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BRASIL

Que história encontrará seu fim lá embaixo?

Lucas Duarte*
Magritte

Golconda (1953)

Através da arte o homem conquista a realidade mediante uma experiência subjetiva. Na ciência, o conhecimento que o homem tem do mundo ascende através de uma escada sem fim, e a cada vez é substituído por um novo conhecimento, cada nova descoberta sendo, o mais das vezes, invalidada pela seguinte, em nome de uma verdade objetiva específica. Uma descoberta artística ocorre cada vez como uma imagem nova e insubstituível do mundo, um hieróglifo de absoluta verdade. Ela surge como uma revelação, como um desejo transitório e apaixonado de apreender, intuitivamente e de uma só vez, todas as leis deste mundo — sua beleza e sua feiúra, sua humanidade e sua crueldade, seu caráter infinito e suas limitações.
Tarkovski (1)

 

A política contemporânea se move, para a classe trabalhadora, nos labirintos imprecisos de um imenso dilema: aos perigos físicos de uma brutal repressão e à contingente ameaça da imobilidade veio somar-se a desgraça mortífera de uma pandemia. Já não é possível acreditar no futuro ou é mais do que nunca preciso apostar nele?

Ante um paciente historicamente abatido, os diagnósticos têm sido certeiros. A dominação burguesa no Brasil assumiu, com o bolsonarismo, seu caráter mais nefasto, abandonou até mesmo as máscaras de uma democracia blindada para expressar uma forma de bonapartismo canibal, que conta os mortos aos milhares, e que não procura sequer disfarçar sua essência sanguinária. Um governo miliciano, paramilitar, assumiu o controle de um paraquedas fechado que não promete mais do que um choque fatal no final do precipício. Elevando os subterrâneos da sociedade à política,  conformou ministérios negacionistas, avessos à razão e à criação, isto é, à própria humanidade.   

Neste cenário, a suposição de uma normalidade que não há serviria somente para interditar a compreensão do significado específico de cada um dos eventos que mobilizam a política do cotidiano. Por exemplo, é preciso abordar com clareza que o pedido de impeachment de um governo neofascista-miliciano não tem exatamente o mesmo conteúdo que o pedido de impeachment de um governo burguês convencional. A constituição de um eixo ao redor da palavra-de-ordem “Fora Bolsonaro” – extremamente importante para o fortalecimento do polo, ainda que subjetivo, de oposição ao governo – ao empalmar com uma ação de impedimento protocolada por setores da esquerda (até agora improvável, mas, mesmo assim, ordenadora) ganha um significado político fundacional.  A saída de Bolsonaro do governo – ainda que descartado pelas próprias frações burguesas que alguma vez lhe apoiaram – confundiria o tabuleiro político nacional e deixaria pouca margem para prognósticos terminantes de qualquer natureza. Muita água terá passado e passará debaixo da ponte caso ele seja, ou quando seja, destituído do seu cargo. Para a organização popular neste período, cujo caráter defensivo é inegável, a derrubada do presidente miliciano pode significar a abertura – ou renovação – de certos horizontes de possibilidades.

Ao negar a dramaticidade do coronavírus, Bolsonaro assumiu o custo político de cada um de seus mortos. Com quase todas as letras, deixou claro que não lhe importam. Emulando uma preocupação com a crise econômica que o capitalismo mundial é incapaz de resolver, deu vazão a uma crise política que suas hordas paramilitares talvez não possam enfrentar. Porque já não se trata da duvidosa disputa entre narrativas sobre a realidade, mas da dolorosa contundência de uma crise pandêmica que devolve à ciência sua legitimidade fulcral. As fake news esbarrarão em ambulatórios superlotados e, neste sentido, a desmoralização, ainda que parcial, do obscurantismo bolsonarista pode estender-se ao conjunto dos setores reacionários no que diz respeito à condução de uma emergência sanitária dessas dimensões. Não devemos descartar que este cenário resulte na necessidade de reordenamento da própria dominação capitalista no Brasil. 

É difícil prever até o final as consequências da profunda e trágica peculiaridade de se atravessar uma pandemia durante o governo de um Bonaparte. Não se trata de esperar pela intervenção salvadora de uma burguesia liberal ilustrada, mas de reconhecer a natureza imprevista dos impactos acarretados pela pandemia.  Não exagerar, mas não ignorar que provavelmente os dados econômicos e sociais provocados por esta crise tenham custos e feições de guerra para os regimes políticos de todo o mundo. Ainda não ficou claro qual será a saída do capital: a profunda incerteza expressada pelos governos e mercados globais, dentro de certos parâmetros, pode derivar em soluções de todo tipo a partir da constatação da absoluta insustentabilidade do modelo neoliberal. 

Os prognósticos mais pessimistas dão conta de um incremento repressivo nos sistemas políticos a nível mundial. No cenário atual, é certo, o estado de sítio permanente é uma ameaça concreta. No entanto, este futuro não está determinado. Os terremotos que atravessamos talvez deixem fissuras nas formas de dominação e expropriação conhecidas e seus resultados definitivos, quando o sejam, dependerão da interação, até certo ponto imprevisível, de determinados fatores. 

Para ser completa, a abordagem realista (científica) das derivadas políticas a partir de seus elementos concretos não pode ignorar as parcelas de imponderável que as compõem. Assim como não é possível afirmar um Sentido histórico que nos assegure o triunfo final, de nada serviria sucumbir a uma Cassandra que nos afiance a ruína. A profundidade da crise em que estamos nos obriga a uma forma de apreensão radical da própria vida para, mesmo em condições francamente desfavoráveis, engendrar novos percursos. Este é um dos sentidos em que a ciência e a arte se interpelam na intervenção política. (2)

A Terra, redonda, reitera seus movimentos. Estamos em meio à queda, é verdade, mas é somente uma história, e não todas, a que encontrará o seu final lá embaixo. 

 

Lucas Duarte é historiador e militante do Nuevo MAS (Argentina). 

 

NOTAS

1 –  TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998,  pp. 39-40.

2 –  SÁENZ, Roberto. Ciencia y Arte de la política revolucionaria. Buenos Aires: Editorial Antídoto, 2018.