Um dia um parente veio questionar a Comissão Nacional da Verdade, depois que falei que estava participando de um coletivo que colaborou com seus trabalhos. Me disse que havia estudado “os dois lados”, só que ele sabia que eu sabia que ele nunca havia lido um livro na vida. Obviamente que perguntei o que ele havia lido sobre o assunto, e ele desconversou.
Isso foi em 2014, quando acreditávamos que a direita tradicional poderia voltar ao poder eleitoralmente, mas não um sujeito que defendia a ditadura militar como Bolsonaro. A ignorância venceu, perdemos a batalha pela memória, e hoje nós, professores de história, temos que dedicar um tempo das aulas para provar aos alunos que foi uma ditadura. Pelo menos, por enquanto, esse direito não nos foi cassado.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) teve muitos limites e o principal deles foi de natureza política. Lembro que nos anos anteriores à instalação da CNV, no debate sobre os modelos, eu sempre pensava no exemplo da equivalente na África do Sul (dedicada aos crimes do Apartheid) como exemplo de conciliação com o passado que deveria ser evitado.
Para além do relatório final de quatro mil páginas, a nossa CNV não foi capaz de produzir efeitos pedagógicos, nem mesmo um documentário, que seria a forma mais didática de transmitir seus resultados à população brasileira. Deixamos que os obscuros saudosistas da ditadura militar ganhassem espaço no incontrolável mundo das redes sociais, onde a ciência é só mais um discurso possível.
Olhando de hoje, sem dúvida nenhuma a comissão sul africana parece muito progressista, embora mantenha a marca da conciliação. Explico: os perpetradores de crimes contra a humanidade na África do Sul tiveram a oportunidade de, confessando seus crimes, conseguirem a anistia. Ao menos, produziu-se uma enorme catarse nacional e, com todos os problemas provenientes do modelo neoliberal implantado pelo esquema do poder implantado por Mandela a partir dos anos 1990, não parece haver espaço, salvo engano, para o surgimento de negacionistas que tenham chances de chegar ao poder no cenário político daquele país africano.
No Brasil nunca houve um verdadeiro ajuste de contas com o passado, e a estratégia conciliatória cobra um alto preço político hoje. As Forças Armadas e suas forças auxiliares (as PMs), nunca passaram por uma reforma democrática. E isso naturalmente está ligado à natureza do processo de transição pelo alto para a agora ferida de morte democracia brasileira.
Ainda assim, durante a vigência da democracia de 1988 no campo acadêmico se produziram algumas mitologias, como a de que “as Forças Armadas de agora não seriam capazes de atos como os do passado”, “acabou a Guerra Fria” e todo o blá blá blá. Os que acusaram essa tese de mistificação foram minoritários no campo acadêmico.
Quando iniciei minha trajetória acadêmica, no início do século XXI, preferi fazer parte dessa minoria, e hoje, apesar do pesadelo que estamos vivendo, não carrego a culpa de ter trocado a dignidade de entender que nossa disciplina está imbricada nas batalhas pela memória por baboseiras dos apologetas da finada ordem liberal. A principal versão desses revisionistas (que por volta do início do século XXI hegemonizaram o campo acadêmico) era a de que “nem a esquerda nem a direita tinham amor pela democracia em 1964”, discurso que se desdobrava na narrativa de que “as esquerdas que lutaram contra a ditadura queriam outra ditadura” e todo blá blá blá que se desdobra disso.
Pela enésima vez esse tipo de revisionismo histórico acabou abrindo a porteira para o puro negacionismo histórico que hoje é o discurso oficial do governo e que está na ordem do dia nos quarteis. E pela enésima vez está provado que a batalha pelo passado é uma batalha pelo presente.
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