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BRASIL

A barbárie como fábula

Priscila Arce*, de São Paulo (SP)
Agência Brasil

A pandemia global será um divisor de águas na nossa existência. Isso é o que propagam pessoas de todo o mundo. Na contramão da história o Presidente do Brasil Jair Bolsonaro, que gosta de ser chamado de capitão, comanda o país rumo a morte dos mais excluídos, que beira mais de 80 milhões de brasileiros.

 Declarou tranquilamente na TV aberta que a gripezinha vai matar os velhinhos de Copacabana ou os que não são atletas como ele e já apresentam um quadro de doenças para morrer. Daí a gente pensa se os velhinhos de Copacabana poderão morrer e os nossos velhinhos da quebrada que dependem do sistema público de saúde (SUS)?  

O presidente se remete em seus delírios diários a geração dos nossos pais e avós. Ele fala de nossas famílias e de nós filhos dos trabalhadores e trabalhadoras que construíram e alicerçam este país, do qual ele se diz presidente, Bolsonaro fala para você – o excluído do Albert Einstein (não Alberto como disse em vídeo Bolsonaro). 

Nasci, cresci e trabalhei por mais de uma década na periferia do extremo leste da cidade de São Paulo, sendo professora, coordenadora pedagógica e diretora de escola e posso descrever tranquilamente o que significa ficar doente na quebrada. A gente aguenta de tudo, mas é uma zica precisar de médico. Nunca soube direito o que era uma consulta médica com exames de rotina, sempre fui curada de todos os males a base da analgésicos e antibióticos. 

A gente não tem direito de ficar doente quando cresce na quebrada.

A partir da minha história de menina da periferia, não tenho recordações de frequentar pediatra regularmente, nunca realizei  exames complexos sem a espera de seis meses a um ano, ginecologista para nós meninas da periferia sempre foi artigo de luxo. Da última vez que levei um estudante que havia acabado de convulsionar duas vezes na quadra da escola a uma UPA (Unidade Pronto Atendimento), quase desmaiei – uma multidão de pessoas com quadros graves em plena terça-feira de um tarde qualquer a espera de uma consulta –  e presidente não eram gripezinhas não. A gente não tem direito de ficar doente quando cresce na quebrada. Consultem o mapa da desigualdade lançado pela Rede Nossa São Paulo e entenderão melhor o drama. 

O mais difícil da nossa tentativa de se manter em isolamento tem sido lidar com a impotência diante as atitudes do presidente da República, que possivelmente matará milhares dos nossos a cada dia, nos parece uma corrida contra o tempo pela vida dos nossos irmãos.  A cada vez que sai uma entrevista dele sentimos pânico, histeria e raiva, o cara fala da gente como se não fossemos gente – a vida dos nossos não importam na boca dele. 

 Das janelas verticais, é possível distinguir que uns lutam para manter privilégios e outros lutam por um mundo mais horizontal. Embora, a cada noite, muitos entre nós tomem coragem para incluir novas frases, além de fora Bolsonaro, tímidas palavras aparecem de uma janela distante e vem a tona – miliciano, genocida, fora família Bolsonaro, fora doente, fora quadrilha, fora fascista. 

Mesmo não percebendo uma indignação contra Sergio Moro que tem tomado medidas drásticas de isolamento carcerário desde dezembro de 2019, as janelas sinalizam a extrema recusa ao gabinete do ódio por boa parte da população, incluindo seus eleitores. 

As escolas foram as primeiras a serem fechadas e muitos começaram a segurar a barra de viver o ineditismo de mudar a rota de suas vidas em nome da vida de todos, tudo ia bem antes do pronunciamento de Jair Bolsonaro a nação, em 24/03. 

Tudo ia bem antes do pronunciamento de Jair Bolsonaro a nação, em 24/03. 

O maior líder da nação em nenhum de seus maiores pronunciamentos traçou medidas para os mais pobres, nunca falou de renda mínima, de estado de bem estar social, e frequentemente em outro meios de comunicação, amedronta o povo dando sinais de que nem o feijão e arroz terão na mesa mais.  Quando chegamos aqui o que muitos insistem em não compreender é que o Brasil não parou agora, o feijão não faltará agora, o Brasil já havia parado faz um tempão. 

Muitas mulheres votaram neste político, muitos ditos cristãos votaram no presidente que diz tranquilamente hoje que seu paizinho e avós podem morrer, e além disso, defende que os brasileiros caem no esgoto e nada acontece, naturalizando a miséria do país. Começaram um tal de buzinaço na avenida Nove de Julho, bem na hora do almoço, um contra-senso a elite dentro de carrões que nunca teremos a partir do nosso esforço trabalhando na empresas deles, apoiando o genocídio. Ei, você que estava no seu carro de R$ 180 mil, o convoco a se manifestar no horário de pico da linha vermelha em Itaquera às 6h da manhã sentido centro de preferência ou a partir das 17h na Sé sentido ZL:  em época de coronovírus, tá ok? 

Conscientizar estes seguidores do presidente me parece uma missão quase impossível, no entanto, todos os dias tento tal façanha: converter fanáticos, amargurados, a elite de sempre,  mesmo se tornando uma tarefa árdua para nossas almas e para nossa humanidade, mas não paro de assinar abaixo assinados virtuais, replicar textos no instagram, no twitter, facebook, doar o que posso, apoiar coletivos.

Aparentemente, a narrativa coloca apoiadores do presidente e aqueles que lutaram anos contra o Brasil como sensatos, outros devaneiam golpes de esquerda, mas ainda o mais fatal vem do gabinete do ódio que usa diariamente a linguagem contra a vida da gente com o lema voltem ao trabalho

Os seguidores da ala dos políticos e tantas outras frentes que levaram o país a esta insanidade coletiva, tentam sair de fininho e fazer marketing pessoal de que não pensam como o presidente – para nós daqui deste lado em vão, pois sabemos quem são vocês desde que nascemos. 

O coronavírus derrubou definitivamente a máscara de Bolsonaro, se é que ele precisou de uma algum dia

O coronavírus derrubou definitivamente a máscara de Bolsonaro, se é que ele precisou de uma algum dia, e simplesmente ela caiu para o lado mais sombrio da história, por trás dela eram apenas interesses econômicos de uma minoria do mundo que não vai sobreviver no mesmos moldes depois desta pandemia. 

Contudo, me parece que democracia vem saindo de cena e fechando a cortina e antes que isso aconteça concordo com Adorno, que o decisivo nesta década será envidar esforços para desbarbarizar, “superar a barbárie para a sobrevivência da humanidade”. Apenas assim conseguiremos desnudar a barbárie como fábula que tem sido o dia a dia no Brasil.

 

 

* Priscila Damasceno Arce é diretora de escola pública. Estudou em escola pública a vida toda e também foi professora, coordenadora pedagógica e apoiadora de projetos de arte urbana. Atualmente, é doutoranda na linha Estado, Sociedade e Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.