Por: Ana Carolina Reginatto*, do Rio de Janeiro, RJ
Diante do avanço da pandemia de coronavírus no Brasil, o governo Bolsonaro optou por atacar as políticas de isolamento social recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e implementadas globalmente. O slogan da propaganda oficial proibida pela justiça – “O Brasil não pode parar” – é a epígrafe perfeita para um governo que, acossado por uma crise econômica mundial sem precedentes e por sinais claros de instabilidade política interna, faz acenos desesperados ao grande capital.
É evidente o apelo que a manutenção das atividades produtivas e a não liberação dos trabalhadores de suas funções possui em meio à grande parte do empresariado. No desastroso pronunciamento do dia 24 de março, Jair Bolsonaro defendeu abertamente a “volta à normalidade”, sob argumento de que o grupo de risco se restringia aos idosos. Naquele mesmo dia, estratégia semelhante foi defendida por 32 grandes empresários em reunião com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. No encontro ficou expresso o consenso empresarial de que alguns setores realmente não poderiam parar, sob o alardeado risco de interrupção das cadeias de produção.
De todo modo, o próprio Executivo federal já havia delimitado as atividades e serviços essenciais diante da pandemia, através do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020. Entre eles figuravam a assistência social e à saúde; atividades de segurança pública e privada; defesa nacional; telecomunicações e internet; transporte de cargas; mercado de capitais e seguros; atividades bancárias não presenciais; produção e distribuição de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas, etc.
Os setores que não tiveram suas atividades contempladas, logo se articularam para pressionar o governo. No dia 25 de março, por exemplo, para atender a um importante segmento de sua base eleitoral, Bolsonaro editou um novo decreto incluindo “atividades religiosas de qualquer natureza” como essenciais. A medida, no entanto, foi questionada pelo Ministério Público Federal (MPF) e recentemente suspensa pela Justiça Federal.
A mineração tampouco foi enquadrada como atividade essencial e a repercussão entre o empresariado do setor foi imediata. Na semana seguinte à promulgação do Decreto n° 10.282, o Conselho de Mineração (COMIN) da Confederação Nacional da Indústria (CNI) enviou um documento ao ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, solicitando a inclusão da atividade no rol das consideradas essenciais.
O COMIN foi criado em dezembro de 2019. Sua direção ficou a cargo do empresário Sandro Mabel, presidente da Federação das Indústrias do Estado de Goiás (FIEG), contando, ainda, com a participação de representantes de outras importantes entidades do setor, como o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), a Associação Brasileira do Alumínio (ABAL) e a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM). Recentemente, Mabel trocou farpas com o governo goiano, Ronaldo Caiado (DEM), por discordar da recepção, no Estado, dos brasileiros repatriados de Wuhan (China), quando ainda não havia casos de coronavírus no país.
Segundo reportagem vinculada no site do próprio IBRAM, a pressão sobre o ministro Bento Albuquerque também foi exercida pelo secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral, Alexandre Vidigal. Desde o início do governo Bolsonaro, a Secretaria vem mantendo um estreito diálogo com o empresariado. Em setembro de 2019, por exemplo, montou um escritório para se reunir com dirigentes empresariais no principal evento promovido pelo IBRAM, a Exposibram. Foi a primeira vez, desde a organização do primeiro encontro em 1985, que a Exposibram contou com uma participação tão aberta e engajada de um órgão da administração pública.
Em um pouco mais de uma semana, a pressão empresarial surtiu efeito e o Ministério de Minas e Energia (MME) editou a Portaria nº 135/GM, em 28 de março de 2020, estipulando como essenciais a pesquisa, lavra, processamento e transformação de bens minerais, assim como, o escoamento dos itens gerados na cadeia produtiva.
No entanto, mesmo antes da promulgação da Portaria, as mineradoras não interromperam seus negócios ou atividades. Entre os dias 1º e 4 de março, uma delegação do governo brasileiro, liderada por Alexandre Vidigal, esteve presente em evento da Prospectors & Developers Association of Canadá – o PDAC 2020 – realizado naquele país e considerado uma “grande roda de negócios” do setor mineral.
Enquanto o secretário brasileiro vendia a promessa de uma nova fronteira para a expansão do capital na mineração, colocando na mira as terras indígenas e enormes faixas de preservação ambiental na Amazônia, o Canadá já enfrentava a entrada do coronavírus em seu território. Contrariando as recomendações sanitárias, o PDAC reuniu milhares de pessoas de diversos países e pelo menos um participante do evento contraiu o Covid-19.
Em solo brasileiro, as mineradoras tampouco paralisaram suas atividades produtivas. A circulação de operários em ônibus e refeitórios nos empreendimentos minerários continuou, mesmo após o registro do primeiro caso no país. A Vale, por exemplo, ao contrário do que fez em outros países, como Canadá, Malásia e Moçambique, suspendeu, majoritariamente, apenas as atividades dos agentes administrativos. A grande massa de trabalhadores e prestadores de serviços que atuam diretamente nas minas do grupo continua exercendo suas funções normalmente, ainda que dois casos de contaminação tenham sido registrados.
No dia 1º de abril, um funcionário de uma empresa que presta serviços para a Fundação Renova, faleceu em decorrência do coronavírus, estabelecendo a primeira transmissão comunitária na cidade de Mariana (MG).
Alguns movimentos sociais se posicionaram radicalmente contra a Portaria nº 135. Lideranças do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) alertaram para o potencial disseminador da manutenção da atividade para as comunidades em seu entorno, além do fato de que muitos trabalhadores e grande parte dessas populações já sofrem com problemas respiratórios em virtude da mineração – tornando-se, assim, mais vulneráveis ao Covid-19.
O Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração emitiu uma nota reivindicando a paralisação total das mineradoras, a manutenção integral do pagamento de salários aos trabalhadores, bem como o recolhimento dos impostos devidos.
A Comissão Episcopal Pastoral Especial sobre Ecologia Integral e Mineração (CEEM) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), criticou a própria validade jurídica da medida promulgada pelo MME, uma vez que, uma simples portaria ministerial “não tem efeito para dar interpretação mais flexível” ao que foi estipulado como atividade essencial pelo Decreto presidencial. Já o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, Helder Salomão (PT-ES), solicitou ao Procurador-Geral do Trabalho, no dia 07 de abril, a anulação da referida Portaria e a imediata paralisação das atividades de mineração no país.
Apesar de alardearem uma suposta preocupação com a segurança do trabalho em seus empreendimentos e mascararem com filantropia os malefícios que causam, as mineradoras adotaram medidas completamente insuficientes para proteger os trabalhadores – como aferição de temperatura ou afastamento daqueles que apresentam sinais de gripe. O importante é não paralisar a produção e seus lucrativos negócios. Agora, como antes, para o setor responsável pelos maiores crimes socioambientais do país, a vida não Vale nada.
*Ana Carolina Reginatto é Doutora em História (UFRJ) e membro do Grupo de Trabalho e Orientação (GTO), da professora Virgínia Fontes, e do Grupo de Trabalho Empresariado e Ditadura.
NOTAS
1 – Criada em março de 2016, a Fundação é mantida pelas responsáveis pelo crime do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, em novembro de 2015: Samarco/Vale/BHP Billiton. Sua atuação gira em torno das negociações para indenizar e reparar as populações atingidas. Ver <http://www.fundacaorenova.org/> Acesso em 15 abr. 2019.
Comentários