Neiva do céu e a falocracia do pau ideal: existe diversidade biológica também

Carolina Iara de Oliveira e Luiza Coppieters*
Reprodução fotográfica Walter Fagundes

Suco, 1989, Milton Kurtz

Um dos momentos de maior orgasmo da população brasileira em 2019 foi o aclamado áudio “Neiva do céu”. Nele, uma mulher cisgênera narra a sua amiga o encontro com um belo homem que, ao levá-lo para casa, narra sua história de sofrimento por ter um micropênis. A amiga de Neiva conta, estupefata, sua surpresa ao se deparar com um homem tão bonito, mas com um falo tão pequeno. Como pode? De onde viria essa incongruência?

Ela, uma mulher sozinha, que não conseguia arrumar parceiro, encontra alguém em um aplicativo de encontro, não um alguém qualquer, mas um belo homem que, para sua surpresa, aceita encontrá-la – e vai até sua cidade para vê-la! -, acreditou que poderia conseguir uma boa sessão de prazer encontrou um homem destroçado. Uma pessoa que se abriu à primeira pessoa que lhe pareceu disposta a ouvir-lhe e, pela narração, aos prantos contou sobre sua ausência de vida sexual e de vida afetiva.

Para gozo nacional, o pinto pequeno do sujeito e a forma como foi narrada a história, bem característica do modo de ser brasileiro, o áudio se espraiou, Neiva e a autora do áudio foram descobertas e se tornaram famosas, sendo convidadas para programas dominicais. Do “sujeito do pinta” nada se sabe. Inclusive se ainda está vivo.

Na ausência de debate nacional, em que se mistura religião e XX/XY (algo como se fosse preencher jogo lotérico) pouco se fala sobre as diversas formas de genitália. No oceano da ignorância global, emerge como um iceberg a “verdade” de que há apenas duas genitálias. Assim como existem o Sol e a Lua, o fogo e a água, existe O pênis e A vagina. Não se pretende, aqui, levar o debate à seara religiosa, a qual, ao se esgotarem os dogmas, logo afirma-se as entidades XX e XY.

Mantendo o debate no campo estritamente científico e da realidade, e com o intuito de lançar luz sobre o tema, é de fundamental importância trazer algumas informações sobre a existência de pessoas intersexo, que pode representar, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 2% da população mundial. Precisamos falar de pessoas intersexo e da diversidade biológica dos corpos para evitar não só as cirurgias na infância, mas também o suicídio dessa população.

A Natureza é muito mais diversa, ampla e variada do que a vontade de alguns. E os corpos humanos, no que diz respeito ao sexo (à genitália, não à prática) depende de quatro fatores: cromossomos, gônadas, hormônios e os caracteres secundários. A partir da combinação destes quatro fatores, o ser humano pode, então, ter 43 tipos possíveis de sexo biológico, o que pode envolver diversidade na genitália, no sistema endócrino, nos órgãos internos reprodutivos e gonadais. Serão necessários, pois, muitos tons de azul e rosa.

É tão comum a existência de pessoas que estão entre os dois parâmetros tidos como certos – portanto entre os outros 41 tipos de sexo possíveis – que existem mais pessoas intesexo que pessoas ruivas. A proporção é de 1 para 3.000. Ou seja, se você viu alguma pessoa ruiva hoje, certamente você já cruzou com pessoas intersexo. E mais certamente ainda elas não sabem que são intersexo.

Além disso, existe uma relação de poder que subjaz e sustenta o mascaramento da realidade. Existe uma régua chamada falômetro, utilizada pelos médicos para medir o tamanho do falo do bebê ao nascer. Dependendo do tamanho, o médico ou uma junta médica se apresenta à mãe – após o parto – para dizer que o bebê tem um “problema” e que eles irão “consertar”. Conseguem imaginar a cena? No mais das vezes, como é mais fácil construir uma vagina do que um pênis – seja por falta de tecnologia ou por excesso de ideologia -, muitas crianças têm sua genitália mutilada e algumas ficam com dores na região íntima para o resto da vida, com dificuldades de urinar e fazer sexo. Todavia, também há casos de intersexos que nascem com grande quantidade de massa muscular peniana, mas com alguma ambiguidade genital, gonadal e endocrinológica, o que faz com que essas crianças sejam submetidas a cirurgias e mais cirurgias para a construção de um pênis esteticamente “viável” para os padrões pré-estabelecidos pela sociedade.

Resumindo, alguém que veio ao mundo do seu jeito é tido como errado por não se enquadrar no padrão estabelecido e assim tem seu corpo modificado segundo padrões médicos (e sociais) e passa a ser educado dentro dos padrões de gênero que a junta médica determinou ao (tentar) construir a genitália padronizada. Importante ressaltar que muitas vezes são necessárias muitas cirurgias, que irão fazer parte da infância e adolescência dessas pessoas.

Sem falar que certas cirurgias são fracassadas, fazendo com que essas pessoas tenham problemas para o resto da vida. Outra coisa fundamental: os prontuários médicos, onde estão as decisões tomadas pelos médicos e os processos cirúrgicos, no mais das vezes são escondidos dessas pessoas, devido ao protocolo do psicólogo Money, ainda referência para parte da medicina ocidental no manejo da intersexualidade: consiste basicamente em esconder a história e as cirurgias dessa criança, para forçá-la a crescer com um gênero imposto pela sociedade e, assim, socializada naquele gênero ela se sinta inserida. A alegação? Para que não sofram. Mas tudo o que mais acontece na vida das pessoas intersexo é o aumento de sofrimento, principalmente quando há a descoberta dessas intervenções cirúrgicas, hormonais e sociais.

A ignorância, sabe-se, é a mãe de muitas violências. As pessoas intersexo foram ignoradas socialmente. Pelo poder médico, elas são brutalmente aniquiladas, sendo obrigadas a se enquadrarem no padrão A ou Z. Os poderes legislativo e jurídico referendam essa prática ao admitirem que existem dois sexos apenas. Enquanto isso, pessoas são mutiladas, obrigadas a viver vidas que não são as suas, além de serem privadas de vida afetiva e sexual.

Entender as pessoas intersexo e a sexualidade humana é também a chave para entender as pessoas trans, a necessidade de cirurgia de confirmação de gênero e para enxergar o mundo com todas suas cores, não só azul ou rosa, acabando com a falácia do “essencialismo biológico”, tão defendido por alguns para se contrapor à existência da transgeneridade.

E mais do que isso: segundo algumas cientistas sociais como Anne Fausto-Sterling, para se manter o sistema de gênero é necessário também moldar socialmente o sexo biológico. E verifica-se que as discussões sobre diversidade sexual e de gênero avançaram nos movimentos sociais, na História contemporânea, quanto a questões socioculturais de comportamentos e subjetividades identitárias, mas pouco ainda se fala sobre uma disputa urgente: a do reconhecimento da diversidade biológica dos corpos. Que existe muito mais nuances de sexo biológico do que a vontade teocrata ou eugenista deseja.

*Carolina Iara de Oliveira, travesti intersexo, integrante do coletivo Loka de Efavirenz e da Resistência-SP
*Luiza Coppieters, mulher trans, trabalha com pessoas intersex e trans.