Em memória do amigo e companheiro Clóvis Moura
Em 2008, Domenico Losurdo apresentou, na Itália, Stalin: História critica de uma lenda negra, seu mais conhecido trabalho, que analisamos em “Domenico Losurdo, um farsante de sucesso na Terra dos Papagaios”, publicado em 16 de janeiro do presente ano, em “Esquerda Online”.[1] Em 2017, o autor lançou, também em italiano, espécie de síntese de suas visões teórico-políticas, traduzida ao português em 2018, ano de sua morte – O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer.[2] Debruçamo-nos agora sobre esse segundo trabalho, encerrando nossa análise sobre Domenico Losurdo.
Há concorrência de conteúdo e temática entre os dois livros, fora a inversão dos temas enfatizados em cada um deles. Em Stalin, prioriza-se a apologia geral do “Pai dos Povos” e do estalinismo para justificar o “socialismo nacional”, o poder e o Estado despóticos, etc. e, assim, apresentar-defender o proposto “marxismo oriental”. O segundo trabalho é dedicado à enunciação-comprovação da contradição entre os por ele propostos “marxismo ocidental” e “oriental”. A narrativa filo-estalinista de Stalin enunciara apenas os propostos nadir do “marxismo ocidental” e zênite do “marxismo oriental”, este último proposto como uma verdadeira “salvação da lavoura”.
O marxismo ocidental é desenvolvido sobretudo em nível assertivo, apoiado em um neo-hegelianismo tardio, com apenas referências circunstanciais à história. O que permite ao autor se furtar às rústicas e frequentes manipulações dos fatos e datas históricos, para ajeitá-los às suas propostas, presentes em Stalin. Uma prática apontada por nós, no ensaio assinalado, e criticada, sem piedade, na Itália, em 2008, quando da publicação do livro.[3] O que não quer dizer que, no presente ensaio, Losurdo não violente igualmente, aqui e ali, fatos objetivos, segundo suas necessidades. Vejamos dois casos crassos.
Ajeitando a realidade
Primeiro. Domenico Losurdo, um “mao-estalino” desde sempre, acusa Mario Tronti de ironizar a luta revolucionária do povo chinês – “o alvo do sarcasmo ‘operarista’ aqui são a maior revolução anticolonial da história” e a Longa Marcha. [4] Entretanto, o conhecido intelectual “operaista” italiano caçoava apenas dos seus co-patriotas maoistas, que deliravam pretendendo repetir a “grande marcha” e “cercar as cidades pelo campo” na “Bella Penisola”, pra lá de industrializada e com o campo despovoado! Mario Tronti disse algo diverso: “Devem reconhecer que nós [“operaistas”] nunca caímos na armadilha […] dos campos que cercam as cidades, das longas marchas camponesas; nós nunca fomos “chineses”.[5] Ou seja, nunca foram mao-estalinistas ou marxistas-leninistas, como gostavam de ser chamado os então concorridos grupos maoistas, hoje quase desaparecidas.
Segundo caso. Em 1939, o Pacto Stalin-Hitler [Germano-Soviético], a divisão da nação polonesa e a invasão da Finlândia pelo Exército Vermelho lançaram na confusão milhares de comunistas através do mundo. Losurdo, que defende a transação abominável, que abriu as portas à II Guerra Mundial, refere-se à crise que ela ensejou na secção estadunidense da IVª Internacional, segundo ele formada por “brancos”. Afirmação racista e exótica, já que nos USA e na IVª havia brancos, negros, latinos etc. Militantes daquela secção teriam caracterizado a URSS como a nação “totalitária”, proposta – sempre segundo o italiano – abraçada por Trotsky, que teria agitado a “categoria de ´ditadura totalitária´”, aproximando as ordens “stalinista” e “fascista”. [6]
Trata-se de outra falsificação rústica. Aquele grupo, liderado por Max Shachtman, James Burnham e Martin Abern, teve seguidores em todo o mundo, inclusive o nosso Mário Pedrosa.[7] Aquela tendência propôs que a URSS deixara de ser Estado operário degenerado, para praticar qualquer coisa como um “capitalismo de Estado” imperialista. No seu último debate teórico, interrompido por seu assassinato, em 21 de agosto de 1940, Trotsky defendeu a permanência da natureza da formação social nascida em 1917 e exigiu a defesa incondicional da URSS, apesar das ações criminais estalinistas. Suas posições originaram um livro póstumo luminar sobre o método marxista – Em defesa do marxismo.[8]
Além de “retocar” os fatos, desconhecer o método marxista, desrespeitar as normas da produção científica nas ciências sociais, a principal violência do italiano se dá na metodologia da qual se serve para apresentar-comprovar suas hipóteses. Ele apoia-se, por um lado, na apresentação axiomática de suas premissas, isto é, supõe que sejam evidentes e, portanto, dispensem comprovação. E, por outro lado, pratica cuidadosa seleção de oposições frágeis ou inexistentes às teses avançadas por ele, para comprová-las com uma superação apenas formal das mesmas. Suas conclusões são meramente assertivas e ideológicas, como suas hipóteses.
Um sistema que não o é
Domenico Losurdo assevera: “Desde o início, marxismo ocidental e marxismo oriental tendiam a seguir dois caminhos distintos.” [9] A divisão do marxismo em dois -o primeiro, falido; o segundo, florescente- é um “contradictio in terminis”. Contradição que não se sustenta devido a “inconsistência” dos polos opostos. E a razão é simples. O marxismo é método de interpretação da sociedade e não um “sistema” fechado que Marx não conseguiu concluir, segundo Losurdo, que de marxismo sabia pouco e nem se preocupava em saber. [10]
Lenin definiu sinteticamente o marxismo como uma “análise concreta de situação concreta”. Simplificando. Um método de interpretação dos fenômenos sociais, para interferir nos mesmos, a partir das tendências dominantes desveladas, a fim de revolucioná-los. [Marx, 11º Tese sobre Feuerbach, 1845.] Uma ferramenta epistemológica [militante] que pode ser aplicada em forma mais ou menos correta, sobre situações apreendidas em forma mais ou menos objetiva. Aplicações determinadas por múltiplos fatores, entre eles, o domínio do método, de sua aplicação e do material empírico; as pressões sociais, de classes, etc. [11]
Em Paris, Pequim, Punta Arenas, Tombuctu, o método marxista é o mesmo. Sua correta aplicação a realidades e fenômenos diversos contribui à seu enriquecimento permanente. Ele não se “sub-divide” em marxismos diversos, segundo as regiões do mundo e situações diversas às quais é aplicado – não há um marxismo “brasileiro”, diverso do “uruguaio”; um marxismo “proletário”, diverso do “camponês”. O marxismo compreende a sociedade humana como uma totalidade, na riqueza das suas diversidades. Um método único, aplicado a um objetivo unitário e multifacetado.
E o mais estranho na estranha marxiologia topográfica losurdiana é que ela possui apenas dois pontos cardinais: a Europa Ocidental e o Leste Asiático, com o polo organizador na China, como não poderia deixar de ser, como veremos. “Neca peteca” de África e, ainda menos, de América do Norte, Central e do Sul, a exceção do Haiti. A ausência sobretudo das Américas não é gratuita, pois elas, por si só, derrubam as teses de Losurdo, com uma simples assoprada, como fez o Lobo Mau com a casa dos três porquinhos!
Deu pra ti, “Marxismo Ocidental”
Vejamos o que é o “marxismo ocidental”, segundo Losurdo. Seus eixos territoriais referenciais seriam, é de se crer, as principais capitais européias: Roma, Paris, Moscou, Berlin, Viena, Londres… Ele teria sido fundado por uma escola de pensadores e militantes, encabeçada pelos magistrais Marx e Engels: George Plekhanov, Franz Mehring, Clara Zetkin, Karl Kautsky, Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht, David Riazanov, Vladimir Lenin, Nikolai Bukharin, Eugeny Preobrazhensky, George Lukacs, Antonio Gramsci, nominando apenas os mais excelentes. Não citei Trotsky porque Losurdo, para fortalecer sua execração, define-o como o “mais eminente representante do marxismo ocidental”, pelo que ele agradeceria comovido pela “lacração” involuntária.[12]
Para o neo-hegeliano tardio, aquela corrente estaria comprometida desde o nascimento devido à influência -pasmem- cultural “judaico-cristã”. “O que estimula essa cisão do marxismo é a diversidade, não apenas das condições materiais objetivas, mas também das tradições culturais.” Os marxistas-judaicos-cristãos esperavam “um mundo redimido do negativo e do pecado.”[13] No Ocidente, aquela tradição teria impregnado o DNA do “marxismo europeu” de um fortíssimo “messianismo” que teria o “proletariado” como messias emancipador e, como fins “utópicos”, o internacionalismo, a organização supra-nacional, a sociedade sem classes, a extinção tendencial do Estado, defendida magistralmente por Lenin em O Estado e a revolução. [14]
O suprassumo do utopismo seria a superação do “mundo da necessidade” e o “advento” [olha a influência judaico-cristã] de sociedade onde, “cruz credo” [o judaísmo-cristão, de novamente!], com a superação do “mundo da necessidade”, a humanidade trabalharia menos, tendo como horizonte a sociedade sem classes e o comunismo! Proposta que é um verdadeiro disparate para Losurdo. Segundo parece, para ele, as diferenças de classes, a exploração do homem pelo homem, etc., não seriam produtos da história, mas próprios a uma natureza humana que sugere como eterna. Suas negações, como vimos, pertenceriam ao mundo das utopias messiânicas.
A culpa foi da guerra
Na Europa, segundo o homem, teria sido “o repúdio à guerra que” estimulou “a opção revolucionária”, com o “marxismo ocidental” atacando “sobretudo” o “aparato estatal e militar” e, mais ainda, para ele verdadeiro horror, a “nação” e o “Estado”! [15] E tudo isso em um esforço sem etapas intermediárias, comandado pelo proletariado, que o italiano vê com horror. [16] O ímpeto revolucionário teria sido, portanto, reação psico-sociológica pluriclassista à brutalidade da guerra. O que oblitera o proletariado como principal receptor e vetor de difusão do marxismo e agente da história européia, na sua luta surda ou aberta contra o capital, desde muito antes da I Guerra Mundial.
Para Losurdo, o “marxismo europeu”, ao centrar-se na emancipação dos explorados, na superação das nacionalidades, na extinção tendencial do Estado, etc., como vimos, teria permanecido em um tempo “messiânico” e “utópico”, incapaz de materializar suas promessas. Assim sendo, as derrotas das revoluções na Itália, Alemanha, Hungria, Áustria, Espanha, Portugal, não foram tropeços ocorridos no tempo histórico, por motivos políticos e sociais, entre eles, com destaque, a ação liquidacionista do estalinismo. Não, para o homem, foram desdobramentos inelutáveis das consequências das raízes judaico-cristãs do “marxismo ocidental”, como visto.
A Revolução de 1917, o produto mais lídimo do “marxismo ocidental”, com Lenin, Trotsky e milhares de magníficos bolcheviques ocidentais à cabeça, não naufragou apenas devido à intervenção de… José Stalin, a “encarnação do marxismo oriental”.[17] O messias salvador, que, com seus burocratas privilegiados, enterrou os penduricalhos “utópicos” e “messiânicos” do marxismo “ocidental” e, com eles, literalmente, centenas de milhares de bolcheviques seus defensores e não bolcheviques! [18] Tudo para criar novas práticas, nova ordem e um novo poder burocrático.
“Stalin matou foi pouco”
Práticas, ordem e poder burocrático necessariamente autoritários, verticalistas, centrados no desenvolvimento das forças produtivas do Estado e da nação, sem os fricotes da emancipação e do governo dos trabalhadores. Tudo dirigido por burocracia privilegiada e parasitária. Em Stalin, o italiano justificara sem mediações aqueles processos, reafirmando-o no presente livro, sempre como caminho ineludível. “Como para os países de independência recente, também para a união Soviética a escolha era entre a capitulação ao colonialismo e ao imperialismo, de um lado, e o acelerado desenvolvimento econômico e tecnológico, de outro, que só podia ser obtido sacrificando em maior ou menor medida as exigências da democracia.”[19] Propõe não existir desenvolvimento sem ditadura.
A defesa européia do nazismo teria sido protagonizada “pela União Soviética, surgida de um processo de industrialização conduzido às pressas e com terríveis custos humanos e sociais.” [20] Ou seja, processo aparentemente inscrito nos astros! Porém, a pressa deveu-se à letargia da burocracia, que optou apenas em 1929, pela industrialização que Trotsky e a Oposição exigiam desde 1923.[21] Os “terríveis custos” foram desnecessários e devidos a uma industrialização e coletivização forçadas, autoritárias e desorganizadas, que retardaram o avanço econômico e social da URSS e golpearam fortemente o movimento comunista internacional.
Mas, o mais grave pecado, o de Adão comendo a maçã suculenta entregue pela sedutora Eva, teria sido, no melhor dos casos, a ignorância da questão colonial pelo “marxismo ocidental”. Para Losurdo, em muitos casos, o “marxismo ocidental” teria apoiado a opressão colonial. E, para provar o seu egoísmo atroz, o autor se lança em fastidiosa polêmica, com, segundo ele, alguns dos mais lídimos representantes do “ocidentalismo”. Quais? Os teóricos e revolucionários citados no início do presente artigo? Algum esquecido? Não e não.
Só discuto com quem quero!
Losurdo massacra com furor divino uma cáfila de gentis pensadores “marxistas” acadêmicos, em geral de orientação social-democrática, quando não pró-liberal: Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Louis Althusser, Ernst Bloch, Galvano Della Volpe, Noberto Bobbio, Lucio Colletti, Jean Paul Sartre, Michel Foucault, Hanna Arendt e por aí vai. Reduz a polêmica a espécie de discussão em cursos de sociologia ou filosofia de centros acadêmicos europeus de ponta, diante de estudantes atentos, cultos, lidos e diletantes.
A não ser George Lukács, pouco e mal abordado, na sua quase totalidade, tratam-se de autores estranhos à teoria e à práxis marxista revolucionária européia, que raramente colocaram o pé fora dos seus escritórios universitários, ainda que alguns deles se pronunciaram, com maior ou menor audiência e pertinência, sobre o marxismo e a luta de classes, como nos casos sobretudo de Althusser, Marcuse e Sartre. Nenhum deles, porém, jamais participou direta e sistematicamente da luta de classes revolucionária, sobre a qual apenas se pronunciaram. Foram, no máximo, “companheiros de viagem”, fiéis ou infiéis à luta mundial dos oprimidos.
Nesse debate, destinado a uma “platéia” acadêmica excelente, formada sobretudo por jovens, é gritante a total ausência de confronto teórico com intelectuais militantes europeus, com destaque para os seguidores de León Trotsky, segundo ele, a quinta essência do “marxismo europeu”. Destacaríamos Ernest Mandel, Pierre Lambert, Livio Maitan, Pierre Broué, entre muitos outros. Todos eles intelectuais revolucionários organizados que tiveram uma importante influência subjetiva e objetiva, para o bem e para o mal, na luta de classes, sobretudo na Europa, nas Américas, na África. Deixamos de fora da presente lista importantes dirigentes maoístas e estalinistas pois representariam, na Europa, o “marxismo oriental”.
Uma ausência é grotesca, devido à proposta de Losurdo de traição do “marxismo europeu” ao Terceiro Mundo – Michel Pablo [1911-96], de origem grega-judaica-egipciana, aderiu, em 1929, à Oposição de Esquerda, participando da fundação da IVª Internacional e de sua direção máxima. Desde meados da década de 1950, defendeu que o eixo da revolução passara da Europa aos movimentos de libertação, arrastando em sua política boa parte dos membros da Internacional. Defesa desdobrada em apoio político e material à revolução argelina -envio de fundos, armas, documentos falsos. Após a vitória argelina, de 1962-65, colaborou com o novo Estado. Michel Pablo, “marxista ocidental”, seria o precursor do tal “marxismo oriental” de Losurdo, à exceção da colaboração de classe proposta pelo italiano.[22]A IV Internacional mandelista enterrou-se, igualmente, até o pescoço, na aventura guerrilheiro-fidelista como caminho de superação do neo-colonialismo, não apenas nas Américas. [ERP-PRT, Argentina; POC Combate, no Brasil, etc.] [23]
Sabedoria confunciana
Após o debate faz-de-conta, Losurdo escreve o necrológico do “marxismo europeu” e expõe as qualidades paradigmáticas do “oriental”, que tem, como grandes teóricos, é lógico, Mao Tsé-Tung, Ho Chi Minn, Deng Xiaoping, Kim Il-sung e, o mais excelente de todos, como não podia deixar de ser, José Stalin. O “marxismo oriental” não teria sido infectado pelo vírus “judaico-cristão”, já que logicamente bebendo das tradições “confucianas”. [24] Teria sido refratário aos delírios “utópicos” e “messiânicos” de emancipação dos trabalhadores, de superação do mundo da necessidade, de organização supra-nacional e ao rosário de miragens propostas por Marx-Engels e desenvolvidas e aplicadas por seus epígonos.
Para Losurdo, a revelação da sabedoria do “marxismo oriental” ocorreu no que se refere aos “países coloniais”. Após obterem a sonhada liberdade nacional, eles teriam se centrado no desenvolvimento das forças produtivas materiais, na esfera das respectivas nações, por mais pequeninas que fossem, sem preocupações com as referências básicas do marxismo – internacionalismo, poder e democracia operário-camponês, etc. Teriam se preocupado apenas com a construção do “Estado” e da “Nação”. Isto porque “somente o desenvolvimento das forças produtivas” seria “capaz de dar concretude à independência nacional e afastar o perigo da dependência neocolonial”. [25]
E, ao ingressar por esse caminho, já sem qualquer pudor, o homem agrega: “Os países menos desenvolvidos, antes de abater completamente o capitalismo, precisam e desejam usufruir das ‘maravilhas’, do maravilhoso desenvolvimento das forças produtivas […].”[26] Nessa e em outras passagens do livro, o italiano usa “país” e “nação” para escamotear os verdadeiros agentes e objetos das ações político-sociais —dirigentes, governantes, classes dominantes, classes trabalhadoras, etc. Funde assim, em nível do discurso, os interesses contraditórios das classes, na realidade social objetiva.
E o que vem depois?
Polemizando com a academia, Domenico Losurdo se indignou que Marcuse, sensível e solidário com a luta pela emancipação colonial, se preocupasse com o que viria após a vitória da luta pela libertação nacional – ou seja, qual ordenamento social que ela originaria; se seria favorável aos subalternizados ou engendraria novos senhores. [27] Para o italiano, esse não seria um problema já que, como veremos, pouco importaria que o desenvolvimento material, sem controle político dos trabalhadores, seja uma porta escancarada para novas classes dominantes ou para o imperialismo. O importante é desenvolver o Estado e a nação. E pensar que Lenin sintetizou, em 1919, o socialismo como: “Eletricidade [tecnologia], mais sovietes [poder operário]!”
Losurdo propõe que, no Ocidente, o “marxismo ocidental” via opressão na fábrica, na ciência e na técnica, se não controladas socialmente; no Oriente, elas eram vistas sem complexos, como formas de “resistência contra a política de sujeição e opressão” nacional. “[…] promover um moderno aparato industrial e sair do subdesenvolvimento e da dependência colonial ou semi-colonial” era objetivo sem adjetivação. [28] Para ele, como vimos, antes e após a independência, a nação é um todo, conformada pelos nacionais, onde todos são responsáveis por seus destinos, não existindo classes sociais em oposição. É interessante saber por que Mao Tsé-Tung resistiu a unificar suas tropas com as do nacionalista Chaing-Kai-chek, como instruíra desde sempre a 3ª Internacional nas mãos da burocracia e do estalinismo.
Domenico Losurdo propõe, portanto, que o movimento prioritário pela independência nacional, através do desenvolvimento das forças produtivas, deve postergar, se necessário, a proposta socialista para data indeterminada, e abrir as portas à colaboração da burguesia nacional e do imperialismo. Para tal, apoia-se em uma das tantas elucubrações de Mao sobre a “revolução por etapa”, antes dos comunistas chineses conquistarem o poder e imporem o socialismo sem transições: “[…] o socialismo se tornava um objetivo, por assim dizer, estendido por um período bem mais longo que inicialmente previsto[…].”[29]
Bem Vindos Camaradas Capitalistas!
O italiano defende a abertura, hoje já sem volta, realizada nas últimas décadas, dos países de economia planejada e nacionalizada, com destaque para a China e o Vietnã, para a produção e acumulação capitalista, em uma regressão em relação ao passado socialista. Apoiando-se em N. Bukharin, amigo dos capitalistas e camponeses ricos dos tempos da NEP, Losurdo propõe a “correta via”: “[…] trabalhar a fundo no processo de industrialização (deixando um espaço mais ou menos amplo para o capitalismo) […].”[30] Ou seja, integrar-se na [insaciável] divisão capitalista internacional da produção. E Losurdo faz que esquece que, após a virada de 1929, aquele bolchevique, por ter dito o que disse, e seguir amando a NEP, terminou como matéria-prima na máquina de moer carne do mais excelente representante do “marxismo oriental”!
E já apoiando diretamente a restauração capitalista na China, Losurdo indigna-se com as críticas lançadas ao “novo líder” [Deng Xiaoping] que promoveu a “política de reformas e de abertura” ao capitalismo internacional, a partir de 1978, contra -é claro- à vontade do então falecido Mao Tsé-Tung! Numa pirueta oportunista, Losurdo retira o boné verde com a estrela vermelha que portou quando jovem mao-estalinista, nos anos da Revolução Cultural, e passa de mala e cuia para o partido de Deng Xiaoping e, sobretudo, de Jack Ma, que tem como o mais gritante dazebao [manifesto mural] a proposta de jornada de trabalho de doze horas por dia, seis dias por semana para todos, já largamente praticada no país.[31]
Para apoiar a suas elucubrações, Losurdo se cobre de ridículo ao propor que a “Grande Revolução Cultural Proletária” tinha como principal objetivo desenvolver as forças produtivas materiais e fazer os trabalhadores chineses produzirem mais! Na China “a rebelião [Revolução Cultural] era invocada com a finalidade de abrir caminho para o empenho entusiasmado das massas no trabalho e no desenvolvimento da riqueza social […].” [32]
O Marxismo Latino-Americano
Em registro de eurocentrismo extremado, Domenico Losurdo ignora totalmente a América Latina, apesar de, no mínimo, conhecer o Brasil! Não cita, não se refere, não polemiza com nenhum das centenas de teóricos que se debruçaram exaustivamente sobre a questão da emancipação das relações neo-coloniais no continente e abraçaram a luta direta anti-imperialista e anti-capitalista. Apenas alguns, já falecidos, da longuíssima lista: Jose Carlos Mariateghi, Emílio Recabarren, Astrojildo Pereira, Lívio Xavier, Octávio Brandão, Caio Prado Júnior, Guilherme Lora, Ernesto Che Guevara, Jacob Gorender, Oscar Creydt, Atilio Boron, Luiz Vitale, Rui Mauro Marini, Milcíades Peña, Vania Bambirra, Mario Roberto Santucho, Nahuel Moreno.
É providencial o esquecimento da América Latina. A história do continente reduz a pó as propostas colaboracionistas do italiano, sintetizada na afirmação: “Somente o desenvolvimento das forças produtivas era capaz de dar concretude à independência nacional e afastar o perigo da dependência neocolonial.” [33] Com movimento vitorioso de independência das metrópoles ibéricas desde 1810, as nações latino-americanos deram origem a Estados neo-coloniais, onde o poder político foi embolsado pelas classes dominantes regionais, que seguiram colaborando com o capital internacional, e mantendo as antigas e introduzindo novas formas de exploração das classes subalternizadas. [34]
Não poucas nações independentes após 1810 -Argentina, Brasil, Chile, Venezuela, México- conheceram acelerado processo de industrialização e desenvolvimento tecnológicos, sobretudo a partir de 1930. O Brasil seria a nona nação industrial do mundo. Nem industrialização, nem desenvolvimento tecnológico salvavam esses país da voraz dependência econômica e política ao capital internacional, que tem se radicalizado nos últimos anos.
Nas Américas, desde a independência colonial, a contradição dominante não foi entre a “nação” e as “ex-metrópoles”, mas entre as classes oprimidas e as classes opressoras nacionais, as últimas em estreita simbiose com o imperialismo. Mas Losurdo insiste, despreocupado com as classes exploradas: “Enquanto os países que conquistaram a independência política tentam torná-la concreta ou sólida através do trabalho duro do desenvolvimento econômico e tecnológico” os “operaristas” estavam preocupados com a exploração e libertação das classes assalariadas e operárias! [35] Um viva, para os “operaristas”!
Vai trabalhar, vagabundo!
Losurdo e seu “marxismo oriental” estariam preocupados em empreender o “esforço grandioso” em prol da “economia nacional”, impondo nas fábricas e nos campos “o fim da ‘indolência’ e ‘a mais rigorosa disciplina’ no local de trabalho”. [36] No melhor estilo dos países sob o tacão capitalista e com as classes operárias politica e socialmente desorganizadas, Domenico Losurdo toma na mão o chicote do patrão para fazer os trabalhadores produzir mais. Propõe verdadeira ditadura do capital na produção, em prol da nação poderosa!
Podemos acompanhar, sobretudo no contexto da vaga contra-revolucionária de 1991, o mesmo processo latino-americano, ocorrido após 1810. Ou seja, nações ex-coloniais, após obterem a independência política, escorregaram para as mãos de oligarquias ou lupem-burguesia nacionais, submetidas ao grande capital. Processo ocorrido, na África, com destaque para as revoluções argelina, angolana, moçambicana, abissínia, líbia e sul-africana. Elas, após tentarem associar independência nacional e social, hoje vivem a exploração capitalista e neo-colonial. Portanto, os que concordarem com a proposta de Losurdo da “transformação da velha África do Sul […] numa África do Sul completamente nova”, após a independência pactuada, deveriam ganhar como prêmio férias nas periferias populares das cidades do país, a serem vividas com os salários dos trabalhadores sul-africanos. [37]
As propostas desencontradas de Domenico Losurdo constituem, no frigir dos ovos, justificativas ideológicas para a restauração capitalista na URSS, na China, no Vietnã, etc., assim como de seus respectivos líderes e direções autoritários. “A urgência do desenvolvimento econômico e tecnológico, pressuposto ineludível de uma independência real, implica (na China, no Vietnã, e, em nosso dias, também em Cuba) tanto a abertura para o mercado, quanto concessões à burguesia nacional (…) e internacional (…).” [38] Jack Ma ao poder e ferro nos trabalhadores!
A retórica esfarrapada de Domenico Losurdo é vinho velho e azedo apresentado em um barril carcomido, apenas envernizado superficialmente. A defesa do desenvolvimento do capitalismo nacional, para o “crescimento” da nação, em perspectiva de um socialismo perdido no horizonte dos tempos, foi a política oficial dos partidos comunistas latino-americanos, seguindo as instruções da burocracia soviética. Ela levou a desastres enormes, como o brasileiro de 1964.
A defesa do sentido “operário” do “desenvolvimentismo nacional” foi avançada no imediato pós-guerra, quando o estalinismo delirava com coexistência pacífica eterna. Para agradar ao capital, mandou que os trabalhadores dos países semi-coloniais como o Brasil “apertassem o cinto”, para fortalecer o capitalismo e a nação![39] A tal proposta do bolo do gordo Delfim Neto, dos anos da ditadura desenvolvimentista, na qual Losurdo talvez se inspirou!
A conclusão é a mais breve e mais interessante parte do livro, na qual Losurdo cumpre a promessa de ensinar o “marxismo ocidental” a nascer. Após gritar prepotente: – É a economia (capitalista), idiotas!, ele aponta em forma didática o caminho: – Aprendam, portanto, o chinês!
*Agradecemos a leitura e crítica da linguista italiana Florence Carboni.
**Mário Maestri, 71, historiador, autor de, entre outros: “Revolução e contra-revolução no Brasil: 1530-2019”. 2 ed. Porto Alegre: FCM Editora, 2019. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil
NOTAS
[1]LOSURDO, D. Stalin: história crítica de uma legenda negra. Rio de Janeiro: Revan, 2019 [2010]. 372 p.; MAESTRI, Mário. “Domenico […]. https://esquerdaonline.com.br/2020/01/16/domenico-losurdo-um-farsante-de-sucesso-na-terra-dos-papagaios/
[2]LOSURDO. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. São Paulo: Boitempo, 2018. 230 p.
[3]Cf. por exemplo: PIANCIOLA, Nicola. Stalin. Storia e critica di una leggenda nera, […]. SISSCO. Società italiana per lo studio della storia contemporanea. 2008. http://www.sissco.it/recensione-annale/domenico-losurdo-stalin-storia-e-critica-di-una-leggenda-nera-con-un-saggio-di-luciano-canfora-2008/
[4]LOSURDO. O marxismo ocidental […]. Ob.cit. p. 77.
[5]“A tradução é nossa: TRONDI, Mário. Nous opéraïstes le ‘roman de formation’ des années soixante en Italie. France: Editions d’en bas; Editions de l´éclat. 2013. p. 85.
[6]LOSURDO. O marxismo ocidental […]. Ob.cit. p. 65-6.
[7]MANOLO.. Mário Pedrosa político (2): do Grupo Comunista Lenine à IV Internacional e exílio (1929-1945). https://passapalavra.info/2009/11/14666/
[8]TROTSKY, L. Em defesa do marxismo. São Paulo: Proposta, [2011]. 242 p.
[9]LOSURDO. O marxismo ocidental […]. Ob.cit. p. 44, 207.
[10]Id.ib. p. 207.
[11] VER, por exemplo: ASSIS, Renata Machado de. O método em Marx. Caderno de Pesquisa, PPPGI, v. 24, n. 1, jan./abr. 2017. http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/4147
[12]LOSURDO. O marxismo ocidental […]. Ob.cit. p. 43.
[13]Id.ib. p. 36, 38.
[14]Id.ib. p. 24; LENIN, V.I. O Estado e a revolução. 1918.
[15]LOSURDO. O marxismo ocidental […]. Ob.cit. p.19, 23, 27 et passim.
[16]Id.ib. 49 et seq.
[17]LOSURDO. O marxismo ocidental […]. Ob.cit. p.43.
[18]CANARY, Henrique. O partido dos fuzilados: Stalinismo e memória de esquerda. Esquerda On-Line, 21/11/2019. https://esquerdaonline.com.br/2019/11/21/o-partido-dos-fuzilados-stalinismo-e-memoria/
[19]LOSURDO. O marxismo ocidental […]. Ob.cit. p. 103.
[20]Id.ib. p. 47.
[21]TROTSKY. Cours nouveau. Paris: Minuit, 1963.
[22]MARIE, Jean-Jacques. Os quinze primeiro anos da Quarta Interanacional. São Paulo: Palavra, 1981. p. 111 et seq.
[23]MEUCCI, Isabella Duarte Pinto. O campo e a guerrilha: o movimento trotskista e a Revolução Cubana. Revista Outubro,11/2016, 27. p. 163. http://outubrorevista.com.br/o-campo-e-a-guerrilha-consideracoes-do-movimento-trotskista-apos-a-revolucao-cubana/
[24]LOSURDO. O marxismo ocidental […]. Ob.cit. p. 37.
[25]Id.ib. p. 60.
[26]Id.ib.p. 36.
[27]Id.ib.p. 102.
[28]Id.ib.p. 35.
[29]Id.ib.p.61.
[30]Id.ib.p.59.
[31]Id.ib.p. 61; https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2019/04/15/o-que-e-o-sistema-996-que-preve-12-horas-de-trabalho-por-dia-e-e-defendido-pelo-bilionario-chines-jack-ma.htm
[32]LOSURDO. O marxismo ocidental […]. Ob.cit. p. 111.
[33]Id.ib.p. 60.
[34]MAESTRI, Mário. Paraguai: a República Camponesa. [1810-1865]. Porto Alegre: FCM Editora, 2015. 250 p.; Id. Mar del Plata: Dominação e Autonomia no sul da América: Argentina, Brasil, Uruguai. (1810-1864). Porto Alegre: FCM Editora, 2016. 273 p.
[35]Id.ib.p. 78.
[36]Id.ib.p.115.
[37]Id.ib.p. 107.
[38]Id.ib.p. 117.
[39] PRESTES, A.L. Prestes. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 258.
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