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BRASIL

Os dois discursos de Bolsonaro: uma breve análise sobre a inflexão do governo no trato da pandemia

Jorge Alves e Felipe Demier, do Rio de Janeiro (RJ)

Do discurso abjeto do dia 24 ao do dia 31, Bolsonaro fez uma nítida inflexão. Para compreendê-la, convém avaliar o que aconteceu no país e, mais precisamente, na dinâmica da crise política nacional, entre esses dois pronunciamentos. Ainda que distintos na forma, ambos encerram o mesmo conteúdo. Taticamente diversos, correspondem à mesma estratégia do governo neofascista. Nas poucas linhas abaixo, tentaremos apresentar isso de um modo bastante sintético e, por conseguinte, um tanto quanto impreciso. Diante da aceleração do tempo da luta política e social no país, o tempo urge e algumas análises têm que ser arriscadas e disponibilizadas antes mesmo de amadurecerem, sob pena de quando vierem a público já estarem obsoletas. Se os riscos de imprecisão e equívoco são inerentes a qualquer análise, naquelas feitas no calor dos acontecimentos tais riscos tornam-se ainda maiores. Todavia, em tempos de graves riscos à humanidade em geral, e aos trabalhadores em particular, não deverão ser os riscos do papel a nos imobilizar. Arrisquemo-nos.  

O discurso de Bolsonaro na semana passada, dotado de traços psicóticos e estruturado por uma narrativa delirantemente negacionista em relação à pandemia, reativou as bases sociais mais estridentes do neofascismo, com destaque para os estratos médios conservadores e radicalizados, até aquele momento na defensiva diante da indisfarçável incapacidade do seu führer em dar conta da ameaça sanitária no país e dos primeiros sinais de insatisfação popular com o governo, expressos nos chamados “panelaços”. Ao mesmo tempo, aquele discurso, tétrico, obteve eco em todas as classes sociais: os agentes do mercado financeiro que pressionavam pela linha dura e “pragmática”, o pequeno comerciante da esquina temeroso de ter seu negócio fechado e/ou sem clientela e o trabalhador desassistido com medo do desemprego ou cético em relação à ajuda estatal. Em um amplo leque da sociedade brasileira em alta tensão, do bispo de olhos vermelhos ao banqueiro com (muito mais do que) um milhão, passando pelos empresários gananciosos e pelos precarizados desesperados, o chamado “à normalidade” de Bolsonaro encontrou vasta audiência, e vimos  crescer o número de pessoas nas ruas depois do dia 24. Infelizmente.

Entretanto, como tal conduta governamental  era, inegavelmente, muito dura e mesmo acintosa, ela também resultou, paralela e dialeticamente, em um desgaste de Bolsonaro junto a  todas as classes sociais: o burguês mais lúcido receoso com a potencial instabilidade político-social, a classe média mais estável sob efetiva quarentena, o trabalhador mais consciente que sabe que o colapso do sistema de saúde ameaça a sua própria vida e de seus familiares etc. Voltar ou não à vida “normal”, eis a questão cuja resposta dividia com uma linha vertical e sinuosa a sociedade brasileira como um todo, divisão essa que, na linguagem política, assumiu a forma do embate entre os panelaços pela vida e as carretas da morte. A vida ou o lucro, este era, e continuar a ser, o fulcro, o x da questão em um Brasil febril, cujos mortos já chegam às dezenas neste mês de abril.

Portanto, o cenário após o discurso do dia 24 foi tal que, do ponto de vista social, Bolsonaro demonstrou resiliência e, concomitantemente, desgaste. Nem só uma coisa nem só a outra. Em um outro nível de análise, mais propriamente político, parece nítido que, de fato, Bolsonaro acumulou um isolamento institucional, expresso na escalada na luta contra a frente de governadores, nas sinalizações mais claras vindas do legislativo e do STF, e nas tensões dentro do próprio governo. Esse isolamento na esfera política tem peso, é claro, para o desdobramento da trama social brasileira, mas não devemos pensar que isolamentos institucional e social são sinônimos, assim como é bom termos em mente que eles não necessariamente evoluem no mesmo ritmo e não assumem as mesmas formas.

Em resumo, pode-se dizer que, depois do discurso do dia 24, Bolsonaro se desgastou junto a certas parcelas de quase todos os estratos socais e que seu governo aprofundou sua dissonância em relação à harmonia das instituições democrático-liberais – o que, aliás, não é de se estranhar se tivermos em mente as tendências e projetos bonapartistas desse mesmo governo. Contudo, tal afirmação não nos deve levar a considerar que o governo Bolsonaro se mostrou a partir dali um governo socialmente isolado, tendencialmente sem lastro – quer no andar de cima, quer no andar de baixo, habitado pelas massas (em especial aquelas que há pouco tempo o elegeram inapelavelmente). Portanto, seu recuo no último pronunciamento, feito no dia 31, não deve ser tomado como um ato de desespero de quem estava nas cordas, não pode ser visto como uma brusca inflexão de orientação derivada da percepção do presidente de que “estava equivocado”, e menos ainda pode ser traduzido como uma capitulação – aliás, desde meados de 2018, ainda durante a campanha eleitoral, tem sido a burguesia que vem capitulando politicamente a Bolsonaro, e não o contrário. O último discurso de Bolsonaro, supostamente mais “racional”, trata-se, a nosso ver, de um recuo tático de quem ainda tem considerável margem de manobra em sua estratégia neofascista e assassina diante da crise. Nesse sentido, nos arriscamos a dizer até que, não obstante todas as debilidades congênitas do motorista, tal manobra foi muito bem executada, evitando agora maiores colisões desnecessárias. No campo de batalha, o presidente neofascista evitou deixar qualquer flanco descoberto. Seu recuo parece radical, mas sua operação foi pontual, com mãos de cirurgião. Se no discurso do dia 24 Bolsonaro havia elevado o moral de sua tropa plebeia, no do dia 31 tratou de amainar a fúrias dos seus “adversários” burgueses e políticos, dentre os quais certamente existem aqueles ansiosos por uma “capitulação honrosa” em uma guerra cujo butim, certamente, não será constituído por suas fortunas, e sim pelos direitos dos trabalhadores.  

Nos próximos dias, pode ser que Bolsonaro, como efeito do último pronunciamento, contenha seu desgaste, recomponha em algum nível seu respaldo institucional, e se reposicione para jogar em melhores condições as próximas fases do jogo. Mas, dadas as múltiplas variáveis em ação no contexto da pandemia e da crise em geral no país, também pode ser que não. Em uma conjuntura tão dramática quanto incerta, o melhor a fazer é seguirmos acompanhando com cautela os desdobramentos desse último ajuste de linha de Bolsonaro, de modo que impressionismos e visões unilaterais não tenham lugar entre nós, e que possamos continuar elaborando análises as mais certeiras possíveis, o que, é claro, incluirá os já ditos riscos da imprecisão e dos equívocos, mas não parece haver mesmo outra maneira para quem faz a luta política a quente.