A nossa saúde e a deles

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Pois a quem tem, mais se lhe dará, e terá em abundância; mas, ao que quase não tem, até o que tem lhe será tirado.” (Mateus 13:12)

O neoliberalismo, em sua nova mutação genética, o ultraneoliberalismo, é um vírus de alta letalidade. Em plena instalação no Brasil da pandemia do coronavírus, os ideólogos do capital propagam a ideia de que a cura para este e todo e qualquer mal só pode ser obtida pela aprovação de mais “reformas”, isto é, de mais contrarreformas, de mais retirada de direitos, de mais maldade contra aqueles que quase nada têm, salvo sua força de trabalho para vender ou, como no caso dos idosos, nem isso, restando-lhe apenas uma parte da própria vida para viver – ou melhor, para sobreviver. Para preservar sua saúde financeira, os “homens do mercado”, os mercadores da morte, não propõe senão uma maior destruição da nossa saúde. Para seguir com suas orgias cosmopolitas e suas vidas nababescas, oferecem no altar da Bolsa a saúde e a vida daqueles que vivem ou tentam viver do seu trabalho, daqueles que trabalham para viver e vivem apenas para trabalhar, daqueles cujo sentido da vida parece não ser outro senão morrer sem razão, sem atenção, sem proteção, sem nada.

As populações desassistidas, sem hospitais, sem escolas decentes, sem transportes de qualidade, sem segurança, sem alimentação adequada, sem horas mínimas de sono e, muitas vezes, sem água potável, sem rede de esgoto e sem descanso tornam-se vítimas potenciais de uma enfermidade internacional que não faz senão expor a contagiosa doença social que é o livre mercado. Em sua fase vetusta e senil, o neoliberalismo, vampiresco e febril, parece necessitar de mais e mais almas, de almas de crianças, de jovens e até de idosos para alimentar aquelas poucas famílias suntuosas, aqueles poucos que nem alma mais possuem, aqueles que são verdadeiras almas mortas. Adoecido, delirante e em transe, o neoliberalismo não quer frenar suas tenebrosas transações especulativas e epidêmicas, e clama por mais “reformas” com a mesma sanidade que um lumpem hepático clama por mais cachaça.

Guiados pela razão do mercado, os governantes de plantão se mostram totalmente irracionais e incapazes de proteger um povo do qual já se divorciaram há tempos, se é um dia dele realmente se enamoraram e dele prometeram estar ao lado na saúde e na doença. Gestores de uma democracia blindada, propõem desproteger por completo aqueles cujas sucessivas contrarreformas tornaram desprotegidos. Almejando salvar sua saúde doentia, Bolsonaro, Guedes e seus homens de fortuna miram suas armas nos corpos dos desafortunados trabalhadores, em grande parte já adoecidos. Agora, na crise, na pandemia, na agonia, é a saúde deles contra a nossa. Agora é que são elas, ou melhor, agora é que eles vêm pra guerra, e agora é que nós temos que saber nos cuidar, nos proteger e, claro, guerrear.

É urgente a suspensão da Emenda Constitucional 95, que congela os gastos com Saúde e Educação e direciona amplas parcelas do orçamento para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública com os grandes credores, os grandes financistas, aqueles que especulam com nossas vidas e lucram indiferentes às nossas mortes. É urgente a liberação imediata de verbas para o Sistema Único de Saúde, o SUS. É urgente a liberação e a construção de leitos com oxigenoterapia em toda a rede hospitalar nacional. É urgente a contratação de profissionais de saúde pelo Estado. É urgente a compra de medicamentos desenvolvidos por Cuba e já utilizados na China. É urgente a disponibilização dos testes para o coronavírus em todos os postos de Saúde. É urgente uma campanha pública de educação sobre condutas e normas de higiene. É urgente, portanto, que o planejamento se sobreponha ao livre mercado, porque é urgente que a nossa saúde se sobreponha à deles.

Vilipendiado, admoestado e sucateado praticamente desde sua criação, o velho Sistema Único de Saúde será o único ponto de apoio para a ingente massa da população brasileira na luta contra o coronavírus. Médicos fiéis ao seu juramento e não à Bolsa, enfermeiras e enfermeiros corajosos, assistentes socais, pesquisadores, professores e cientistas sem bolsas e sem respeito de seus ministros obscurantistas: são com esses, e só com esses, que os trabalhadores brasileiros e suas famílias poderão contar nesse outono tenebroso que se aproxima de um país que há tempos caminha para o caos, e onde há tempos os aposentados são humilhados e onde há tempos os jovens adoecem e só o acaso estende os braços a quem procura abrigo, proteção e saúde.