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BRASIL

Para a burguesia, Bolsonaro é um isolamento sanitário. Contra nós.

Jean Montezuma, de Salvador, BA
Agência Brasil

“Não é preciso ter olhos abertos para ver o sol, nem é preciso ter ouvidos afiados para ouvir o trovão. Para ser vitorioso você precisa ver o que não está visível.”
Sun Tzu 

Vivemos, todos nós, um acontecimento de caráter histórico. Nada na contemporânea história da humanidade se assemelha em dimensões aos efeitos já sentidos por causa da pandemia mundial do Corona Vírus. Se a velocidade do contágio seguir dentro da média, nos próximos dias seremos 1 milhão de contaminados em todo planeta. Mais de 50 países implementaram medidas de isolamento social para tentar deter o avanço de um vírus que ainda não possui remédio ou vacina.  Governos e cientistas tentam desesperadamente ganhar tempo e poupar vidas. Essas medidas de isolamento, somados todos os países, atingem 2,8 bilhões de pessoas, um terço de toda população mundial. Em uma frase: O mundo está em quarentena.

Diante de  uma ameaça tão grave as suas vidas e de seus entes queridos, milhões de brasileiros tem acompanhado estarrecidos a condução caótica, irresponsável e sim, criminosa, que o presidente Jair Bolsonaro tem dado a crise provocada pela pandemia do Covid-19. O combate a pandemia e a defesa da vida das pessoas não é uma questão de opinião. Bolsonaro não pode “discordar do vírus”, chamá-lo de “gripezinha” e defender a volta a normalidade. Após o seu novo pronunciamento a nação,  milimetricamente pensado para fechar todos os flancos abertos pelos erros cometidos pelo próprio presidente, Bolsonaro voltou as redes para novamente atacar governadores e prefeitos, e combater o isolamento social, única medida até aqui eficaz para deter a escala do vírus. Isso não é opinião, é crime.

O presidente cometeu crimes?

De acordo com a Constituição federal e com a lei 1079/50, conhecida como a lei do Impeachment, sim. Na verdade, ao longo dos seus 15 meses de mandato Bolsonaro tomou várias atitudes que configuram crime de responsabilidade. Basta lembrar o papel absurdo cumprido pelo seu governo na ocasião da tentativa de golpe na Venezuela (onde se dispôs a colaborar com um plano de ação militar dos EUA contra o país vizinho) e no consumado golpe na Bolívia (onde seu Ministério das relações exteriores atuou em favor da desestabilização do governo Evo Morales). 

Em ambos os casos, Bolsonaro infrigiu o artigo 4º  da Constituição Federal que trata das relações internacionais, e que estabelece como princípios a autodeterminação dos povos e a não intervenção. Por extensão, infrigiu também o artigo 5º  da lei do Impeachment que considera “crime contra a existência da União” a atitude de “cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade”.

Mas, nos detendo particularmente aos fatos ocorridos no último mês, o presidente cometeu ao menos dois crimes. O primeiro deles de natureza política. Ao convocar, ainda que indiretamente, e em seguida participar, de um ato que tinha  como uma de suas bandeiras o fechamento do Congresso. Bolsonaro chegou a dizer que os atos seriam uma forma legítima de pressionar Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre a mudarem de opinião frente ao debate do orçamento impositivo. Segundo a lei do Impeachment, no seu artigo 6º , que trata de crimes contra o livre exercício dos poderes legisltativo e judiciário consta que é vedado ao presidente: “ usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagí-lo no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção”

O segundo crime foi de natureza comum, contra o Código Penal. Ao combater o isolamento social, chegando ao ponto de promover uma campanha institucional “O Brasil não pode parar” e de, deliberadamente, ir as ruas de Brasília por fora da sua agenda oficial promovendo aglomeração de pessoas e risco de contágio, Bolsonaro infrigiu o artigo 268 do Código Penal. Esse artigo trata de infração contra  determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. A determinação que Bolsonaro descumpriu foi a lei 13.979 que trata das medidas de combate ao Corona vírus, aprovada no Congresso e sancionada por ele mesmo, o presidente, no dia 06 de fevereiro desse ano. A pena para infração do artigo 268 do código penal é detenção de um mês à um ano, e multa.

Mas, se as palavras de um socialista como eu não foram suficientes para convencer você, caro leitor ou leitora, vejamos então o que diz Miguel Reale, jurista “insento de socialismo” e co-autor dos pedidos de impeachment contra Fernando Collor e Dilma Roussef.  Em entrevista a revista Veja Reale afirmou: Não tenho a menor dúvida de que, juridicamente, ele cometeu crime de responsabilidade e crime comum. Na mesma entrevista, Reale fundamenta juridicamente sua opinião: 

Em primeiro lugar, ele está infringindo todo um arcabouço jurídico criado para conter a epidemia. Existe uma declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS), dizendo que o isolamento é a medida mais correta (para se tentar controlar a pandemia). Em função dessa declaração da OMS, feita em janeiro, o Congresso fez rapidamente uma lei, a 13.979, que estabelece medidas a serem adotadas no país na luta contra o vírus. Ela prevê, entre outras medidas, a quarentena, a internação etc. Estamos falando de uma lei feita pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente. Depois, foi editada uma portaria do Ministério da Saúde, outorgando a estados e municípios a possibilidade de decretação de isolamento. […] Ou seja, há todo um aparato legal estabelecido no sentido de se adotar medidas urgentíssimas e severas para proteger a saúde da população, e ele vai na contramão disso tudo por interesse pessoal?

Porque então Bolsonaro ainda está de pé?

Para responder essa pergunta é preciso resgatar as condições pré-existentes, portanto anteriores a conjuntura na qual nos encontramos. É indispensável lembrar que em 2016 houve um golpe de Estado no Brasil, golpe este chancelado pelo imperialismo e pelo núcleo duro da burguesia brasileira. Um golpe que derrubou Dilma e o PT, mas que tinha como objetivo estrutural e estratégico implodir o pacto político-econômico-social expresso na Constituição de 1988.

Com o aval da grande burguesia, os operadores do golpe (no Congresso, judiciário e na Imprensa) foram permitindo que uma corrente de opinião de extrema-direita criasse raízes. Como um vírus, o bolsonarismo se disseminou rapidamente. Alimentando-se do ressentimento social dos setores médios atingindos pela crise, e da desilusão de amplos setores da classe trabalhadora, massificou-se. Conquistou força política suficiente para se opor vorazmente não apenas a esquerda, mas para também suplantar eleitoralmente a própria direita tradicional, vencendo assim as eleições de 2018.

As vozes que hoje, no Congresso, judiciário e imprensa, criticam  Bolsonaro, disseram sim ao Capitão quando este se apresentou como um “cordão de isolamento sanitário” contra a esquerda e os movimentos sociais, sindicais e populares. E não falo só de Bolsonaro, o indivíduo, me refiro ao pacote completo: Bolsonaro, bolsonarismo, milicias e, em especial, os militares. Estes últimos inclusive, após o fim da Ditadura, nunca gozaram de tanta autoridade política e poder de influência como agora. Em úlitma instância são justamente eles, os militares, quem chancelam políticamente o governo.

Ao se utilizar de Bolsonaro e o bolsonarismo como um cordão sanitário contra os de baixo, o “andar de cima” tem adotado a estratégia da “domesticação”. Contudo, não é da natureza de um fascista como Bolsonaro a moderação. Todos os teóricos que se dedicaram ao estudo do fascismo observaram entre as suas caracteristicas uma retórica “anti-sistêmica” e seu apelo à um “estado de mobilização”. Um fascista como Bolsonaro trabalha permanentemente com base a ideologia do “cerco”, segundo a qual todos que pensam diferente são inimigos e é necessário manter a mobilização dos seguidores para o sucesso de seu projeto de “salvação nacional”. 

Se o governo Bolsonaro ainda está de pé, é porque existe uma correlação social e política de forças tal, que os setores chaves da burguesia brasileira optam por chancelar a continuidade do seu governo ao invés de embarcar num projeto que envolva sua interrupção. É um calcúlo político complexo, mas que, em última instância se resume no temor de que a classe trabalhadora possa cumprir qualquer papel de protagonismo por meio de seus partidos e organizações. Por isso toleram, uns mais outros menos, uns até mesmo com “as mãos no nariz”, o jeito grosseiro e tosco do Capitão. Em resumo é uma escolha política, não jurídica ou legal.

Por fim, e justamente por tudo que tentei expor até aqui, é que a esquerda brasileira não pode se limitar a ser um vagãozinho vermelho na locomotiva de Maia, Alcolumbre, Globo e Folha de São Paulo. Precisamos deixar nítidas as nossas diferenças, expôr a cumplicidade destes com Bolsonaro, em especial seu apoio aos serviços prestados  pelo Capitão que pisoteou com sua botina militar os direitos sociais e as garantias democráticas. Conquistas que embora fragéis, foram arrancadas na luta e, em parte, consolidadas pelo pacto constitucional de 88 que pelas mãos de Bolsonaro a burguesia pretende queimar até a última folha.