandemia, por conta do alto risco de contágio, tem provocado um colapso no sistema econômico capitalista global, já que a recomendação das autoridades sanitárias é o isolamento social, o que ocasiona uma paralisação do comércio, da produção, do consumo e de muitos outros serviços. Liberais mais ortodoxos, que só pensam pelo lado dos lucros e dos números, defendem que o isolamento social precisa ser quebrado, atingindo apenas pessoas do grupo de risco (idosos, diabéticos, fumantes, asmáticos, etc.), alegam que o COVID-19 possui baixa letalidade em relação ao universo total de infectados, mas é bom que se diga que não se deve conceber vidas humanas pelo âmbito dos números, já que a manutenção da saúde da população – qualquer que seja seu número – importa mais que os lucros.
A preocupação da pandemia no Brasil precisa ser encarada de forma rígida e séria, de modo a não provocar um número elevado de óbitos. Países centrais, com infraestrutura de saúde melhor que a nossa já tem sofrido com muitas mortes pelo COVID-19, some-se a isso uma imensa demanda global por respiradores e outros equipamentos essenciais para o cuidado dos infectados e profissionais de saúde.
Destarte, as condições sanitárias e de pobreza dos centros urbanos brasileiros (grandes focos da infecção) são um barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento. Dados do IBGE(14) mostram que em 2018, a renda média mensal real do 1% da população mais rica era de R$ 27.744, o que corresponde a 33,8 vezes o rendimento dos 50% da população com os menores ganhos (R$ 820). Além disso, a população pobre atingiu a marca de 26,5% em 2017 e o número de pessoas na extrema pobreza (aqueles que ganham até R$ 140,00 mensais) já atinge a marca de 13,5 milhões de brasileiros.
Além disso, de acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS)(15) , 51,9% da população brasileira não possui acesso à coleta de esgoto e segundo Instituto Trata Brasil(16), 35 milhões de pessoas no país não têm acesso à água potável. Outrossim, o Panorama de Resíduos Sólidos no Brasil (17) do ano de 2018/2019, mostra que o país ainda sofre com a proliferação de lixo, já que 59,7% dos municípios brasileiros não possuem locais apropriados para descartar seus resíduos e 76,5 milhões de pessoas sofrem com essa destinação inadequada.
Dezenas de milhões de brasileiros estão desprotegidos contra a pandemia, a procura por alimento é uma tarefa diária árdua, as moradias em que vivem são de materiais frágeis e em territórios de risco, o desemprego para a maioria é a regra, sabão, detergente e álcool em gel são luxos e ficar em casa é praticamente uma sentença de morte.
O Governo Federal, por meio do presidente Jair Bolsonaro e seus ministros, tem atuado de forma absolutamente repugnante em relação aos mais necessitados do país e não é somente por conta da pandemia, a estratégia neoliberal governamental prioriza a acumulação de capital para setores privados, a exemplo do projeto “Resolução Bancária” – um novo marco legal para intervenção e liquidação de instituições financeiras no Brasil – enviado pelo Executivo Nacional ao Congresso em dezembro do ano passado. Incluem ainda o apoio irrestrito à PEC 95, aprovada sob a gestão Temer e que enfraquece os investimentos estatais para o combate às desigualdades, a aprovação de uma reforma da previdência que penaliza os mais vulneráveis, uma diminuição substancial no número de famílias atingidas pelo Programa Bolsa Família, além da retirada de direitos trabalhistas.
Com a pandemia em curso, fica mais claro esse descaso para com o grosso da população brasileira por parte do atual governo. As medidas são tímidas para conter a proliferação das infecções, a ideia de transferir um auxílio emergencial de R$ 200,00 para autônomos e derrubado pelo congresso, é só um exemplo entre tantos.
O Estado precisa urgentemente tomar providências para resguardar a vida das pessoas espalhadas nos vastos territórios periféricos das grandes cidades do país de modo que faça elas permanecerem em suas casas, recursos financeiros dignos para que comprem alimentos e a distribuição de materiais básicos como água, sabão, álcool e máscaras são os mais necessários neste momento, mas outras medidas são também relevantes, e devem integrar uma agenda permanente de lutas e reivindicações contra este governo autoritário e neoliberal, e devem ser assumidas pelos partidos progressistas, movimentos sociais, sindicatos e organizações de classe em geral.
Dentre as medidas, amplamente discutidas por diversos setores que se opõem a essa atual administração, destaco a criação de uma renda básica universal para combate à pobreza e à extrema pobreza, um aumento ainda maior no controle e na regulação do sistema bancário e uma taxação de seus lucros anuais, a revogação urgente da PEC-95 (teto de gastos), a tributação progressiva sobre lucros de grandes empresas, dividendos, heranças e patrimônios, um dispositivo legal de proibição de privatizações de empresas estatais estratégicas, aumentos anuais nos orçamentos públicos da Saúde, Educação, Pesquisa, Ciência, Tecnologia, Assistência Social, Cultura.
Faz-se necessário colocar em pauta a cobrança pelo direcionamento de volumosos recursos públicos para criação de habitação de interesse social, de programas de regularização fundiária, obras de saneamento básico, tratamento de água e esgotos. Lutar ainda por priorizar a instauração e consolidação de instrumentos do Estatuto da Cidade, nunca ou quase nunca postos em prática pelos municípios, repensando, inclusive, novas estratégias para o orçamento participativo.
Por fim, é preciso tirar proveito e não perder a oportunidade que a pandemia do COVID-19 traz como lição, a de que a racionalidade neoliberal – baseada na competição, na busca cega pelo lucro, no individualismo e na concentração de riqueza – não pode ter vez num mundo e num país tão desigual como o Brasil. A luta de classes precisa obedecer à “racionalidade política do comum”(18), uma nova mentalidade coletiva e novas formas democráticas, somente assim as cidades brasileiras do século XXI não mais poderão ser comparadas às cidades britânicas do século XIX denunciadas pelo jovem Engels em 1845.
* Geógrafo, Mestre em Economia (UFMA), doutorando em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professor Adjunto I do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas do Centro de Ciências Humanas, Naturais, Saúde e Tecnologias (CCHNST) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus Pinheiro. Contato: [email protected]
NOTAS
1 – ENGELS, F. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010. 388p.
2 – FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 28. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. 429p.
3 – BRASIL. Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964. Institui correção monetária dos contratos imobiliários de interesse social, o sistema financeiro para aquisição da casa própria, cria o Banco Nacional de Habitação, e Sociedade de Crédito Imobiliário, as Letras Imobiliárias, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e dá outras providências. Disponível:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4380.htm>. Acesso em 3 abr. 2020.
4 – BOTEGA, L. R. De Vargas a Collor: urbanização e política habitacional no Brasil. Espaço Plural, Ano VIII, n. 17, 2º semestre 2007, p. 65-72. Disponível em:<http://saber.unioeste.br/index.php/espacoplural/>. Acesso em 02 abr. 2020.
5 – KOVARICK, L. Escritos Urbanos. São Paulo: Editora 34, 2000. 144p.
6 – OLIVEIRA, F. O Estado e a Exceção – Ou o Estado de Exceção? Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 9-14, 2003.
7 – OLIVEIRA, op. cit., p. 11.
8 – OLIVEIRA, op. cit., p. 11-12.
9 – SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. 176p
10 – OLIVEIRA, op. cit., p. 12.
11 – SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001. 473p.
12 – MARICATO, E. É a questão urbana, estúpido! Le Monde Diplomatique Brasil. n. 73, agosto, 2013. Disponível em:< https://diplomatique.org.br/e-a-questao-urbana-estupido/>. Acesso em 05 abr. 2020.
13 – SANTOS, M. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2002. 392p. (Coleção Milton Santos; 1).
14 – IBGE. PNAD Contínua 2018: 10% da população concentram 43,1% da massa de rendimentos do país. Agência IBGE Notícias. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25700-pnad-continua-2018-10-da-populacao-concentram-43-1-da-massa-de-rendimentos-do-pais>. Acesso em 6 abr. 2020.
15 – BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos, 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019 Disponível em:<http://www.snis.gov.br/downloads/diagnosticos/ae/2018/Diagnostico_AE2018.pdf>. Acesso em 6 abr. 2020.
16 – INSTITUTO TRATA BRASIL. Ranking do Saneamento 2019. 2019. Disponível em: < http://www.tratabrasil.org.br/estudos/estudos-itb/itb/ranking-do-saneamento-2019>. Acesso em 6 abr. 2020.
17 – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS ESPECIAIS (ABRELPE)Panorama do Resíduos Sólidos no Brasil 2028/2019. 67p. Disponível em:< file:///C:/Users/positivo/Downloads/PanoramaAbrelpe_-2018_2019.pdf>. Acesso em 6 abr. 2020.
18 – DARDOT, P; LAVAL, C. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017. 647p.
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