O Poder Executivo Federal, inerte quanto à adoção de medidas afirmativas para contornar a perda dos rendimentos do trabalho da grande massa de trabalhadores informais que hoje compõe a população economicamente ativa brasileira (41%), resolveu, no último domingo, dar um passo em direção ao grupo dos trabalhadores com vínculo empregatício: o aprofundamento da precariedade do seu trabalho, com ampliação da insegurança, dos riscos e o recrudescimento das condições de trabalho.
A edição da MP 927/2020 causa perplexidade.
O enfrentamento da crise gerada pela pandemia do Covid-19, internacionalmente, tem se dado por meio de medidas que fortalecem o sistema de proteção social, seja ampliando o seguro desemprego e programas de renda mínima, seja até mesmo realizando o pagamento salarial diretamente pelo Estado aos trabalhadores da iniciativa privada em algumas experiências, tudo como forma de resguardar os destinatários maiores de proteção diante de uma pandemia – a saúde e a vida das pessoas, o que inclui a preservação da sua fonte de subsistência.
Na contramão, o Governo Jair Bolsonaro, dando continuidade às medidas neoliberais que já vinha adotando desde o início do seu mandato, mesmo diante da mais grave crise sanitária já vivenciada nesse século, não inflexiona. Pelo contrário, se aproveita da “oportunidade” da crise sanitária para aprofundar violentamente esse processo.
A Medida Provisória nº 927 é apresentada ao público como um pacote de medidas “alternativas” voltadas à “preservação do emprego e da renda” diante da crise econômica produzida pela pandemia.
Todavia, a lógica subjacente ao instrumento legal, ao propor tais alternativas, é a mesma que vem sendo bradada pelo Presidente da República desde sua campanha eleitoral: a fórmula simplista (e já empiricamente refutada pela própria experiência da reforma trabalhista de 2017) de que menos direitos gerariam mais empregos.
É com base nesse frágil paradigma econômico que a Medida Provisória nº 927 coloca nas mãos dos empregadores uma série de prerrogativas e poderes arbitrários, ao passo que afasta dos trabalhadores proteções basilares ao direito do trabalho, notadamente a representação por seus sindicatos profissionais.
O primeiro ponto que merece destaque é a curiosa ausência no texto da MP de previsão de garantias do emprego. Diante da ameaça, já apresentada pela OIT, de que o quantitativo de desempregados seja incrementado em 25 milhões de pessoas em razão da pandemia e diante do propósito declarado da MP de preservar emprego e renda, o mínimo que se poderia esperar seria um combinação entre desonerações fiscais seletivas que permitissem aos empregadores mais frágeis sobreviver à crise, tendo como contrapartida a preservação dos empregos daqueles que contratam (ou seja, minimamente, restrições ao poder patronal de dispensar imotivadamente seus empregados).
Nenhuma das medidas previstas na MP contempla garantias do emprego, o instrumento mais eficaz de desestímulo às dispensas.
Pelo contrário, as “alternativas” consistem em: liberar o teletrabalho sem fixar a responsabilidade empresarial pelos custos produtivos, tampouco limitar eventuais abusos na demanda virtual do empregador por trabalho; admitir antecipação de férias individuais sem o pagamento imediato do adicional de férias (1/3), comunicadas com meras 48 horas de antecedência; admitir férias coletivas, sem prévio aviso aos sindicatos ou à autoridade competente do Ministério da Economia (seria ao extinto Ministério do Trabalho), informadas aos trabalhadores também em 48h; e admitir antecipação de feriados.
É importante perceber que essas medidas concretizam o comando geral das autoridades de saúde no sentido de que as pessoas não saiam de casa às custas dos direitos dos trabalhadores (férias e feriados).
Não se trata, portanto, de ficar em casa, com a garantia de remuneração: significa que o seu confinamento obrigatório, por medida de saúde coletiva, consumirá seu direito a repousos futuros, sem que esses institutos sejam confundíveis, principalmente para mulheres e outros grupos socialmente encarregados do trabalho doméstico durante a “quarentena”.
Prosseguindo nas medidas liberalizantes, a MP traz a possibilidade de banco de horas, firmado individualmente por empregado e empregador (portanto, sem a participação do sindicato) com prazo de até 18 meses para compensação das horas excedentes trabalhadas.
É de se destacar que até 2017 nenhum banco de horas era validado pelo direito brasileiro sem participação sindical, por se tratar de um mecanismo agressivo de compensação de jornada.
Com a reforma, o banco de horas com prazo de compensação de até 1 ano continuou sendo prerrogativa do sindicato, ao passo que se permitiu banco de horas, por acordo individual, com prazo de compensação de até seis meses.
É de se observar que, ao instituir um banco de horas, por acordo individual, para compensação em 18 meses, a norma excede em muito a previsão das autoridades de saúde para a contenção da pandemia, escancarando seus objetivos obtusos, e dispensa injustificadamente a representação sindical nesse processo negocial sensível.
Também desarrazoada é a suspensão de normas de saúde e segurança, justamente aquelas mais necessárias diante de uma crise sanitária: ficam dispensados exames ocupacionais, clínicos e complementares (ressalvados os demissionais), que apenas voltam a ser obrigatórios 60 dias após o fim da situação de calamidade declarada.
Também ficam suspensos treinamentos previstos em normas de saúde e segurança e eleições para membros da CIPA, com prorrogação automática dos mandatos que se extingam durante o período de crise. Ora, se a situação é de preocupação com a saúde coletiva, parece questionável que a saúde ocupacional seja um dos primeiros elementos a ser flexibilizados.
Aliás, reconhecida amplamente pela legislação a possibilidade de alcance do trabalhador, para teletrabalho, por meios telemáticos, é curioso que os mesmos meios sejam desconsiderados para a concretização dos comandos de SST.
Na mesma esteira, a MP torna a fiscalização do trabalho meramente “orientadora” no período de crise, limitando a imposição de multa a casos gravíssimos, e, pasmem, estabelece a presunção, sem nenhum critério de atividade profissional ou ramo econômico, de que o padecimento de corona vírus não configura doença ocupacional.
A norma ainda difere e parcela o pagamento do FGTS referente aos meses relativos à calamidade (sem contrapartida de garantia do emprego) e admite que os profissionais de saúde que praticam jornadas 12×36 (doze horas seguidas de trabalho alternadas com 36 horas de repouso), independentemente da condição de trabalho, pratiquem horas suplementares no período do repouso de 36 horas, para serem compensadas em até 18 meses, mediante mero acordo individual (novamente, sem participação sindical).
Coroando a postura refratária à concretização do diálogo social (que pressupõe a participação de empregadores, sindicatos profissionais e agentes do Estado na deliberação de alterações na regulação das relações de trabalho) e a diretriz de marginalização das entidades sindicais, a norma prevê que os acordos e convenções coletivos cuja validade se ultime no período da calamidade serão prorrogáveis a critério do empregador, rompendo com toda a lógica regente dos negócios jurídicos bilaterais.
Uma última questão, recentemente superada, foi a previsão de lay off: suspensão do contrato de trabalho, sem salário, por até 4 meses, para cursos de qualificação virtuais, estabelecidos por acordo individual entre empregado e empregador, que poderá prever ajuda de custo, desvinculada de qualquer piso mínimo. Essa, que certamente era a mais nefasta previsão da MP, destoava, de forma brutal da previsão do lay off já contida na CLT.
O afastamento para lay off previsto na CLT (art. 476-A) só pode acontecer por meio de negociação coletiva, com o sindicato participando da estipulação do valor da ajuda de custo, que é obrigatória, e, mais importante, a dispensa do trabalhador durante o período ou nos três meses que o sucedem gera penalização para a empresa, com pagamento de indenização ao obreiro, já que o objetivo do lay off é justamente a preservação dos empregos a médio prazo.
Na MP, tínhamos apenas ônus para o trabalhador: a perda do salário, ajuda de custo facultativa e negociada sem o respaldo sindical, a troco de…nada. A norma não previa garantia do emprego. Tampouco previa o pagamento de seguro-desemprego a esses trabalhadores, que poderiam ficar sem receber nenhum tipo de retorno financeiro durante o curso por autorização da própria norma.
Como tem sido costumeiro na sua estratégia política, algumas horas após a repercussão negativa da Medida Provisória, o Presidente da República anunciou no Twitter que o art. 18 da MP, que previu esse modelo de lay off, seria “revogado”. No final da segunda-feira, uma nova Medida Provisória foi editada – a MP nº 928/2020 – que, além de afastar a incidência de diversos dispositivos relacionados à transparência da gestão pública e ao acesso à informação (!), declarou revogado o mencionado artigo 18 da MP nº 927/2020.
Embora o art. 18 realmente fosse um dos pontos graves da MP nº 927, todo o seu restante é lastimável, enquanto prescrição jurídica que deveria proteger vulneráveis mas compartilha com eles os ônus da pandemia e enquanto concepção política de sociedade, de trabalho e de solidariedade social, que opta por sacrificar trabalhadores em favor da preservação de um interesse abstrato do mercado.
Ambas as Medidas Provisórias agora seguem para apreciação do Congresso Nacional, que tem a oportunidade de buscar caminho diverso daquele no qual insiste o Governo Federal.
A sociedade brasileira e a Universidade têm refletido, estudado experiências internacionais, e proposto alternativas democráticas, solidárias e sustentáveis ao momento de crise ora vivenciado.
A crise, ao radicalizar as contradições da nossa sociedade, tem nos mostrado a essencialidade de uma tela pública de proteção ao trabalho, e não o seu oposto.
Estamos todos à beira do mesmo precipício de uma tragédia anunciada. Em vez de dar um passo à frente rumo à barbárie social, talvez seja o caso de buscar um caminho oposto, novo e eticamente defensável.
* Professora Adjunta de Direito e Processo do Trabalho da Universidade de Brasília. Doutora e Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB.
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