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Colunas

A segunda temporada de Bolsonaro

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Porque nada há encoberto que não haja de ser manifesto; e nada se faz para ficar oculto, mas para ser descoberto”
(Marcos 4:22)

Parece que no Brasil de hoje um dos programas preferidos de alguns casais é assistir juntos a séries de televisão, e parece que se constitui em um grave crime matrimonial o fato de um dos seus membros assistir sozinho a um ou mais episódios delas. Parece também – dizem – que a perfídia é ainda maior, e quase imperdoável, se o/a traidor(a) chegar a assistir antecipadamente outra temporada, de modo que, para evitar a ruptura da relação, o/a traidor(a), ao assistir repetidamente a trama ao lado do (da) cônjuge, terá que simular que o faz com ineditismo, demonstrando mesmo surpresa e quiçá espanto com determinados acontecimentos. Bom, é mais ou menos assim, mais ou menos como o/a traidor(a) acima, que a classe dominante brasileira e suas instituições se comportam ao assistir à segunda temporada da série “Bolsonaro, o candidato a Bonaparte”, cujo conteúdo já havia sido disponibilizado pelo próprio protagonista desde pelo menos meados de 2018.

Nossa classe dominante parece já saber previamente tudo que acontece na dinâmica da trama, justamente porque todos os atos desta, toda a sua sequência e todos os seus tórridos acontecimentos, passados e futuros, constam no roteiro que o protagonista, e também diretor, não escondeu de ninguém. Diferentemente do marido traído, cuja traição usualmente é mais propriamente carnal do que serial, a burguesia brasileira não poderá dizer depois que não sabia, e muito menos que foi a última a saber. Foi a burguesia, tal qual Fausto fizera com Mefistófeles, que conjurou Bolsonaro para atender aos seus desejos que então pareciam impossíveis. Em março de 2015, lhe pediu que convocasse suas hostes para ajudá-la a dar um golpe de Estado, e Bolsonaro, desde então, nunca escondeu que o seu objetivo final era assestar outro golpe, um golpe de sua autoria, com ele no papel principal, de mocinho, cercado de heróis de fardas e coturnos. Foi reivindicando uma intervenção militar que seus apoiadores pequeno-burgueses foram às ruas contra um governo cuja timidez social-democrata ficava expressa em sua coloração não mais do que rosada, e foi fazendo ode à sedição, à irrazão, à religião, à tortura, ao machismo, ao racismo, à homofobia, à terra plana, ao obscurantismo e à eliminação dos vermelhos (dentre os quais se incluem também os rosados, alaranjados e qualquer um que não ame o verde-oliva e as camisas negras) que seu lumpesinato político e miliciano se mobilizou. Ninguém escondeu nada de ninguém. Bolsonaro sempre jogou limpo o seu jogo sujo.

Quando a tentativa da classe dominante de lavar o golpe pelas urnas – isto é, a tentativa de dar sequência ao programa ultraneoliberal do governo ilegítimo de Temer por meio de um político burguês tradicional legitimado pelo sufrágio universal – começou a claudicar durante o processo eleitoral, foi a burguesia quem procurou Bolsonaro, e não o contrário. A classe dominante brasileira e sua imprensa elevaram a tão alto grau a reacionária ideologia anticorrupção/antipolítica que não só o PT, mas também os seus próprios partidos tradicionais foram maculados com a pecha de corruptos, porquanto políticos. Restou, então, às pessoas da sala de jantar convidar para o convescote o bufão desajeitado que, mesmo mal sabendo usar os talheres, deixou claro que com ele os direitos seriam cortados, e que o seriam à faca. Bolsonaro, cercado de rufiões, gendarmes, pastores e psicóticos, também expôs a cada declaração, a cada entrevista, a cada gesto, que aplicaria uma agenda econômica antipopular, tal qual demandavam seus anfitriões de gala, mas deixou nítido que não se limitaria a ela, afinal, seu séquito e suas amplas bases de massas tinham também outros desejos, já nada secretos. Bolsonaro aceitou a relação, mas de pronto afirmou que ela seria aberta, já que sua lealdade política e carnal era, na verdade, com os militares e com suas milícias paramilitares. Eles já eram e continuam a ser, cada vez mais, unha e carne.

Assim, quando a burguesia, no segundo turno de 2018, coqueteou com Bolsonaro, este retribuiu com Paulo Guedes e afagos, mas sem esconder que a mão que afaga é a mesma que apedreja, e que o beijo pode ser, às vezes, a véspera do escarro. Bolsonaro liberou para a burguesia assinante, sua noiva, todos os capítulos já filmados e o roteiro das temporadas a gravar, e ela topou mesmo assim. Desde então, tudo vem sendo filmado – e o ano de 2019 e estes pouco menos de dois meses de 2020 o comprovam de maneira apodítica – rigorosamente dentro do roteiro, cujo enredo é, em resumo, o processo de ruína e substituição da democracia liberal blindada por um regime semibonapartista ultraneoliberal e abertamente reacionário, com o Bonaparte Bolsonaro à frente. Perseguição à imprensa, silêncio sobre assassinatos políticos, aquiescência a atos milicianos, apoio às queimadas na Amazônia, destruição das universidades, ataques à ciência, aceleração da desagregação social, fomento do desemprego, barateamento do custo da força de trabalho, retirada de direitos sociais, deboche das instituições republicanas, estímulo ao feminicídio, roubo de terras indígenas, aumento da letalidade policial, anuência à censura de livros nas escolas, entrega das riquezas nacionais e derruição de toda e qualquer cultura: esta era a proposta de Bolsonaro. Este era o pacote. Não havia como adquirir os itens avulso, disse Bolsonaro à burguesia. Diante deste pacote, tal como para a tchekhoviana Nádia após a morte de Sacha, “delineava-se” para a burguesia “uma vida nova, ampla, vasta, e essa vida, ainda obscura, repleta de mistérios, atraia e seduzia-a”. Era rejeitar ou aceitar. Era pegar ou largar, e ela pegou. A burguesia agiu como se Bolsonaro soubesse o que é melhor para ela, pois talvez o Deus mercado hoje só possa mesmo se satisfazer com os homens de Deus no poder e, assim, talvez a tal dicotomia entre Deus e o Dinheiro contida nas escrituras não seja senão – pensaram nossos desafortunados homens de fortuna – um idealismo ingênuo que até mesmo os pastores de hoje, ou precisamente eles, já renegaram.

Agora Bolsonaro beija a burguesia, mas também ameaça escarrar na sua boca e cuspir para fora suas instituições democrático-liberais. Agora, José, a burguesia quer seguir com a festa ultraneoliberal, mas agora, José, é Bolsonaro quem parece ser o anfitrião e escolher o cardápio e a trilha sonora, numa inversão de papéis que, aliás, já constava no roteiro original. Quem viu a primeira temporada de Bolsonaro no poder já poderia saber o que viria na segunda. Tudo era nítido como um girassol de Fernando Pessoa, tudo era previsível como um roteiro global. A burguesia viu. A burguesia sabia. A burguesia sabe. O que ela hoje faz não é senão se portar cenicamente, mostrando-se falsamente surpresa com o desenrolar dos acontecimentos da série, tal qual o membro açodado do casal a que nos referimos anteriormente. Não será ela, atônita, e nem seus tépidos homens à frente de suas corroídas instituições que evitarão a sequência da série bonapartista de Bolsonaro. Todos os coadjuvantes e figurantes neofascistas já estão a postos, apenas aguardando o sinal do diretor. Todos já estão maquiados, embora suas maquiagens já não enganem mais ninguém. Todos estão nus, toda a nudez é revelada, porém a burguesia e suas instituições fazem que não veem, e nada é castigado.

Agora, somente os explorados e oprimidos, os derrotados em quase todos os episódios anteriores, é que poderão interromper a sessão e apagar as luzes para, paradoxalmente, livrar o país das trevas, pois agora, assustada porém gananciosa, a nossa classe dominante não pode senão dizer a Bolsonaro: “escarra nessa boca que te beija!”.