Em uma conjuntura de crescente apelo pela suspensão das reintegrações de Posse como o pedido realizado pelo IAB, IBDU e FNA que recomendam a suspensão de despejos e reintegração de posse por causa do coronavírus; bem como diante da solicitação da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC/MPF, que requereu ao Conselho nacional de Justiça – CNJ que envide esforços para suspender em todo o país o cumprimento de mandatos coletivos de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais em áreas urbanas ou rurais, o Juiz da 4ª Vara Cível de Salvador segue com os trâmites para reintegrar a Ocupação Guerreira Maria Felipa do Movimento dos Sem Teto da Bahia – MSTB
Esta decisão torna-se ainda mais esdrúxula, uma vez que os procedimentos para reintegração seguem mesmo com suspensão do cumprimento da sentença, conseguida em segunda instância (decisão nº 8002662-82.2020.8.05.0000) há mais de um mês (14/02/2020). A Ação de Reintegração de Posse nº 0582043-60.2016.8.05.0001, que tramita na 4ª Vara Cível e Comercial da Comarca de Salvador, além de buscar reaver o terreno ocupado pelo Movimento, também buscou criminalizar os assessores populares do IDEIAS – Assessoria Popular, Wagner Moreira Campos e Vitor Fonseca Santos, que acompanham a Ocupação. Em dezembro de 2019, foi concedida a reintegração de posse à Empresa de Mineração que se diz proprietária da área, trazendo riscos à moradia e aos sonhos de mais de 80 famílias. Desde o início de janeiro, quando findou o prazo de 30 dias para saída voluntária, designada pelo Juiz em sentença, representantes da empresa proprietária vêm fazendo ligações buscando intimidar as lideranças e assessores e rondando a ocupação com seguranças privados.
Ocupação Guerreira Maria Felipa: uma experiência de construção de território para a vida digna e o bem viver
A Ocupação Guerreira Maria Felipa surgiu de uma forma pouco comum. Moradores do Conjunto Bosque das Bromélias, construído por meio do Programa Minha Casa Minha Vida – MCMV, estavam insatisfeitos com a qualidade urbanística e a dificuldade de gestar a vida cotidiana em um conjunto tão grande e precário de serviços.
À época, a pouca presença do Estado se dava por meio da regulação pela negação, “não é permitido estabelecer comércio nos apartamentos, ou sobre as calçadas”; ou pela repressão – por meio da autuação a comerciantes e derrubada de boxes comerciais nas áreas comuns. O conjunto foi construído tão distante do tecido urbano e as negativas eram tantas e tamanhas, que dos primeiros beneficiários menos da metade conseguiu se estabelecer. Boa parte, optou por vender ou alugar a unidade habitacional com “contratos de gaveta”, já que não era possível fazer oficialmente.
Como não existe vácuo político, a inexistência de equipamentos de educação e saúde, a precariedade dos serviços de transporte e a dificuldade de organização comunitária – fruto da desterritorialização e da baixa cultura de gestão, como a figura jurídica do “condomínio”, catalisado pelos péssimos serviços terceirizados de “Pós-ocupação”, deixou o terreno fértil para a entrada do poder paralelo, figurado nas Facções.
Esta segunda geração de moradores não beneficiários do MCMV, locatários ou proprietários irregulares, viviam sobre a ameaça de serem expulsos pela situação de informalidade. A precariedade dos serviços, a pouca presença estatal e a violência gerada pela “Guerra às Drogas”, reavivou o imaginário de construção cotidiana de quando viviam em ocupações e comunidades menores e mais orgânicas. Este imaginário foi a mola propulsora para o surgimento da Ocupação Guerreira Maria Felipa.
O terreno atualmente ocupado era o Plano B, mas às vésperas da ocupação, os proprietários do terreno inicialmente almejado desconfiaram dos preparativos e contrataram uma escolta armada para vigiar o terreno. Se configurou como “Plano B” porque ficava em uma área de mobilidade ainda mais precária, porque já constava com a presença de algumas famílias que ocuparam o fundo do terreno (e isso dificultava o partido urbanístico pensado e aumentava a conflituosidade) e por ser uma conhecida área de desova.
A Ocupação aconteceu na madrugada do sábado 26 de novembro de 2016, com 60 famílias organizadas do Núcleo Força e Luta do Movimento dos Sem Teto da Bahia. As famílias que participavam de reuniões de formação política e de organização territorial uma vez que a metodologia que iria ser empregada estava em desenvolvimento há pouco tempo, numa parceria do Movimento com Assessores Técnicos. Ainda durante a manhã, três pessoas diferentes se apresentaram como proprietários e falavam em negociar parte do terreno. Entretanto, nenhum dos três convenceu o Movimento. No início da tarde, apareceu um dos representantes da Empresa supostamente proprietária, com um discurso mais convincente. Voltou à tarde com outro sujeito que se afirmava “sócio” e, acompanhado de milicianos, derrubaram parte do trabalho inicial de levantamento dos barracos e entenderam que tinha gente demais pra intimidar sem partir para a violência mais direta. Acredita-se que não se chegou às vias de fato pela existência de câmeras visíveis na guarita de uma fábrica de vidro localizado a frente do terreno. No cair da noite, parte dos milicianos voltaram ainda fardados para encenar uma perseguição a um fugitivo dentro do terreno, disparando tiros e gritando ameaças.
Registros das denúncias foram feitas na 12º Delegacia de Polícia no dia 27/11/16. Na época o movimento soltou a seguinte nota: Grileiros e Milicianos utilizam de violência contra ocupação do MSTB.
A ocupação foi superando diversos desafios que não paravam de crescer tendo que lidar com as consequências da ação dos milicianos no território, a presença de um cemitério clandestino, e tendo que abdicar e recuar de parte do terreno. A situação virou notícia e foi registrada em dois momentos, a matéria logo após a descoberta: CEMITÉRIO DO CRIME: Polícia encontra 15 corpos enterrados no Parque das Bromélias, outra matéria após pressão da milícia: ‘CEMITÉRIO DO CRIME’: SSP confirma dois corpos desenterrados no Parque das Bromélias. Na circunstância o movimento se posicionou por Nota: “Onde há gente morando, não há cemitérios clandestinos!”. Tema também abordado em matéria Movimento Sem Teto da Bahia ocupa espaço entre dois grandes condomínios do Minha Casa Minha Vida
A ocupação se consolidou como um espaço importante de construção de autonomia e bem viver, tendo desenvolvido diversas parcerias com a Universidade Federal da Bahia, tendo desdobrado na participação de um intercâmbio entre 2017-2019, entre o Grupo de Pesquisa Lugar Comum (PPGAU-FAUFBA), em parceria com o MSc Social Practice Practice (DPU/UCL-UK), para levar a cabo uma iniciativa de aprendizado-ação, que teve como foco a investigação e documentação de práticas coletivas que reivindicam o direito à cidade em Salvador. Além de contribuir na produção de vasto material acadêmico como: CONHECER PARA RESISTIR: Ações educativas na Ocupação Guerreira Maria Felipa: Proposições para Regularização Fundiária: ; e Ocupação Guerreira Maria Felipa: A experiência do espaço coletivo na melhoria da moradia.
Manifesto #SomosTodasMarias! Ou a resistência se exerce em festa!
Numa conjuntura onde a tônica é a ofensiva contra direitos, a resistência é um imperativo. No tocante ao ataque aos Direitos Territoriais, a afirmação de cada território tradicional, cada aquilombamento, ocupação, aldeia, acampamento, assentamento é uma fissura, uma afronta, um exercício cotidiano de resistência, um exercício de outra experiência cotidiana de sociabilidade.
E é deste lado da trincheira, que buscado visibilizar o processo de resistência e de construção de subjetividade – uma vez que as letras frias do processo judicial e o ambiente institucional das mesas de negociação não conseguem retratar a realidade dxs moradores da Ocupação Guerreira Maria Felipa – que lançamos a campanha #SomosTodasMarias.
Na atividade de articulação da campanha, foi possível perceber, que para além de discursos mais inflamados e da discussão de táticas jurídicas, a resistência se converte em festa. No cuidado com xs menores na creche improvisada, na cozinha coletiva na sede da ocupação, na brincadeira das crianças no terreiro, nos preparativos para o grafite, nos preparativos para a saída do Afoxé que a ocupação integra.
Resistir é para além de negar a institucionalidade jurídico burguesa recolocando a ideia de Democracia e de Poder Popular na centralidade do debate. Se na teoria o Movimento – o “Sujeito coletivo de Direito” – é aquele que estica o horizonte da democracia pelas reivindicações por meio de ações diretas; na pratica é a tessitura do cotidiano em bem viver, que alimenta a ideia de poder popular elemento indissociável da democracia.
O bem viver aqui demonstrado não como um projeto já desenhado de construção de outro horizonte civilizatório, mas como a memória de lutas ancestrais, da resistência negra, indígena e popular. Como o Quilombo de Palmares, o Arraial de Canudos e as retomadas de território indígena.
O Poder Popular aqui dado não como a tomada das instituições do Estado, mas como a possibilidade de nega-lo. De dizer não a um modelo de produção habitacional que desrespeita e deslegitima elementos de sociabilidade, de territorialidade, de vizinhança, de urbanidade; e experimentar a construção de territórios onde seguramente é possível afirmar a dignidade, que ostenta índices de segurança muito melhores do que aqueles que contam com a presença dos agentes estatais, onde a ideia de mediação social encontra-se ancorada em outras bases que não a coerção e a violência, mas sim nos pactos coletivos e na ancestralidade. Assumindo o desafio de não romantizar a ocupação, o movimento e seus ocupantes, afinal, não são poucos os desafios e os obstáculos.
A Democracia como arena possível de disputa de conceitos e princípios onde ainda é plausível dialogar, mesmo que em termos técnicos e restritos onde buscamos afirmar que a Função Social da Propriedade e o Direito à Cidade devem ser sopesados frente ao direito à propriedade. Lembrando que o Princípio da Função Social da Propriedade se constitucionalizou a base de muito suor, sangue e sonho. E que não seremos nós a abdicar destas camadas da disputa.
Seguiremos na tessitura do cotidiano sempre alinhavado por um insistente trabalho de base. Tão receitado, mas com formula tão volátil, que é impossível de aplica-lo como carimbo de uma realidade a outra. Seguiremos afirmando a possibilidade de construção de uma Resistência Urbana calcada na construção de territórios para a vida digna e o bem viver.
Teimosamente insistimos em afirmar #SomosTodasMarias! Seguimos reivindicando a continuidade de uma resistência histórica, que hoje comemora-se, festeja-se sempre que possível. A final, a resistência se exerce em festa!
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