Para muitos, tratar do passado é algo incômodo, pois ele traz à tona momentos difíceis e dolorosos. Por isto, a ideia de virar a página para não reabrir feridas foi tão forte em relação a ditadura empresarial-militar no Brasil. Por outro lado não falar desse período serve para acobertar os crimes e facilitar a vida dos que tentam falsificar a história. Falar do passado não é exatamente uma opção. Ele sempre está em nosso presente. É dele que vem a nossa construção social.
Hoje a nossa dramática realidade é fruto der um golpe parlamentar e da eleição de um governo neofascista que avança com a retirada de direitos, ampliação da coerção aos movimentos sociais e a defesa de posições inaceitáveis no que toca a direitos humanos.
Ganharam força setores que reivindicam o período da ditadura. O atual presidente da República rende, sempre que pode, homenagem ao Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1), elogia ditadores como o paraguaio Alfredo Stroessner (2) dizendo tratar-se de um estadista, defende que se comemore a implantação do golpe de 1964 (3) e, por último, nega a existência de uma ditadura em 1964 no país enviando uma mensagem à Organização das Nações Unidas (ONU) afirmando que não houve golpe no Brasil (4).
Seguindo essa mesma lógica nesse dia 31 de março de 2020 autoridades das forças armadas, em vez de estarem dedicadas a combater a pandemia, soltam um texto exaltando o golpe de 1964. Isso por si só já é muito grave. Mas se lembrarmos que no último dia 15 o presidente da República convocou manifestações contra o Congresso e o STF e que o deputado, filho do presidente, fez ameaças à oposição com uma reedição do Ato Institucional n° 5 (AI-5), podemos afirmar que há por parte desses setores uma tendência autoritária quase incontrolável.
Ao observarmos mais detidamente, percebemos que, na verdade, a ditadura se tratou de uma ação com forte interesse de classe, já que inúmeros empresários e o próprio imperialismo estiveram envolvidos nessa articulação e na conformação dos governos. Dreifuss nos confirma isso em suas análises, de como representantes do empresariado estavam dentro dos governos militares.
Um exame mais cuidadoso desses civis indica que a maioria esmagadora dos principais técnicos em cargos burocráticos deveria (em decorrência de suas fortes ligações industriais e bancárias) ser chamada mais precisamente de empresários, ou, na melhor das hipóteses, de tecno-empresários. (5)
Os governos do período ditatorial viabilizaram muitos negócios a setores como das empreiteiras, montadoras de carro e grandes meios de comunicação. Um mar de corrupção e conchavos tomou conta dos corredores palacianos. Em troca, os empresários apoiavam e financiavam o aparelho repressor estatal. É comprovado que empresas como Camargo Correa, Volkswagen, grupo Ultragaz, entre outros, contribuíam financeiramente com a Operação Bandeirantes (Oban).
Um caso muito conhecido é o do empresário dinamarquês radicado no Brasil Henning Albert Boilesen, que organizava essa contribuição para financiamento da repressão e foi justiçado por guerrilheiros da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) em abril de 1971.
Boilesen se destaca por ter sido o responsável por organizar, junto a outros empresários, a arrecadação de fundos para a Operação Bandeirantes (Oban), criada em São Paulo, pelo comandante do II Exército, general José Canavarro Pereira, em conjunto com a Secretaria de Segurança do estado, chefiada por Hely Lopes Meirelles, para unificar o combate aos opositores do regime. […] Esta colaboração era retribuída sob a forma de favores estatais para a viabilização de negócios, como se pode perceber no caso de Sebastião Camargo, da empreiteira Camargo Corrêa, um dos maiores contribuintes com a “caixinha da Oban”, que conseguiu contratos para a construção de grandes obras públicas, como a Ponte Rio-Niterói. (6)
Os estudos e depoimentos apontam que muitas empresas mapeavam os trabalhadores que tinham algum tipo de atividade politica ou sindical e os entregavam a repressão. A própria Volkswagen não só cedeu meios materiais para repressão como dentro de suas dependências ocorreram torturas, como já foi relatado em algumas pesquisas.
“Outro caso de graves violações de direitos humanos aconteceu com Lúcio Bellentani, na Volkswagen de São Bernardo do Campo, em 1972.53 Segundo seu depoimento, ele “estava trabalhando e chegaram dois indivíduos com metralhadora, encostaram nas minhas costas, já me algemaram. Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco”. Foram presos no mesmo episódio mais de 20 metalúrgicos, a maioria da Volkswagen e o restante da Mercedes, da Perkins e da Metal Leve.” (7)
Esse aparelho repressor foi responsável pela censura, perseguição, tortura, morte e desaparecimento de muitas pessoas. Não é possível deixar essa história ser falsificada e os torturadores e assassinos não podem posar de paladinos da democracia. O Brasil ainda tem um acerto de contas a fazer com a história. Apesar das Comissões da Verdade que existiram pelo país terem contribuído como contraponto, rompendo o silenciamento destas páginas da história nacional, não conseguimos ir até o fim. Diferentemente de outros países, não fomos capazes de punir os torturadores e seus colaboradores militares e civis. Nesse momento, a preservação dessa memória e a busca pela verdade estão sob ataque. Lembremos que o governo Bolsonaro encerrou o grupo de trabalho que investigava as ossadas encontradas no cemitério de Perus, na zona leste da capital paulista. (8) Ações como essas servem para esconder o passado criminoso do Estado brasileiro e das forças armadas. Nesse sentido, é fundamental entendermos que a construção da memória coletiva de nossa sociedade está em disputa. É tarefa disputar todos os espaços com aqueles que representam movimentos anticivilizatórios.
Acusações de terroristas, vagabundos e bandidos hoje são proferidas por autoridades importantes do país para se referir a esquerda e a memória de quem resistiu a ditadura. Mas aqueles que defendem quem torturou, executou e ocultou cadáver estão no poder. Não é a toa que também alegam que a economia não pode parar diante da pandemia, mesmo que isso signifique milhares de mortes. A vida humana nunca valeu e não vale nada para eles. Portanto, é nosso dever deixar essa página de nossa história sempre aberta e sendo um campo de resistência. Seguiremos defendendo a prisão de todos os agentes civis e militares que participaram ou corroboraram de alguma forma com crimes durante a ditadura empresarial-militar.
NOTAS
1 – Disponível em: https://bit.ly/2TH60j6. Acesso em 01 de ago de 2018.
2 – Disponível em: https://bit.ly/2wyJykh. Acesso em 01 de mar. de 2019.
3 – Disponível em: https://bit.ly/38tILON. Acesso em: 26 de mar. de 2019
4 – Disponível em: https://glo.bo/2PTrUPa. Acesso em: 10 de abr. de 2019.
5 – DREIFUSS, RENÉ A. 1964. A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 417.
6 – RIO DE JANEIRO (Estado). Comissão da Verdade do Rio. Relatório / Comissão da Verdade do Rio. – Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015. p 69.
7 – A Luta Dos Trabalhadores Por Verdade, Justiça e Reparação. Relatório do Grupo de Trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores, às Trabalhadoras e ao Movimento Sindica. p.19. Disponível no site https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/livro%20a%20luta%20dos%20trabalhadores[1].pdf. Esse texto foi baseado no relatório do Grupo de Trabalho no 13 da Comissão Nacional da Verdade, sobre Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical (GT-13).
8 – Disponível em: https://bit.ly/2v3Pu4v. Acesso em: 24 de abr. de 2019
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