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O Espectro do Bonapartismo: depois de um pronunciamento, a possibilidade do fechamento

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Após o deletério pronunciamento do presidente da República às 20h30 desta terça-feira, 24, não restam mais dúvidas – se é que elas ainda existiam: um espectro ronda o Brasil, o espectro do bonapartismo. De Bolsonaro a Maia, de Moro a Fux, de Heleno a Justus, do Alto Leblon aos Jardins, do rico liberal-democrata ao olavista mais autoritário, todos os de cima parecem vê-lo, enfim, ou como a encarnação do bem ou como um mal cada dia mais necessário.

Não parece haver consenso entre as esferas dominantes sobre qual a melhor forma de lidar com a inevitável crise econômica que assola o país e, sobretudo, com a crise pandêmica, que a intensificará celeremente em proporções oceânicas. A ganância e avareza dos empresários e banqueiros, e as políticas ultraneoliberais dos tecnocratas do governo neofascista conduzirão milhares, talvez centenas de milhares, ao matadouro. Nada será indolor para o povo brasileiro nos próximos meses. Nada.

A letargia, a lassidão e inépcia da nossa classe dominante, e a irracionalidade assassina do governo por ela escolhido, apenas postergam o que deverá ser inevitável nas próximas semanas: a implementação de uma quarentena no país. Quanto mais adiada, pior será seu resultado, e mais militarizada será a sua forma. Aqueles que hoje a condenam como uma medida desnecessária e nociva ao “mercado” serão justamente os mesmos que a defenderão com unhas e dentes quando dela puderem lançar mão para, sob o pretexto de proteger a saúde da população, protegerem na verdade seus negócios, seus lucros obscenos e suas vidas suntuosas. Os filisteus patriotas tementes a Deus que hoje dizem que não há motivo para pânico serão os mesmos que, amanhã, com o caos incontrolável, entregarão aos céus – onde jamais adentrarão mesmo se o tal camelo passar pelo tal fundo da agulha – o destino de milhões de vidas pobres e oprimidas, enquanto, como bons fariseus, invocarão suas leis excepcionais para normalizar o controle militarizado dos que estarão lutando pela sobrevivência.

Em meio à crise política no andar de cima, verifica-se o início de uma insatisfação nos andares intermediários, que já começa a ecoar nos andares de baixo. Incapaz, débil e temerosa por seus negócios, poder e privilégios, a burguesia pode se inclinar, sobretudo quando a pandemia provocar rebatimentos sociais caóticos, como protestos espontâneos, saques, rebeliões prisionais e o alastramento da violência lumpesina, a uma solução de força, a um golpe de Estado com ou contra Bolsonaro, cujo objetivo será a implementação de um Estado de Emergência, de uma dominação semi-ditatorial com ou sem Bolsonaro, de um regime bonapartista, com ou sem Bonaparte. De sua parte, Bolsonaro, e isto ficou evidente em suas palavras desta noite, aposta na catástrofe como um modo de se apresentar como o salvador, e, em seu estratagema, seu pronunciamento é apenas mais uma etapa, mais um ato, no caminho do seu autogolpe, de um outro “pronunciamento” – termo utilizado para se referir a um certo tipo de Golpe de Estado recorrente na América Latina entre meados do século XIX e início do XX. Já outros setores da Casa Grande, no entanto, talvez comecem a considerar que a salvação depende de força e de muito horror, mas sem o atrapalhado Messias como salvador. O certo, contudo, é que a crise de hegemonia se agudiza, o tempo político se acelera, a democracia-liberal cambaleia e o fechamento do regime aparece cada vez mais como a única saída da classe dominante. O bonapartismo desponta no horizonte.

Em momentos históricos em que nenhuma das frações do capital mostra-se em condições de exercer sua “hegemonia”, de colocar sob sua égide política o conjunto da “nação”, as chances de manutenção da exploração capitalista por meio da democracia parlamentar convencional tornam-se escassas. Recorrendo aos escritos do então confinado Gramsci, pode-se dizer que em casos de “crise de hegemonia” – os quais podem ocorrer “ou porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o qual pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas”, ou porque estas últimas “passaram subitamente da passividade política para uma certa atividade” – as bases sócio-políticas do regime democrático-burguês, cuja existência corresponde, normalmente, a uma situação hegemônica, tendem a rapidamente se esbarrondar. Um avanço na consciência política da classe trabalhadora, mesmo que incapaz de produzir uma alternativa política ao país, se combinado a fissuras profundas no interior dos grupos dominantes (as quais costumam se agravar justamente em função da insatisfação e organização dos trabalhadores), pode conduzir a radicalizadas situações em que “o aparelho hegemônico se estilhaça e o exercício da hegemonia torna-se permanentemente difícil e aleatório”.

Produzindo, segundo o marxista sardo, aquilo que comumente é denominado de “dissolução do regime parlamentar”, a “crise de hegemonia” abre espaço “às soluções de força, à atividade de potências ocultas representadas pelos homens providenciais ou carismáticos”. Nas sociedades de massas, nas quais o proletariado já se posta politicamente como uma força independente, a crise do regime democrático-burguês pode, em certo estágio da luta de classes, acarretar no surgimento de formas de dominação política não-hegemônicas, as quais, recorrendo muito mais à coerção do que ao consenso, aparecerem como uma “solução” temporária e excepcional para a incapacidade hegemônica que acomete os próprios grupos dominantes. O regime bonapartista é, portanto, uma – e talvez a mais recorrente – dessas formas de dominação política correspondentes a momentos históricos de “crise de hegemonia”.

Ao que tudo indica, sobretudo depois das tétricas palavras presidenciais nesta noite, o espectro do bonapartismo, no Brasil dos próximos meses, tende a tornar-se cada vez mais real, pois, de tanto livremente nos rondar, de tanto permear os sonhos da Casa Grande, de tanto circular na Alvorada e nas casernas, ele tende a se implementar para calar de vez as panelas. Não encontrando resistências significativas da parte das instituições e seus chefes poltrões, contando com a hospitalidade dos que condenam apenas pelas suas próprias convicções, desejado há tempos por ímpios setores médios e, finalmente, conjurado por uma burguesia desesperada e covarde, o espírito do mal, de tanto exibir incólume seu cruento charme, pode decidir, um hora ou outra, fazer-se carne.