Na visão dos vitoriosos de 1964, as universidades haviam se tornado ninhos do proselitismo das propostas revolucionárias e de recrutamento de quadros para a esquerda. Ali se encontraria um dos focos principais da ameaça comunista, o perigo iminente de que o Brasil deveria ser salvo, e que mobilizou muitos (…). A expressão “Operação Limpeza” foi utilizada por agentes do Estado e seus apoiadores para expressar a determinação de afastar do cenário público os adversários recém-derrotados – comunistas, socialistas, trabalhistas e nacionalistas de esquerda, entre outros. (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 23-25)
Retrato do inimigo
Não é novidade que a paradoxal doutrinação ideológica da extrema direita contra a “doutrinação ideológica” da esquerda sempre teve por objetivo combater – com fervor religioso e raciocínio mecânico – as “preces de uma religião professada (…) murmuradas de forma mecânica” (conforme a retórica perversa do “mito” fascista italiano). Não são meras coincidências, portanto, as semelhanças entre as missas mussolínicas para “remover as impurezas das almas” e o evangelho reacionário dos cavaleiros da cruzada latino-americana contra os nocivos “elementos vermelhos”, que estariam se infiltrando sorrateiramente pelos poros da consciência, “envenenando a alma dos jovens”. Nesse discurso simplista, estruturado entre os polos do “bem” e do “mal”, da “sujeira” e da “limpeza”, da “saúde” e da “doença”, enfim, para combater o “veneno” seria necessário ministrar o “remédio” amargo do autoritarismo, exterminando os “doutrinadores” e disciplinando os “doutrinados”. Nos termos do “diagnóstico” do almirante Penna Botto – apresentado no congresso anticomunista de Lima, em 1957 – seria urgente, pois, adotar medidas pedagógicas drásticas para “recuperar e reconverter o maior número possível de jovens”.
Não é novidade que a política educacional dos regimes autoritários sempre cumpriu papel tático de destaque, empenhando-se para homogeneizar as ideias, as práticas e produzir a impressão de “unidade nacional”. Em que pesem as variações de tempo e espaço, de acordo com a orientação pedagógica reacionária, todo cidadão deve ter uma “formação integral”, aprendendo a falar a mesma língua, a pensar do mesmo jeito, a adorar o mesmo Deus, a torcer pelo mesmo time, a vestir a mesma camisa, a levantar a mesma bandeira, a cantar o mesmo hino, a odiar o mesmo adversário. Na axiologia maniqueísta da cartilha nacionalista da extrema direita, como sabemos bem, o “inimigo da pátria” é o agente subversivo, o criminoso que despreza a família, rejeita a tradição, investe contra os valores morais, conspira contra a nação. Em outros termos, o “lixo marxista” (expressão do tosco Bolsonazi) é o herege que não tem religião, o infiltrado que fala russo, o pária que usa vermelho, o antipatriota que canta a Internacional, o traidor que torce contra a nação. Não esqueçamos que foi para combater a “ameaça comunista” que a imagem paternal protetora de Vargas foi estampada nos livros didáticos, doutrinando os jovens estudantes para a “nobre missão” de aprender, “no lar e nas escolas”, “o culto da Pátria”, “amando o Brasil” – acima de tudo – como requisito obrigatório para realizar “os desejos de engrandecimento aninhados em cada coração brasileiro”.
Não é novidade que o ex-ministro da Educação do governo neofascista do inculto ex-milico também haveria de pregar – como os bonapartistas de 1937 e os delegados do congresso anticomunista latino-americano de 1957 – “a necessidade de recuperar e reconverter os jovens”. Para ilustrar as correspondências entre os doutrinadores da extrema direita de ontem e de hoje, enfim, o educador Roberto Leher – professor titular de Políticas Públicas em Educação da UFRJ – foi direto ao ponto nevrálgico da pedagogia reacionária bolsonazista: “Ricardo Vélez Rodríguez (…) se esmerou em ecoar esses discursos, inclusive negando a existência de um período de ditadura no Brasil, relexicalizada como ‘movimento cívico’ (…). Suas ações defendiam que este ‘fato’ fosse corrigido nos livros didáticos de História, apagando a ditadura (…). O MEC mandou mensagem às escolas pedindo que as crianças fossem perfiladas para cantar o hino nacional e que fossem gravadas, solicitando (…) que o slogan da campanha de Bolsonaro Brasil acima de tudo. Deus acima de todos fosse lido nas escolas”. (LEHER, Roberto. Autoritarismo contra a universidade: o desafio de popularizar a defesa da educação pública. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Expressão Popular, 2019, p. 25-26).
Não é novidade que a interferência do MEC nas instituições públicas de ensino, solicitando a cumplicidade “patriótica” com o governo, implicaria obviamente “esclarecer aos estudantes os aspectos básicos da doutrina comunista e oferecer-lhes alternativas”, em consonância com o projeto “Contra a infiltração marxista na juventude” de 1957, proposto no congresso de Lima pelo líder fardado da Cruzada Brasileira contra o Comunismo. Encarnando o espírito autoritário do almirante Carlos Penna Botto, é claro que ao professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército não seriam suficientes as medidas de caráter ideológico para neutralizar a “ameaça vermelha”: ou seja, para que “os últimos resquícios do socialismo” fossem mesmo “escoimados dentre nós”, seria imprescindível não apenas varrer o “entulho marxista alojado no Ministério da Educação”, mas também – na progressão da escalada autoritária – “fechar as organizações estudantis marxistas, erradicar professores que abusavam da liberdade de cátedra”. Aliás, vale lembrar que um passo nessa direção, sinalizando a dinâmica de fechamento do regime, foi dado pelo analfabeto ministro que sucedeu o estúpido colombiano naturalizado: assinando a Portaria nº 1373/2019, Abraham Weintraub atribuiu ao Ministério da Educação a prerrogativa de nomear e dispensar “cargos” nas instituições federais de ensino superior.
Não é novidade que o iletrado olavista (pleonasmo enfático da boçalização) acelerou a marcha em direção ao passado sombrio, tornando presente (paradoxo dos tempos regressivos) o espectro fantasmagórico do sombrio ministro da Educação do regime militar. Para que não reste sombra de dúvida de que as semelhanças estão longe de ser meras coincidências, vale conferir – com especial atenção – esta síntese descritiva que Aldo Arantes e Haroldo Lima fizeram das medidas repressivas implementadas depois do fatídico Golpe de 1964: “O governo, com o objetivo de sufocar a atividade estudantil, promulgou em novembro uma lei fascista (…). A lei vedava aos estudantes a participação política e lhes suprimia a liberdade organizativa (…). A Lei Suplicy visava enquadrar o movimento estudantil numa estrutura organizativa dependente da reitoria e do Ministério da Educação (…). [Flávio Suplicy de Lacerda] mandou fechar os diretórios acadêmicos que repudiaram sua Lei, decretou intervenções e recorreu a órgãos policial-militares”. (ARANTES, Aldo e LIMA, Haroldo. História da Ação Popular – Da JUC ao PCdoB. São Paulo: Alfa-Omega, 1984, p. 59-61).
Não é novidade que a Portaria nº 259 do ministro “linha dura” do presidente Castelo Branco – publicada em 19 de abril de 1964 – veio na esteira do Ato Institucional nº 1, fundamento jurídico de todas as medidas de exceção do regime militar. Só para ilustrar, foram estas as determinações do MEC que chegaram aos reitores, em 22 de abril, através do Aviso nº 705:
No firme propósito de prestar relevante serviço à causa nacional e à salvaguarda do regime, tenho a honra de sugerir a Vossa Magnificência as seguintes medidas:
- a) instauração de inquéritos administrativos que se façam necessários para imediata apuração de responsabilidades;
- b) severa vigilância sobre quaisquer atividades que possam comprometer a causa da paz social e a reintegração da ordem jurídica, democrática.
Muito agradeceria que os inquéritos, com parecer conclusivo, me sejam remetidos no prazo de trinta dias.
Não é novidade que as medidas arbitrárias de Flávio Suplicy de Lacerda se ocultaram – maquiavelicamente – sob a máscara eufemística de simples “recomendações” do governo “democrático” às universidades, partindo do “diagnóstico” de que elas seriam os ambientes mais propícios à proliferação das ideias conspiratórias comunistas. No raciocínio sofismático do sinistro ministro, enfim, para não colocar em risco a “causa nacional”, salvaguardando a “ordem jurídica” e garantindo a “paz social”, seria imprescindível identificar, combater e banir todos os focos da “ameaça vermelha” supostamente infiltrados nos corpos docente, discente e administrativo das instituições de ensino superior. Evidentemente, naquela altura do fechamento do regime, já se havia procedido à “operação limpeza” de todo o “entulho marxista no Ministério da Educação”. Como o país não vive hoje em um regime de ditadura militar, é importante ressalvar, seria essa a tarefa inicial proposta pelo colombiano reacionário, indicado para a pasta pelo astrólogo Olavo de Carvalho. As primeiras linhas do “higienista” discurso de posse de Vélez Rodríguez, portanto, já indicavam a dinâmica de retrocessos não só na área da Educação, mas também a progressiva perda de garantias individuais e liberdades democráticas que põe em risco o Estado de Direito.
Não é novidade esta denúncia do professor Roberto Leher sobre os ataques da horda neofascista governamental à autonomia universitária, princípio fundamental que assegura a liberdade de cátedra e de pensamento: “Na educação superior, [o governo] editou o Decreto 9794, de 15/05/2019, estabelecendo que a nomeação para os cargos de direção das universidades federais deve ser precedida de análise dos nomes pelo governo federal, instituindo o Sistema Integrado de Nomeações e Consultas. O Decreto 9754, de 11/04/2019, extingue cargos efetivos, prejudicando áreas administrativas das universidades. Outra medida que preocupa as universidades é o Decreto de 11 de abril, que institui o portal único ‘gov.br’ com o objetivo de unificar os portais e canais digitais dos órgãos públicos, o que pode significar perda de autonomia sobre a circulação de informações, análises e estudos pelas universidades”. (LEHER, Roberto. Autoritarismo contra a universidade: o desafio de popularizar a defesa da educação pública. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Expressão Popular, 2019, p. 32-33). Para ilustrar as palavras do educador, destacamos este trecho inicial do famigerado Decreto 9794:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso VI, alínea “a”, da Constituição,
DECRETA:
Âmbito de aplicação
Art. 1º Este Decreto dispõe sobre as nomeações, as exonerações, as designações e as dispensas para cargos efetivos, cargos em comissão e funções de confiança de competência originária do Presidente da República e institui o Sistema Integrado de Nomeações e Consultas – Sinc.
Parágrafo único. As competências para nomeação e designação previstas neste Decreto incluem as competências para exoneração e dispensa.
Nomeações pelo Presidente da República
Art. 2º São de competência do Presidente da República as nomeações e as designações para as quais não haja delegação.
Parágrafo único. A existência de delegação não afasta a possibilidade de o ato ser realizado pelo Presidente da República.
Art. 3º As propostas de nomeações, designações, exonerações e dispensas de competência do Presidente da República serão encaminhadas à Presidência da República por meio do sistema de que trata o Decreto nº 4.522, de 17 de dezembro de 2002, pelo Ministro de Estado do órgão no qual o cargo ou a função esteja inserido ou ao qual a entidade esteja vinculada.
- 1º As nomeações e as exonerações de Ministros de Estado não terão referenda ministerial.
2º O disposto no caput não afasta a possibilidade de o Presidente da República realizar o ato ex officio.
Não é novidade que a eleição dos reitores compete originariamente às próprias instituições de ensino superior: os três candidatos mais votados pela comunidade acadêmica – nem sempre representada de forma paritária nos Conselhos Universitários – compõem a lista encaminhada ao Presidente da República, que apenas referendava o primeiro nome, respeitando o princípio basilar da autonomia universitária. A (in)flexão no passado, a propósito, é sinal da mudança dos tempos (verbais e políticos), apontando a sintomática ruptura de uma tradição institucional de 15 anos (a despeito das visíveis debilidades democráticas – é importante fazer a ressalva – na composição de vários colegiados): o ex-capitão recalcado que fugiu da escola, por paradoxal que pareça, investiu-se do poder discricionário de interferir na decisão do órgão supremo representativo de professores, alunos e funcionários. Contrariando a praxe diplomática do Executivo, o ignorante ex-milico – que foi reprovado inclusive na escola do Exército – rasurou a metade das 12 listas submetidas à sua arbitrária caneta Bic: pior ainda do que o pior aluno ter aprovado candidatos reprovados (os menos votados entre os três), foi o dono do chapéu de burro ter escolhido – como se não bastasse o absurdo – ineptos professores “do fundão” que sequer constavam da lista tríplice.
Não é novidade que os seis “eleitos” não alcançariam a “graça” da nomeação se não fossem apóstolos devotos do falso Messias, se não fossem abnegados fiéis de extrema direita que comungam do credo anticomunista da Escola Sem Partido, se não rezassem fervorosamente na cartilha neoliberal do projeto Future-se do “profeta” Abraham (este remake farsesco da tragédia Pra Frente Brasil dos anos de chumbo, pastiche entreguista na máquina do contratempo de volta para o passado do acordo MEC-Usaid de Suplicy de Lacerda, será “revisto e comentado” na sequência desta série). As evidências de que o critério da escolha dos “reitores” foi o alinhamento ideológico com o governo são tão gritantes, que seria mais cômico – se não fosse tão trágico – o presidente insistir em justificar as nomeações com o indefensável argumento da necessidade de “desaparelhar” os órgãos públicos. Uma das provas inequívocas da falácia do facínora, por exemplo, foi a nomeação (a bem da verdade, a promoção) do vassalo bolsonarista Maurício Aires Vieira – servil ex-assessor do néscio ministro Weintraub – para o cargo de diretor do Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (CEFET-RJ).
Não é novidade que o descaramento do déspota (não esclarecido) ficou indisfarçável também na parcialíssima escolha de Marcelo Recktenvald – último colocado na lista tríplice – para assumir a reitoria da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Fiel correligionário do ex-capitão terrorista, como obviamente não poderia deixar de ser, o abjeto Recktenvald é a eminência parda que se apresenta nas redes sociais como “cristão conservador”, o doutrinador canastrão que ministrou aulas (?) de “Espiritualidade e Liderança”, o evangelista picareta que indicou aos estudantes – desqualificando a bibliografia básica do curso de Administração – o não só inadequado (por carecer de lastro acadêmico), mas sobretudo inconsistente livro (por carecer de profundidade de conteúdo) Jesus Coach. Para se ter melhor dimensão crítica da gravidade desses precedentes, vem bem a calhar a analogia histórica com os “reitores” impostos nas universidades argentinas, após o segundo golpe de Estado, em 1943. Um deles, Jordán B. Genta, católico reacionário como Recktenvald, foi arbitrariamente designado reitor da Universidade Nacional do Litoral, com o discurso de que as instituições de ensino superior haviam se convertido em “instrumento eficacíssimo da tática comunista”, com o objetivo de “minar o caráter da classe dirigente” (Pensar as direitas na América Latina. Bohoslavski, Ernesto et al. (Org.). São Paulo: Alameda, 2019, p. 227). Outro anticomunista praticante, monsenhor Octavio N. Derisi, ascendeu ao posto de reitor da Universidade Nacional de Buenos Aires com o golpe de 1966. As semelhanças com as medidas arbitrárias de Bolsonazi, enfim, não são meras coincidências.
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