Pular para o conteúdo
BRASIL

Bolsonaro isolado e os múltiplos significados do governo que ainda é seu

Pedro Augusto Nascimento, de Santo André, SP
José Cruz / Agência Brasil

Bolsonaro está visivelmente mais isolado politicamente desde o início da crise sanitária, econômica e política pela qual passa o mundo devido à pandemia provocada pelo Covid-19. As declarações do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, somam-se ao posicionamento dos principais veículos da mídia tradicional, em especial a Globo, de Paulo Guedes, Sergio Moro, Rodrigo Maia, Dias Toffoli, governadores e prefeitos, em defesa da manutenção do isolamento social parcial. 

Chama a atenção, no entanto, que até o momento essa disputa política feita à luz do dia não tenha resultado numa capitulação de Bolsonaro, que diariamente segue minimizando o risco da contaminação pelo Covid-19 e pregando a volta à “normalidade”. A manutenção da aplicação dessa linha não seria possível se ela não respondesse a questões reais que atravessam a grande maioria dos brasileiros.

Bolsonaro insiste mesmo com os últimos resultados das pesquisas de opinião que avaliaram o desempenho do presidente no enfrentamento ao Coronavírus demonstrarem queda de sua popularidade em todos os estratos sociais, apesar de ter se mantido acima do patamar de 30%.

A experiência de países como Espanha, França, mas em especial Itália e os Estados Unidos, tornaram evidente que não há alternativa ao isolamento social se o objetivo é salvar vidas. A inflexão de Trump em direção à defesa do isolamento social após os Estados Unidos da América tornarem-se o epicentro da pandemia no mundo foi determinante para esse isolamento.

A realidade do país, no entanto, demonstra que Bolsonaro conta com alguns aliados importantes para impor, em parte, a sua política assassina que segue defendendo em seus pronunciamentos e pelas redes sociais:

 

  1. O dinheiro da renda básica para trabalhadores informais chegará, na melhor das hipóteses, quatro semanas após o início da quarentena decretada pelos estados e municípios. Bolsonaro sentou sobre o projeto de propósito, para atrasar o pagamento. A preocupação número um de dezenas de milhões de famílias nesse momento é como garantir o básico da sobrevviência: moradia, comida e o cuidado com os idosos e as crianças;
  2. O efeito da MP 936, que autoriza cortar salários dos trabalhadores formais através de acordos individuais, provavelmente chegará antes da renda básica, generalizando o caos nas finanças das famílias, incluindo aquelas ainda não atingidas pelo desemprego ou pela informalidade. No caso das micro-empresas, cujos donos, em geral, não possuem poupança, a redução dos salários de seus funcionários não basta, pois falta a eles próprios recursos para a sua existência;
  3. Apesar do Ministério da Saúde aplicar uma política distinta da defendida por Bolsonaro, é conivente com a subnotificação de casos e mortes nas cidades e estados, e o plano já muito atrasado de realizar testes em massa tem como um dos objetivos centrais, segundo palavras do próprio Mandetta, acelerar o retorno das pessoas imunizadas ao trabalho, antes mesmo de compreender como a pandemia vai se desenvolver no país e no mundo;
  4. Os militares, que formam a espinha dorsal do governo e ganharam força nos últimos dias, têm um histórico nada condizente com a “defesa da vida”, vide as inúmeras saudações ao aniversário do golpe de 1964, que abriu um período marcado, dentre outras coisas, por epidemias mascaradas nas grandes cidades que provocaram um verdadeiro genocídio da população indígena e quilombola. A fidelidade até aqui demonstrada pelos miliares em relação ao governo neofascista de Bolsonaro não nos permite esperar que Braga Netto, atual Ministro da Casa Civil, tenha chegado ao comando das operações de combate à crise com outro objetivo que não “reduzir danos” (lê-se, morrer gente sim, mas dentro de “limites aceitáveis”). É importante compreender e rechaçar a retórica de que os militares seriam parte dos setores “lúcidos” do governo, quando, até aqui, ocupam espaço cada vez maior em um governo neofascista no qual são, no mínimo, sócios e fiadores;
  5. Bolsonaro foi tão radical na sua postura negacionista da necessidade do isolamento social para conter a expansão do vírus, que fez as medidas parciais dos governadores e prefeitos parecerem o máximo esforço possível, quando sabemos que não o é. Por exemplo, em São Paulo, o governador João Dória se recusa a adotar o plano de emergência proposto pelo Sindicato dos Metroviários de São Paulo, que reduziria a circulação de milhões de pessoas que ainda formam aglomerações todos os dias nas estações, para que somente os trabalhadores dos serviços essenciais continuassem trabalhando;
  6. Nas periferias das grandes cidades, onde o número de trabalhadores informais supera e muito os 50%, há cada vez mais registros de que as ruas, aos poucos, estão voltando a serem ocupadas, os comércios reabertos, enquanto em cidades menores a vida segue como se não houvesse quarentena, ou isolamento social. Todos os relatos indicam que essa retomada das atividades econômicas e da circulação de pessoas nas periferias coincidiram com o pronunciamento de Bolsonaro feito no dia 24/03, no qual ele chamou a pandemia de “gripezinha” e defendeu o fim do isolamento social. Essa situação ocorre seja porque as pessoas precisam se virar pra conseguir sustentar as suas famílias, mas também porque as condições mais precárias de moradia impedem que as pessoas possam ficar dentro de casa por dias ou semanas;
  7. Nunca podemos nos esquecer que o Brasil de hoje carrega todos os elementos reacionários que deram base à eleição de um governo neofascista. Por aqui, historicamente, e ainda mais no último período, a defesa da vida sempre obedeceu a um critério e a uma hierarquia de raça e classe. Temos convivido há séculos com uma desigualdade brutal, naturalizada todos os dias por ideologias como o mito da democracia racial ou a meritocracia. Se é verdade que a gravidade da doença, somada a um colapso no sistema de saúde, pode provocar a morte inclusive de burgueses, como em parte já acontece, sabemos que as maiores vítimas provavelmente serão negros e negras das periferias, que têm dezenas de milhares de seus filhos assassinados todos os anos, com pouca ou nenhuma comoção social. Só isso explica que as falas de Bolsonaro, dono do Madero, Havan, etc. provoquem um “mal-estar”, mas nada muito além disso, até o momento;

 

Entender que o governo Bolsonaro aplica uma “linha dupla”, ao mesmo tempo negacionista mas tolerando a aplicação do isolamento social em doses homeopáticas, buscando reduzir o mínimo possível os lucros, primeiro, e as atividades econômicas, em segundo lugar, é fundamental. Se é verdade que Mandetta aproveita o seu prestígio e popularidade para disputar com Bolsonaro o rumo das políticas do governo, também é verdade que segue sendo um ministro do governo Bolsonaro, e não de seu próprio governo ou do governo do DEM. A hipótese de que Bolsonaro surfe na onda de popularidade de Mandetta, caso ele siga prestigiado, e ao mesmo tempo tente responsabilizar governadores e prefeitos pela crise econômica e social que inevitavelmente viveremos no próximo período não pode ser desprezada.

O isolamento parcial sem a preservação dos empregos e da renda tanto dos trabalhadores informais quanto dos trabalhadores formais, cria um beco sem saída. Por um lado, a parcialidade do isolamento somada à falta de testes provoca, ao mesmo tempo, a expansão do vírus, por um lado, e a subnotificação da doença e das mortes, por outro. O aumento da precarização da vida, em especial nas periferias, entre os negros e negras, gera uma pressão na qual os mais atingidos pelas mortes, pelo vírus ou pela fome, podem passar a defender a retomada das atividades econômicas ou a fazer isso na marra, como já se percebe nos bairros e cidades mais pobres.

Também é importante não reforçar a ideia de que o Ministério da Saúde e os militares, somando-se a governadores e prefeitos, formariam um “governo dentro do governo”, ao mesmo tempo que sabemos que eles aplicam uma política que tampouco coloca a vida sobre os lucros. Semear ilusões desse tipo pode contribuir para uma certa legitimação das mortes que já estão ocorrendo e vão se ampliar, como tendo sido aquelas “inevitáveis”, pois teria sido feito todo o possível, apesar de Bolsonaro.

Por fim, nunca é demais recordar que se avaliamos que não há, nesse momento, uma operação em curso para derrubar Bolsonaro, seja por algum movimento de massas, e tampouco entre as frações burguesas, Bolsonaro contará com a máquina do governo para disputar as conclusões dessa experiência.

O fato é que, seu último pronunciamento, no último dia 31/03, moderou o tom mas manteve o essencial do conteúdo, que é a contraposição entre a preservação da vida e a preservação dos empregos e da renda, o que é na prática uma chantagem contra a população, em um dos países mais desiguais do mundo, com efeitos que já são verificados nas ruas.

A evolução da pandemia no país, que tudo indica provocará milhares de mortes e centenas de milhares, senão milhões de infectados, provocará cenas nunca vistas pela nossa geração, o que torna impossível prever a reação da maioria da população brasileira. Até lá, para que possamos enfrentar o governo Bolsonaro e oferecer as melhores respostas em cada momento, é fundamental não menosprezar os elementos estruturais da formação do nosso país que podem ser aproveitados pelo governo para a preservação de sua governabilidade e a imposição das suas políticas.

 

LEIA MAIS

Oito notas sobre a nova pesquisa da XP sobre política nacional e coronavírus

A tutela militar ao governo Bolsonaro