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BRASIL

O Madero, as carreatas e o Mito da caverna

Jean Montezuma*, de Salvador, BA

“Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo.” – Platão

“Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem” – Lenin

O mito ou alegoria da caverna é uma metáfora elaborada pelo filósofo grego Platão, e que faz parte do seu livro A República, obra na qual se dedica ao estudo da política. Na alegoria platônica, os prisioneiros somos todos nós, homens e mulheres comuns, o povo que desde a terna infância está acorrentado a construções políticas, econômicas, sociais e culturais pré-existentes. Ainda que não possamos vê-las ou tocá-las, essas correntes estão lá prendendo nossos calcanhares e nos agarrando pelo pescoço. Já a caverna que nos aprisiona são os  preconceitos que assimilamos como nossos. São as falsas representações projetadas sobre nós – como as sombras na parede –  por meio de construções ideológicas a serviço da distorção do real, em prol do estabelecimento  de mitos, símbolos e verdades incontestáveis, tomadas como absolutas e atemporais.

No mito de Platão, a saída da caverna e o encontro com a luz do sol é uma travessia dolorosa para o ex-prisioneiro, agora liberto. E isso é assim, porque exige um processo de desconstrução e reconstrução de si próprio, e da sua percepção do mundo ao seu redor, das leis que o  regem e que, escondidas nas sombras, escapavam ao alcance do seu olhar. Grandes acontecimentos históricos, ainda mais aqueles que se abatem de forma abrupta como é o caso da pandemia do corona vírus, balançam as estruturas e impactam o consciente coletivo. Dias valem por semanas, semanas valem por meses, meses valem por anos e, como um dia disse Marx, “tudo o que antes era sólido se desmancha no ar”.

Ainda estamos na base da montanha, é cedo  para projetar que mundo veremos ao chegarmos no topo. Contudo, ainda que estejamos no início da escalada, os últimos dias foram palco de acontecimentos que, no mínimo, questionam as sombras projetadas na parede do interior da nossa caverna. Alguns mitos, tomados como verdades absolutas, foram postos em xeque pelos seus próprios profetas.

A riqueza gera o trabalho ou o trabalho gera a riqueza?

Estimulado pelo criminoso pronunciamento à nação feito pelo presidente Bolsonaro, o bolsonarismo, que passou dias paralisado, se coesionou sob a bandeira do “Brasil não pode parar”, slogan usado há um mês pela Itália e que premiou a esse país a liderança mundial do sinistro ranking de mortes por Covid-19. As trombetas foram tocadas e, logo, carreatas começaram a ser convocadas em todo o Brasil. Chamado feito e atendido pelo sub-extrato que representa a base social mais radicalizada de sustentação política do bolsonarismo: profissionais liberais, médios e pequenos empresários, funcionários públicos de alto escalão.

Nos carros de luxo, que aliás foram o tipo padrão dessas carreatas, foram coladas bandeiras do Brasil, cartazes e faixas de apoio ao negacionismo do presidente. Num dos carros, chamou atenção uma faixa que dizia: “Eu pago seu salário”. Essa frase curta carrega uma ideia poderosa, uma ideia passada de geração a geração, e soprada aos nossos ouvidos desde a infância: a ideia de que os ricos são naturalmente ricos, são um tipo humano especial dotado de riqueza quase como uma virtude inata. Na outra ponta, nós, os trabalhadores despossuídos de riqueza, precisamos dos ricos para sobreviver. Afinal, são nas empresas deles onde arrumamos emprego e recebemos nosso salário, nosso ganha pão.

Personagem ilustrativo é Junior Durski, dono da rede de fast food Madero. A história da sua riqueza já chegou a ser contada numa campanha publicitária autobiográfica, uma narrativa mítica dedicada a justificar seu enriquecimento como resultado do seu ideal empreendedor, sua perseverança e seu conjunto de habilidades especiais que o forjam como um tipo humano único, distinto dos outros. Nesse conto fetichizado, distorcido como o efeito da sombra das chamas projetadas na parede da caverna, é escamoteado o fato de que o único modo de acumular todos os milhões que preenchem sua conta bancária é por meio da exploração. Para ser mais específico, pela extração da mais-valia, o trabalho não pago apropriado pelo capitalista e destrinchado por Marx em O Capital.

Em bom português: são os baixos salários, os contratos de trabalho precarizados, a flexibilização das leis trabalhistas e de seguridade social, que permitem ao Sr. Junior Durski deitar em berço esplêndido, riscar os céus em jatinhos e helicópteros, enquanto seus empregados se apertam nos metrôs e ônibus, ganhando um salário tão pequeno que torna um luxo degustar os sanduíches que eles mesmos preparam todos os dias nas cozinhas do Madero. À exploração direta da mais-valia do seu trabalhador, soma-se a farra do mercado financeiro, onde ricos se fazem ainda mais ricos negociando ações e títulos, esbaldando-se na agiotagem dos juros e fazendo com que cada digito a mais nas suas contas bancárias sejam descontados de nós, trabalhadores, por meio  de cortes de verbas do Estado para saúde, educação e demais áreas sociais.

Ao ir às redes sociais dizer que a economia não pode parar por causa da morte de 5 ou 7 mil pessoas, Junior Durski expôs a imensa fenda na armadura de ouro que os burgueses atribuem a si mesmos. Não, não são os trabalhadores empregados nos restaurantes, fazendas e distribuidoras da Rede Madero que precisam de Junior Durski para viver, é justamente Junior Durski que depende deles para extrair a mais-valia e se apropriar da riqueza que o torna rico. Ao exigirem, nas redes sociais ou de dentro dos seus carros de luxo, que o Brasil não pode parar,  que seus empregados devem voltar aos postos de trabalho, Junior Durski e seus iguais acabaram por trazer das sombras à luz o mito de que a riqueza que gera o trabalho, revelando sem querer que, na verdade, é o trabalho que gera a riqueza. Sendo ainda mais direto, sem nós, os trabalhadores, ou melhor, sem a riqueza fruto do nosso trabalho, os ricos não são nada. São eles os parasitas, não o contrário, como distorcidamente sugere a frase estampada no carro “eu pago seu salário”.

Como já pontuei no princípio do texto, o processo de saída da caverna, ou em linguagem marxista desalienação, é uma travessia nada simples de desconstrução e reconstrução de si mesmo e da sua visão do mundo. Incontáveis trabalhadoras e trabalhadores estão recebendo nos olhos esses raios de luz, todos os dias vêem abertamente nos telejornais o desespero do andar de cima que esperneia pela volta ao trabalho dos seus subalternos. Muitos assistiram atônitos o pronunciamento do presidente que, falando em defesa dos “Juniors Durskis”, está disposto a contar cadáveres mas não mexer nas caixas registradoras. Que uso farão estes milhões de homens e mulheres dessa experiência coletiva? Que impacto terá na sua consciência e no consciente coletivo? Mais uma vez, como disse, ainda é cedo para dizer que mundo veremos quando chegarmos ao topo da montanha.

“Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.”

Karl Marx, O manifesto do Partido Comunista

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