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TEORIA

Domenico Losurdo, um farsante de sucesso na Terra dos Papagaios

Mário Maestri*

Prisão de Verkhneuralsk

Para o camarada Ivan Pinheiro

Domenico Losurdo e seu ensaio Stalin: história crítica de uma legenda negra foram aclamados no Brasil. (1) Intelectuais de esquerda, mesmo se dissociando pontualmente do autor e de sua opera prima, declararam sua importância como intelectual e do livro como estudo inovador ou instigante. O insuspeito “Esquerda Diário”, Semanário do MRT, de julho de 2019, propôs: “Domenico Losurdo é, inegavelmente, um autor instigante e que merece ser lido.” (2)  A morte do italiano ensejou elogios hagiográficos que chegaram a propô-lo como um dos maiores pensadores marxistas de nosso tempo. Entretanto, Losurdo não é pensador marxista e já foi definido de “neo-hegeliano”, com acuidade e gentileza. (3) No índice de nomes do livro em questão, Hegel aparece  treze vezes e Marx, uma! (4) O italiano sequer é autor conservador confiável, integrando o balaio de autores direitista que, não raro, se dizendo de esquerda, dedicam-se a ataque turvo ao marxismo revolucionário, que vive hoje momentos dramáticos. Pedindo vênia ao querido companheiro Mazzeo, parece-nos correto defini-lo como um farsante. (5)

Por duas razões, a literatura vulgar de Losurdo mereceu nossa atenção. Primeira, devido ao seu sucesso no Brasil e às sequelas que causa sobretudo entre a jovem militância. Segunda, por que é necessária uma explicação sócio-política do  seu sucesso no Brasil, enquanto o autor é pouco considerado em seu país, de sólida cultura operária e marxista. É simplismo explicar tal sucesso como decorrência da escassa formação da nossa esquerda ou da competência de seus editores.  Mesmo se fosse certa aquela proposta, ela não explicaria por que um vasto público abraçou a obra de Losurdo, preferindo-a às de tantos outros farsantes de prestígio. Quanto às editoras, elas correm atrás de autores que vendem, e não na frente deles, procurando vendê-los.

Estalinismo e Neo-Estalinismo

O estalinismo foi exacerbação do assalto burocrático do poder político na URSS, após 1917, apoiado pelo refluxo da revolução européia. Ele se corporificou em inícios de 1930, consolidou-se quando do Grande Terror [1934-38] e, em 1953, com a morte de Stálin, deu lugar à ditadura burocrática soft da Era Kruschev [1953-64].  (6) As burocracias estalinista e, desde 1953, pós-estalinista assentaram raízes no parasitismo da sociedade da URSS e das nações de economia nacionalizada e planificada. Realidade extensiva, em forma desigual, aos dirigentes dos partidos comunistas satélites. Com a restauração capitalista de inícios dos anos 1990, dissolveu-se a base material que sustentava o poder e os privilégios burocráticos. O estalinismo reduziu-se então a supervivências ideológicas de saudosistas. Antes de 1991, ele fora leão de garras e dentes afiados. A seguir, o estalinismo nostálgico passou a ser cachorrinho que rosnava mostrando os dentes de papel machê.

O neo-estalinismo é fenômeno novo. Losurdo é importante ideólogo e divulgador desse movimento, que apresenta com destaque em  Stalin, de 2008, e em O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer, de 2017. O neo-estalinismo reescreve o passado, não mais com o projeto de revivê-lo. Em Stalin, Losurdo não defende retorno ao “socialismo” dos anos 1929-1953. Nisso, diverge do livro homônimo do maoísta Ludo Martens, de 1994. (7) Porém, é habitual aproximar os dois trabalhos. Losurdo e o neo-estalinismo defendem algo diverso. O italiano não é o ideólogo reivindicador da burocracia arrasada pela queda da URSS, em 1991. Simplificando, diríamos que ele interpreta mais os burocratas que se reconverteram em capitalistas e em gestores da Rússia da Era Putin.  É apenas para avançar sua operação que Losurdo defende o caráter excelente da ação de Stalin e da burocracia estalinista. Tudo que eles fizeram justificaria-se nos fins que perseguiram – a defesa da URSS sobretudo contra a “escravização” pelo nazismo. (8)  Na sua operação, Losurdo levanta os elogios mais estrambólicos  ao “Pai dos Povos”, propondo-o como “astuto comandante militar”, de “extraordinárias capacidades militares e política”, “modesto”, inimigo do culto a sua personalidade! (9)  Pode? Os que propõem que Losurdo não realize elogio encomiástico do biografado,  não leram Stalin ou só leram o que gostaram.

Stalin no pedestal  

Stalin teria usado mão de ferro para defender a URSS do “escravismo” nazista e de seus apoiadores, conscientes ou inconscientes. Entre os últimos, Losurdo destaca León Trotsky e os “trotsquistas” que, no mínimo, desde 1927, teriam tentado golpes militares e praticado atos terroristas contra a URSS. Por sede de poder, Trotsky e associados teriam se aliado objetivamente e, talvez, subjetivamente, ao nazismo, esperando que a vitória alemã acabasse com a burocracia soviética.  (10) E, apenas devido a isso, Stalin reagiu: “Qualquer governo teria identificado em organizações dessa forma orientadas uma ameaça para a segurança nacional.”  (11) Para avançar suas propostas, o italiano não reduz a luta entre Stalin, o Demiurgo oriental, e Trotsky, o anti-Prometeu cosmopolita, a uma disputa de belezas no passado.  (12) Retira do confronto orientação política para o presente. O choque Trotsky-Stalin confrontaria duas versões opostas do marxismo: uma redentora, a outra, liquidacionista. Trotsky expressaria o viés “universalista” e “utópico” do “marxismo europeu”, incapaz de construir qualquer coisa, na eterna corrida atrás da quimera da revolução mundial e do comunismo imediato. Mesmo que ele e seus acólitos fossem idealistas, eram praga a ser extirpada. Qualquer coisa como cães pastores infectados pela raiva.  (13)

Stalin, não. Ele foi o idealizador-defensor da nação em construção. O líder pragmático, racional e equilibrado, de pés na terra, que desventrou o “marxismo ocidental”, livrando-o das entranhas apodrecidas das utopias plebéias e niveladoras, propostas por Marx, Engels, Lenin. Apoiando-se em autor conservador, como lhe é habitual, Losurdo propõe a “mudança radical da doutrina desenvolvida por Marx e Engels” pelo “Pai dos Povos”! (14)  Stalin teria sido o líder providencial que transformou o marxismo em ideologia da construção-defesa, se necessário multi-classista, da Rússia contra o ataque escravizador. Torcendo as cronologias para adaptá-las à sua criatura,  Losurdo quase se refere a ameaça nazista à URSS, antes do nascimento de Hitler! Na fundação do “marxismo oriental”, Stalin, o iluminado, aponta como a tarefa da revolução [socialista?] o desenvolvimento das forças produtivas, para além das contradições sociais. Losurdo festeja a proposta do “Não interessa se o gato é branco ou preto, o que importa é que ele mate o rato”, de Deng Xiao-ping, restaurador do capitalismo na China. (15) Ele propõe como exemplo o Vietnã pós-socialista e, sobretudo, a China-hoje-grande-potência, com jornadas de trabalho de dezesseis horas, sem férias, e mega-bilionários saindo pelo ladrão. (16)

Sem Guerra, não há revolução

Losurdo ignora o estalinismo como fenômeno da luta social e de classes na URSS e no mundo. Mais ainda. Na sua narrativa, a própria revolução de 1917 perde o caráter de classe, proletário e camponês, surgindo como produto do horror despertado na Europa pelo “primeiro conflito mundial”. (17) Para tal, oblitera a Revolução de 1905, nove anos antes do início da Grande Guerra! (18)  Para ele, não se tratava de construir sociedade socialista, combater e superar a exploração e os “privilégios” sociais. Citando  o “Pai dos Povos”, o desafio era transformar a Rússia “no mais rico” país do mundo, através de industrialização e coletivização – que Stalin combateu até 1929, de braços com Bukharin. (19) Foi devido à necessária corrida “desenvolvimentista”, para defender a URSS da escravização nazista, que Stalin teria sido  obrigado a reprimir as “utopias”, “messianismo”, “universalismo”, “internacionalismo totalmente irrealista” do “marxismo ocidental”. Tudo pela nação! Tudo pelo patriotismo!  (20)  Nosso italiano critica a III Internacional fundada nos princípios da “emancipação universal”, contra os  sagrados “interesses ditos nacionais”. (21)  Nação. Nação. Nação.

Losurdo saúda em Stalin a correção dos desvios “universalistas” utópicos do “marxismo ocidental”.  (22)  Festeja a defesa do “Pai dos Povos” do voto universal e secreto e o direito dos padres ortodoxos de votarem e serem votados. Tendência que liquidaria a ditadura do proletariado, se o voto valesse algo sob o stalinismo. (23) Celebra o despotismo na produção e ataca a democracia operária o “igualitarismo”, o “operarismo”, na URSS, no passado, e na Itália dos seus dias.  (24) Apoia que burocratas tivessem trabalhadores domésticos. (25) A “Guerra Patriótica” contra o nazismo  foi “patriótica” e não soviética, celebra Losurdo. O que importava para a Rússia, então soviética, e certamente depois de soviética, era, como já dito, o desenvolvimento das “forças produtivas materiais”, para manter a autonomia nacional, por além de eventuais e necessárias desigualdades sociais.  E, para tal, era necessário um homem forte, o ditador providencial, que impusesse a “ditadura desenvolvimentista” – lembrei-me ao ler de Geisel e Putin! (26)  Tese que Losurdo, o “novo teórico na nação”, já sem pudor, defende se apoiando na materialização da “razão da história” na emancipação-unificação da nação alemã, do Hegel tardio,  realizada mais tarde por Bismarck. Devido às tarefas necessárias  e terríveis do líder providencial, Losurdo sugere que “Stalin matou foi pouco”. (27)

A grande “pegadinha” de Losurdo é que não defende, para hoje, como os estalinistas nostálgicos, a tese do “socialismo em um só país”, de Bukharin-Stalin. Aplaude, essencialmente,  a “regressão estatal”, o abandono do internacionalismo, nascidos daquela política. O Estado autoritário e o caudilho providencial são seus heróis, destinados a construir a nação capaz de defender-se dos agressores externos. Se for socialista, vá lá! Se não for, o que fazer! E Losurdo apoia-se em Stalin, embriagado pelas ilusões de coexistência pacífica do após-guerra, propondo aos dirigentes comunistas da então área de influência soviética – Polônia, Hungria,  etc. – que já era desnecessário fazer a revolução, pois o socialismo seria então possível, sem a ditadura do proletariado, “até sob a monarquia inglesa”!  (28) Portanto, o “marxismo oriental” de Losurdo surge propondo agora a “universalidade” da “ditadura desenvolvimentista” e do líder providencial necessários à construção de nação poderosa. (29) Programa livre do utopismo da centralidade dos trabalhadores e de suas reivindicações e das fantasmagorias de Marx, Engels, Lênin e Trotsky de Federação das Repúblicas Socialistas da Europa. O Gral da revolução teria sido encontrado por nações como a China, o Vietnã, a Argélia, Angola de hoje. (30) E, agregaríamos, por que não, a Rússia de Putin. Nação. Nação. Nação.

II – Parte – Losurdo nariz de Pinóquio

Para construir sua narrativa, Losurdo embaralha, inventa e confunde os fatos do passado, sobre os quais, pouco sabe, cometendo não poucos erros fatuais graves. Amálgama fenômenos históricos e cronologias. Empreende saltos lógicos, quando devia se escorar em material fatual. Apoia-se em digressões de Hegel, o filósofo da era da gênese-consolidação nacional, em tempos da globalização! Faz das tripas coração para propor que o estalinismo e o “Grande Terror” [1934-8] nasceram  dos ataques golpistas e terroristas dos trotsquistas, que sabotavam a defesa da URSS da “escravização” nazista, uma sua quase obsessão. Tira da cartola uma “Terceira Guerra Civil” soviética, iniciada no interior do PCUS, vencida heroicamente por Stalin e seus sabujos, a custa de alguns milhões de mortos!   (31)

Como maestra da escola primária de antigamente, a cronologia dos fatos golpeia os dedos de Losurdo-Pinóquio, revelando as suas fantasmagoria. A primeira execução, à margem da lei, de um bolchevique, Yakov Blumkin, herói da guerra civil, foi em 1929. A ditadura estalinista propriamente dita começa em 1931, em plena República de Weimer [1918-33].  O “Grande Terror” parte em 1934, quando Hitler arribava ao poder, cinco anos antes do pacto germano-soviético [1939] e oito, da invasão nazista da URSS [1941]. Possivelmente Stalin descria em ofensiva nazista contra a URSS, já que mandou executar quinze mil oficiais soviéticos, em 1937, facilitando a ofensiva alemã. O senhor da guerra de Losurdo matou duas vezes e meia mais generais soviéticos que os nazistas durante toda a guerra!

Não houve Terceira Guerra Civil

É falsa a proposta de Losurdo de exacerbação estalinista da ordem burocrática, em 1931, como defesa da URSS contra o nazismo. Mas vejamos de mais perto a “organização” por León Trotsky de “tentativa” de “golpe militar”, em 1927, e, após essa data, até a sua morte, de ampla campanha de atos “terroristas” – assassinatos, sabotagens, etc.  O “Grande Terror” estalinista [1934-38], com seus milhões de mortos, teria sido, segundo Losurdo, a resposta incontornável do estalinismo à tal de “Terceira Guerra Civil”, totalmente desconhecida pela historiografia séria sobre a URSS. 

A Primeira Guerra Civil seria a de 1917; a segunda, a vencida sob a direção de Trotsky, em 1918-21; a terceira, para Losurdo-Pinóquio, a lutada por Stalin e pela burocracia, a partir de 1927, contra o ataque armado à URSS, empreendido sobretudo pelos trotsquistas. Para o filho tardio de Geppetto, em 1927, Kamenev, Zinoviev e Trotsky partem para a “conquista do poder”, através de ofensiva “militar”. Trotsky define o “plano”“militar” em reunião, em “bosque”. O “Bonaparte Vermelho”, apoiado nos seus importantes contatos no “exército”, nas “massas operárias” e em “jovens comunistas”, planejava tomar o “poder” em “golpe de Estado”. A insurreição iniciaria no 10º aniversário de 1917, com “manifestações” em Moscou, realmente realizadas. (32)

Onde está a insurreição? O gato comeu!

Tudo está pronto. A grande insurreição está engatilhada através da URSS. As tropas militares “trotsquistas” encontram-se aquarteladas. Mas … nada acontece.  O neo-Pinóquio conclui suas revelações estarrecedoras dizendo: “Como se sabe” [quem?], os “planos fracassaram” [onde, quando, como, por que?] e Trotsky foi “expulso do partido”, em 1927, e obrigado a “transferir-se” [sic] à “Turquia”, em 1929. E pensávamos que fora  expatriado! Com Trotsky no exílio, segundo o neo-estalinista peninsular, os agentes trotsquistas, no interior e chegados do exterior, seguiriam explodindo pontes, sabotando a produção, tudo para a volta do líder ao poder! No mundo real, os fatos documentados são outros. 

Trotsky iniciou o combate anti-burocrático com a Oposição de 1923, publicando o opúsculo profético Curso novo. (33) A Oposição Unificada pretendia ganhar o PCUS e os trabalhadores para programa anti-burocrático e contra a restauração capitalista – democracia partidária, industrialização, coletivização, etc. No final de 1927, ela entrava em crise. A manifestação do 10º Aniversário foi o último “canto [público] do cisne”. A direção da Internacional burocratizada liquidara a Revolução Chinesa, que a Oposição esperava que reativasse a vida política na URSS. O desânimo era grande. Iniciou-se a prisão  em massa de militantes da oposição. Em novembro, Adolph Joffé, de 44 anos, bolchevique desde 1900, dirigente do assalto ao poder em 1917, doente, suicida-se em protesto anti-burocrático. Milhares de trabalhadores, de punhos cerrados, seguem silenciosos o enterro.(34)  Em janeiro de 1928, Zinoviev e Kamenev abjuram e Trotsky segue isolado a luta anti-burocrática, nas piores condições.  É farta a produção bibliográfica qualificada, em italiano, sobre esses fatos, por editoras do PCI nos anos 1970 e 1980. Não há traços dela na obra de Losurdo! (35) 

Industrialização e coletivização aos pescoções!

Em fins de 1928, fortalecidos, os camponeses ricos acaparam o grão e a fome abraça as cidades. Temendo serem engolidos pela NEP, Stalin e a burocracia rompem com Bukharin e implementam o programa da Oposição. Avançam em forma militarizada e desorganizada o que a Oposição propunha ser realizado com ações sobretudo econômicas, com destaque para a produção de bens industriais a serem vendidos aos camponeses, para transferência da renda rural à indústria, através do comércio estatizado. (36) Milhares de “trotsquistas” abandonam o oposicionismo, acreditando que apenas a industrialização proposta pela Oposição Unificada, feita a facão, faria renascer a democracia operária. (37)  Voltariam a ser presos e, mais tarde, fuzilados, aos milhares.  Os desastres do Plano Quinquenal, gigantescos, foram calados por maré repressiva,  à direita e à esquerda. 

Anta Ciliga, dirigente comunista iugoslavo [croata], então na URSS, registra a “debilidade” da Oposição em 1927. (38) Ele e Victor Serge, belga-russo, relatam em detalhes as tentativas de intervir em células operárias sob a intimidação dos brutamontes da burocracia. Escritores de mão cheia, descrevem a  depressão e a repressão que os militantes “duros” da Oposição conheceram, após o início da industrialização e coletivização forçadas. Os dois terminaram nos “isolatórios” estalinistas, de onde escaparam, por terem nacionalidades estrangeiras. Foram praticamente os únicos! Após 1929, no exterior, Trotsky viveu como asceta e escrevia para pagar as contas.  (39) A organização que fundou vivia em crise financeira. Não contava com o “ouro de Moscou”! Em 1974, refugiado no México do golpe de Estado no Chile, visitei a última residência de Trotsky, em Coyoacán, no periferia da capital. Surpreendeu-me a pobreza da construção. O QG da “Terceira Guerra Civil” lusordiana  era moradia de classe média, de um andar, com um pequeno pátio, onde Trotsky criava coelhos e galinhas, que terminavam na mesa! Os altos e sinistros muros davam idéia falsa de proteção.

As Fontes de Pinóquio

Há documentação fluvial sobre os fatos históricos de 1927 e dos anos seguintes. Em geral, apenas as interpretações sobre eles divergem. De onde saíram as revelações lusordianas bombásticas?  Dos arquivos do PCUS, agora à disposição dos historiadores … que sabem ler russo, é claro? Dos papéis de Trotsky, depositados na Universidade de Harvard? De fundos documentais não esgotados? De memórias de algum dos milhares de “terroristas” enviados à URSS por Trotsky? Não e não! Losurdo apoia-se no essencial em duas fontes. A primeira, o alicerce de suas revelações exdrúxulas, é o livro do jornalista italiano Curzio Malaparte, Tecnica Del Colpo di Stato, de 1931, trabalho hilário! (40)  Losurdo discute raramente a fiabilidade de suas fontes. Nesse caso, esquece de contar que Malaparte, o revelador do assalto militar trotsquista, era oportunista e farsante de largo sucesso. “Fascista della prima ora”, participara da Marcha sobre Roma e, ao escrever o livro fantasioso, prestava serviços aos camisas negras.   

As memórias de  Ruth Fischer é fonte secundária das escabrosas revelações. (41)  O caso da líder comunista alemã de esquerda é diverso. Em 1927, quando ocorriam os fatos em questão, ela não estava na URSS, mas na Alemanha. E, sobretudo, ao escrever suas memórias, nos anos 1940, que Losurdo utiliza, tornara-se ideóloga anti-comunista, a serviço do imperialismo! Um depoimento a ser tomado com pinças! Resumindo, as acusações difamatórias de Losurdo contra milhares de bolcheviques de primeira hora, massacrados pelo terror estalinistas, apoiam-se em fontes tão confiáveis como bilhete “premiado” vendido na porta do banco para senhora idosa. E tal comportamento não é um hiato.  É a norma. O que transforma Stalin em trabalho digno de lixeira historiográfica, no qual o autor conquistou lugar de destaque.

Assassino da Memória

Para avançar suas proposições, Losurdo assume o papel de difamador, de negacionista, de assassino da memória. Vejamos caso excelente. Em 12 de junho de 1937, era executado o marechal Mikhail Tukatchevski, grande herói da Guerra Civil, na qual combatera sob as ordens de Trotsky. Ele foi executado após ´comprovada´ pela GPU sua  participação em conspiração “fascista-trotsquista-direitista”. Era o início de massacre de oficiais soviéticos de consequências terríveis. Losurdo resolve a questão dramática em sete parágrafos, nos quais trata da execução de Tukatchevski e de “numerosos outros” oficiais. E bota “numerosos” nisso, Losurdo! Dois outros marechais, além de Tukatchevski; oito dos nove almirantes; uns setecentos generais. Muitos deles membros do Comitê Central. No total, mais de 15.000 oficiais assassinados e uns 40 mil aprisionados! A seguir, onda de suicídios varreu a oficialidade do Exército Vermelho dilacerada pela repressão. (42)

Losurdo banaliza a tragédia, inocenta Stálin e sugere responsabilidade política de Trotsky! (43)  Segundo ele, em 1937, o presidente da Tcheco-Eslováquia informara os franceses de conspiração de Tukatchevski com a Alemanha nazista. A GPU, por sua vez, informara Stalin, que ordenara, em vapt-vupt, o esventramento do Exército Vermelho. Losurdo apoia a eventual existência da conspiração em declarações de Churchill e Hitler! E balbucia que “dúvidas permanecem” ainda hoje sobre ter ela ocorrido ou não, o que “justificaria” o massacre no Exército Vermelho, às portas da guerra! E zombando dos leitores, afirma que os oficiais restantes seguiram expondo  “com franqueza as suas opiniões […] sem hesitar em contradizer o líder supremo […].” (44)  Ou seja, após serem dizimadas as filas das forças armadas soviéticas, ninguém temeria terminar no círculo ártico ou com um tiro na nuca! Me poupe, Losurdo!

Abertos os arquivos soviéticos e alemães, encontrou-se apenas informação sobre a provocação nazista para dizimar o Exército Vermelho (45), abraçada por Stalin, que fabricou também documentos para apoiar as execuções. Losurdo festeja terem sido  razões políticas e não a sede de sangue de Stálin que levara à mortandade. Essas razões seriam, possivelmente, eliminar oficiais bolcheviques de prestígio que haviam combatido sob as ordens de Léon Trotsky e impor o terror político ao Exército Vermelho. Certamente os oficiais sussurrariam, entre eles, críticas aos desmandos estalinistas, que não podiam discutir, como seria normal, no seio do PCUS aterrorizado pelo estalinismo. Como parte da imposição do terror, a família Tukhachevsky conheceu sorte terrível, como as de tantos outros oficiais. (46) Oito décadas passadas, nossa homenagem a esses soldados da revolução proletária, que não merecem ter seus nomes enxovalhados por um assassino de memórias.

III. Domenico Losurdo: As Fontes de um Mentiroso Contumaz

Após eu publicar breve nota no Facebook sobre a manipulação das fontes por Losurdo, enquanto concluía a leitura de Stalin, fui interpelado por um admirador do italiano: “Dê-se o trabalho de abrir a parte das referências dessa obra de Losurdo, são mais de 30 páginas [sic] de referências. Grande parte dos autores e autoras trabalhados por Losurdo são respeitáveis trotsquistas incluindo o principal biógrafo de Trotski.” (47) Creio que o companheiro se referia a Isaac Deutscher.  Ao seguir o conselho, lembrei-me de acadêmico inglês que escrevia sobre Gramsci e não lia em italiano. Ele me disse que tudo o que importava estava em inglês. Por educação, não retruquei. Losurdo deve ser primo do exótico gramscista. Não há nada, nada mesmo, na biografia de “Stalin” em russo!   Pior ainda é a ausência de qualquer referência à pesquisa em arquivos, valorizada pela abertura dos centros de documentação da antiga URSS. Hoje, contamos também com documentação primária on-line e edições confiáveis de documentos.

  Losurdo não gosta de arquivos ou de dar-se ao trabalho de usá-los. E nas escassas fontes que arrola na bibliografia, para trabalho de tamanha pretensão, registra pouca documentação primária editada, hoje, abundantíssima, mesmo… em italiano. Ele desconhece os depoimentos incontornáveis dos raros trotsquistas que escaparam ao massacre, como  Victor Serge e Ante Ciliga, já traduzidos ao italiano! Não cita autores “trotsquistas” referenciais, que respeitaram sempre os fatos, as cronologias, as normas historiográficas – Alfred Rosmer, Ernest Mandel, James Canon, Jean-Jacques Marie, Pierre Frank, Pierre Naville, Stéphane Just, Yvan Craipeau, etc. Da obra monumental de Pierre Broué, apenas a biografia de Trotsky! Não há traços da monumental história desse autor da Revolução na Alemanha, em 1919–23! (48) E, acredite quem quiser: o farsante desconhece a trilogia canônica de Isaac Deutscher! Qualquer coisa como falar de Cristo e não citar os Evangelhos! Nada de Kamenev, nada de Zinoviev e … muitíssimo de Bukharin, o amigo do capitalista e do camponês gordos da NEP, admirados por Losurdo! (49)  Mesmo um autor italiano preguiçoso poderia ter feito mais, pois, na própria Itália, nos anos 1970-80, editoras próximas ao PCI publicaram erudita literatura sobre o debate entre Trotsky, Bukharin, Zinoviev, Kamenev, Stalin, Preobrajenski, etc., ausentes de bibliografia onde pululam, ao contrário, farsantes  anti-comunistas. 

Digas com quem andas …

Losurdo serve-se farta e positivamente de ideólogos anti-comunistas. (50) Ainda mais significativo que Malaparte é o uso amplo de Nicolas Werth, um dos autores do Livro negro do comunismo, enraivecido pasquim internacional anti-comunista. (51)   Werth possui três trabalhos na bibliografia do Losurdo. Rosa e Marx só têm um! Preobrajenski, nenhum! E, nessa bibliografia seleta, François Furet, energúmeno da tribo de Werth, grita: – Presente! Losurdo não diz que Robert Conquest, um seu grande apoio, com seis obras citadas, trabalhou em instituição anticomunista inglesa. Em sua apologia de Stalin, Losurdo cita os comentários laudatórios do diários de … Dimitrov! (52) Queria que ele escrevesse o quê! No mesmo sentido, apoia-se em Jacques Duclos, alto dirigente estalinista do PCF, para inocentar o estalinismo! (53)

E não se trata, do uso de autores conservadores com o objetivo de descontruílos, já que Losurdo apoia comumente nos mesmos suas elucubrações. Abordando o assassinato de Kirov, em fins de 1934, em Leningrado, escora-se longamente em “estudiosa russa”, publicada em coleção dirigida por Stéphane Courtois e Nicolas Werth! Para discutir e defender os gulags estalinistas, serve-se, por longas páginas, quase apenas de jornalista estadunidense, especialista no “comunismo”, ex-editora do Economist. (54) Losurdo quase surta de alegria quando Werth propõe a “extraordinária capacidade” de Stalin de “construir o Estado”. (55)  E celebra o energúmeno quando afirma que a violência “bolchevique” e “estalinista” devem ser analisadas nos quadros da “longa duração”  da “história russa”. O estalinismo nasceria, assim, do “estado de exceção permanente” no qual tombou a Rússia desde 1914! (56)  E são inúmeros outros os autores conservadores e anti-comunistas de carteirinha usados como fontes “confiáveis”!

Escondendo as fontes

A bibliografia usada por Losurdo é limitada quantitativamente e desqualificada qualitativamente. E não é só isso. A citação no roda-pé das páginas limitada ao sobrenome do autor, ao ano de publicação e à página, sem o título da publicação, ajuda a esconder a pobreza bibliográfica. E leva ao engano. Muitos leitores ao verem Isaac Deutscher citado no pé de página foram induzidos a crer que se tratava dos Profetas, sua trilogia canônica, como possivelmente no caso do meu citado crítico no Facebook, apenas citado. Raros leitores consultam a bibliografia final, para se informarem das fontes utilizadas.

Na historiografia científica, há exigências epistemológicas que determinam que um autor -pouco importando sua orientação política- é um pesquisador sério ou um trapalhão.  Brasil: de Getúlio a Castelo é livro de consulta obrigatória para os que estudam o período. E Thomas Skidmore não é certamente um  esquerdista. (57) Losurdo serve-se de estranho “método dedutivo”. Apoiado em fatos históricos [reais ou não] deduz logicamente, sem comprovação objetiva, fatos, sucessos, acontecimentos. Lenin propôs o derrotismo revolucionário em 1914, logo, é crível que Trotsky tenha proposto o mesmo , em 1941, quando da invasão nazista da Rússia. (58) Dedução literalmente de botequim! A reflexão sobre a eventual culpabilidade dos “médicos judeus”, que escaparam do tiro na nuca devido à morte de Stalin é dose de leão! A CIA queria matar Stalin. Para tal, devia se servir de gente próxima a ele. Gente “suscetíveis” de ser recrutada. Quem melhor que os médicos soviéticos de origem judaica, próximos a Stalin! E cita diplomata ocidental que cria no complô! A proposta da contribuição de Trotsky ao anti-semitismo na URSS também é de doer! (59)

Confundindo tudo

Há frequente amálgama de fatos históricos, não raro, anacrônicos. Losurdo defende a calúnia estalinista sobre Blumkin, o socialista-revolucionário que justiçou o embaixador alemão, em julho de 1918, para relançar a guerra contra a Alemanha. E, a seguir, propõe: “Mais tarde [quando?] vimos Blumkin participar da conspiração [qual?] dirigida por Trotski. [qual?]”  A apresentação  desconexa dos fatos sugere que Blumkin -ou outro trotsquista- atentariam contra Stálin, às portas da II Guerra, por ordem de Trotsky. Parte da apresentação confusa desses e de outros sucessos se deve ao pouco conhecimento de Losurdo sobre os fatos que relata.  Vejamos os fatos reais que envolveram Yakov Blumkin. Ele juntou-se aos socialistas revolucionários com dezesseis anos, participou da Revolução de 1917 e integrou o serviço secreto soviético. Em 6 de julho de 1918, por ordem da direção de seu partido, executou o embaixador alemão. 

Para Losurdo, que, além de mentiroso é desinformado, Blumkin “consegue fugir” à prisão, após o atentado. A história é outra e de conhecimento geral. (61) Preso e interpelado por Trotsky, Blumkin, com 20 anos, renegou seu ato e pediu incorporação disciplinar ao  Exército Vermelho. Após forjarem sua execução, ele desempenhou missões atrás das linhas contra-revolucionárias e outras ações lendárias, sendo aceito no Partido Bolchevique e destacado para a contra-espionagem. Blumkin era homem de ação, pouco político. Comunicou imediatamente aos superiores que aderira à Oposição de Esquerda! Em 1929, em viagem ao exterior, encontrou-se com Trotsky. Na volta, foi preso e executado, após escrever relato de sua vida gloriosa.  Blumkin foi o primeiro bolchevique executado – à margem da lei. Após ele, outros oficiais bolcheviques endurecidos da GPU foram assassinados, para que a instituição se tornasse o braço dócil dos crimes estalinistas.  

Os absurdos históricos de Losurdo pululam faceiros no livro, como a definição de Kerensky, diversas vezes, como menchevique!  (62) Sinceramente, mereceria confiança um autor que falando do Brasil apresentasse o Zé Dirceu como militante do PSDB, ou o Moro como jurista democrático? Entre tantas sandices, há uma estranha proposição de união final de Bukharin com Trotsky,  de arrepiar os cabelos! “Assim, o ex-duúnivro se dirige pelo caminho que o levará a unir-se a Trotski.” (63)Quando Stálin rompe com Bukharin, Trotsky se encontrava no exílio. E  o construtor do Exército Vermelho sempre deixara claro que poderia, in extremis, aliar-se com Stálin, representante da burocracia, contra Bukharin, representante da restauração capitalista,  e jamais com Bukharin contra Stalin.

A “reabilitação” de Stalin e do estalinismo constitui revisão bibliográfica contorcionista, superficial e a-crítica, apoiada em fontes contaminadas; em suposições, deduções e ilações subjetivas, tudo  para avançar proposições arbitrárias. O autor não comprova suas propostas nos fatos, literalmente talhando-os à dimensão de suas elucubrações. Trata-se de ensaio grotesco de objetivos ideológicos.

IV – Para onde apontam Losurdo e o Neo-Estalinismo?

Losurdo teve sucesso, compreensível, como veremos, entre os tupiniquins desse lado do Atlântico. Mas o que ele -e o neo-estalinismo- realmente querem? As propostas do italiano, já plenamente desenvolvidas em Stalin, estão também apresentadas em O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. (64) Ele exige o abandono das visões “universalistas”, “utópicas”, “plebéias”, etc., do “Marxismo Ocidental”, fixado na “centralidade” da classe trabalhadora como demiurga da emancipação social, como vimos. Propõe que sigamos a refundação do marxismo executada por Stalin, concentrando nossos  esforços na luta pela defesa da independência nacional, através do desenvolvimento das “forças produtivas materiais”, para protegermos nossa nação das forças exteriores, no presente caso, o imperialismo. E, para tal, é necessário relegar as reivindicações do mundo do trabalho, plebéias, utópicas, niveladoras, etc., diante da  necessidade maior da nação.   Nação, nação, nação.

A proposta de Domenico Losurdo se coaduna, sem grandes traumas, com a cartilha dos generais que defenestraram os liberais-castelistas, em 1967, e empreenderam ambicioso plano de desenvolvimento das “forças produtivas materiais”,  para a construção de um “Brasil Grande”, capaz de defrontar-se a qualquer nação. Para tal, estavam se preparando para um primeiro teste atômico, sob o horror dos USA, quando o projeto de desenvolvimento através do endividamento internacional, das exportações e do escorcho dos trabalhadores entrou em crise. Mutadis Mutandis, pouco importaria se a “ditadura desenvolvimentista”, liderada  por Stalin na URSS, fosse dirigida, no Brasil, por sucessões de generais, caso não tivesse falhado, pondo fim ao “Milagre Econômico”. (65) Não é o que está ocorrendo na China?

Portanto, para fortalecermos as forças produtivas nacionais, a fim de defender a nação das ofensivas externes, temos que moderar as reivindicações operárias e sociais. Nos dias de hoje, contra Bolsonaro e o “fascismo”, temos que realizar as mais amplas alianças sociais e políticas em defesa da nação. E nada de reivindicações plebéias que afastem os patriotas conservadores! Nessa viagem ao futuro, voltamos ao passado, aos tempos do imediato pós-Segunda Guerra, quando da ilusão estalinista da coexistência pacífica. Naquele então, os partidos comunistas mundiais chamaram os trabalhadores a “apertar o cinto”, pois o lucro do patrão seria sua maior vitória, já que fortaleceria a nação. 

A historiadora Anita Leocádia Prestes pronuncia-se em forma dura sobre aqueles tempos, em trabalho magnífico. “Para o êxito da ‘União Nacional’, os comunistas contavam com a ‘colaboração sincera e leal de todos os verdadeiros patriotas’, destacando que, ‘dada a estrutura econômica’ do país, [eles] estavam interessados na solução dos problemas” enfrentados tanto pelo “proletariado, que ‘sofre muito menos da exploração capitalista do que da insuficiência do desenvolvimento capitalista’, quanto pela “burguesia nacional progressista”. (66)  Então, o estalinismo acenava para o socialismo no horizonte distante. Para Losurdo e os neo-estalinistas, a nação é o objetivo tático e estratégico dos novos tempos. Nação. Nação. Nação.

As Raízes do Neo-Estalinismo 

Analistas simplistas apontam o avanço do neo-estalinismo como devido à crise do marxismo-revolucionário  [trotsquismo] no Brasil e no mundo. O novo paradigma neo-estalinista, reluzente, surgiria substituindo-se ao velho,  trotsquista, estropiado, incapaz de interpretar, ontem e hoje, as necessidades históricas. Críticos ainda mais simplórios apresentam como comprovação do debacle trotsquista ele não ter jamais realizado a revolução vitoriosa – esquecem a Revolução de 1917! A história da IV Internacional e os sucessos históricos não podem ser analisados com o método da “receita de pudim” – se funcionou, ótimo. Se não funcionou, vai pro lixo. A IV Internacional nasceu quando as Revoluções Alemã e Espanhola eram derrotadas. 

No após-guerra, o estalinismo serviu-se dos louros da vitória soviética sobre o fascismo para estrangular a revolução na Grécia, na Itália e expandir a ordem parasitária no leste europeu. Ordem burocrático-parasitária que levou, como previsto, à hecatombe da dissolução da URSS, em 1991, toda ela de responsabilidade da burocracia estalinista e pós-estalinista. Aquela derrota histórica foi o portal de Era Contra-Revolucionária, na qual ainda vivemos, caracterizada pela perda de confiança dos trabalhadores em seu programa. Desde 1961, não houve revolução socialista que se consolidasse no Globo, enquanto a restauração capitalista se espraiava sobre as conquistas operárias obtidas desde 1917. Esse é o pano de fundo das dificuldades de todos os comunistas revolucionários, incluídos os trotsquistas.

Lutamos hoje nas piores condições, contra um capitalismo em estagio senil, que já chafurda na barbárie. O sucesso galopante de um farsante como Losurdo e o “revival”  de patético neo-estalinismo , vinho velho e azedo em barril novo e furado, devem-se ao dramático retrocesso da centralidade política e ideológica dos trabalhadores no mundo. No Brasil, é imensa a crise geral do mundo do trabalho. Vivemos metamorfose  de nossa sociedade e de suas instituições, de nação semi-colonial a uma situação “neo-colonial globalizada”, onde nossas próprias classes dominantes perdem as rédeas das decisões políticas e econômicas centrais para o imperialismo. (67) Tudo no contexto de esquerda parlamentar colaboracionista que contribui objetiva e subjetivamente para a acelerada institucionalização da nova ordem, sob a direção nacional da alta oficialidade das forças armadas.  A fragilidade do mondo do trabalho facilita operações liquidacionistas. O neo-stalinismo constitui ataque de viés burguês -e não mais burocrático- ao coração das idéias de Marx, Engels, Lenin, Rosa, Trotsky, para citar os mais cintilantes pensadores do mundo do trabalho. O neo-estalinismo é a tropa inimiga avançando sobre nossas trincheiras.

Por que não critiquei Losurdo-Pinóquio quando ainda vivia?

A inesperada repercussão das minhas breves postagens no Facebook motivaram não poucas criticas ácidas. Entre elas, a que teria sido “desejável” ou que “deveria” ter criticado Losurdo enquanto vivia, sugerindo que não o fiz por temor ao autor trapalhão. Essa proposta foi abraçada publicamente por dois camaradas do PCB, que estimo, apesar de suas simpatia ao neo-estalinismo. Afinal, ninguém é perfeito no mundo! Sou, portanto, obrigado a essas considerações conclusivas, que me desagradam profundamente, já que pessoais.  Até poucos meses, Losurdo ficou fora de meu “radar”, já que estive envolvido na publicação, em português e em espanhol, de um meu livro, de caráter urgente. Essa não foi a razão principal. Por razões familiares, viajo frequentemente à Itália, onde nenhum companheiro jamais se referiu a Losurdo.

Em 2018, convidaram-me a militar em célula do PCB de Porto Alegre, de “veteranos”, onde estive por nove agradáveis meses. Uma querida camarada começou a propor questões , para mim, no mínimo, desconexas: a responsabilidade dos trotsquistas na queda da URSS, em 1991; a importância do “Grande Terror” e da liquidação física da Oposição para impedir a  “escravização” da URSS; a veracidade da conspiração dos médicos judeus, etc. A tudo que dizia, a camarada me repetia: – Lê Losurdo, lê Losurdo! Era quase um mantra! A seguir, um jovem militante da UJC me falou do “revival” neo-estalinista na organização. Em 18 de novembro de 2019, devido à impugnação de artigo de YouTuber neo-estalinista, ligado ao PCB, publiquei post no Facebook  propondo as razões gerais  “Por que não dialog[aria] com estalinistas” convencidos.  A repercussão da nota reforçou-me a consciência da importância  do fenômeno. Encomendei os livros ao meu livreiro porto-alegrense, que me embromou por um século. Se ele não fosse trotsquista “raiz”, proporia “sabotagem” neo-estalinista! 

Chutando o pau da barraca

Nada do dito é desculpa. Sou militante marxista-revolucionário há 52 anos, e professor universitário há apenas 42. Jamais participei de panelinhas acadêmicas ou deixei de criticar autor conservador apoiado em fortes forças institucionais, de esquerda ou direita. Poucos anos após a Queda do Muro,  em conferência à SBPC, ataquei as visões do “fim da história” e propus a dissolução da URSS como “maior drama vivido até hoje pela humanidade”. Concluí propondo: “O peso da derrota é grande, mas maior é a necessidade da vitória. O século 20 começou com uma grande vitória dos trabalhadores e terminou sob a hegemonia do capital. Cabe aos trabalhadores e a todos os homens de bem construírem  […] a possibilidade de um futuro para o gênero humano.” Quase fui linchado!  (68) 

Creio que fim a primeira crítica dura ao livro A ditadura envergonhada, de Élio Gaspari, conhecido jornalista conservador que merece ser lido, ao contrário de Losurdo. (69)  Critiquei também em forma pioneira o livro Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai, do historiador Francisco Doratioto, santificado pela grande imprensa e desde então a palavra semi-oficial do Itamaraty e do Exército sobre aqueles sucesso, questão praticamente de Estado no Brasil.  (70)  Há décadas, defendo, hoje quase isolado, interpretação marxista da escravidão brasileira, a partir da resistência e do trabalho. (71) Mesmo após o desbunde da esquerda devido à pressão das lideranças negras de classe média, fora exceções como o Movimento Negro Socialista, sigo me opondo às propostas de “cotas”, “descriminação positiva”, etc. introduzidos na Brasil pelo imperialismo.  (72) 

Já me acusaram de gostar e de procurar a polêmica. Entretanto, só entro nelas quando considero ser meu dever como militante marxista-revolucionário e ninguém ainda o fez. Adoraria ter debatido com Losurdo “olho no olho”. Porém, registro aqui que estou aberto para debater com losurdistas e neo-estalinistas, de corpo-presente, onde e como quiserem. Enquanto, é lógico, ainda estou vivo!

 

* Mário Maestri, 71,  porto-alegrense, historiador. E-mail: [email protected]

NOTAS

1 -LOSURDO, D. Stalin: história crítica de uma legenda negra. Rio de Janeiro: Revan, 2019.
2 – Redação. 21.07.2019. A que serve retomar a obra de Domenico Losurdo? https://www.esquerdadiario.com.br/A-que-serve-retomar-a-obra-de-Domenico-Losurdo. Acessado em 9.01.2020.
3 – LOPES, Carlos. União Soviética: Algumas notas sobre Domenico Losurdo. Hora do Povo, 13/03/2019. https://vermelho.org.br/2019/03/13/uniao-sovietica-algumas-notas-sobre-domenico-losurdo/ Acessado 1301.2020.
4 – LOSURDO, D. Stalin: história crítica de uma legenda negra. Rio de Janeiro: Revan, 2019. p. 375, 365.
5- A.C. Mazzeo. “Não de acordo ….. camarada … a crítica tem que ser qualificada …essa não posso respeitar”. Comentário a minha postagem “Domenico Losurdo, um farsante de sucesso na Terra dos Papagaios”. Facebook, 26.12.2019.
6 – TROTSKY, L. La Révolution trahie. (1936) De la révolution. Paris: Minuit, 1963. p. 443-628; DEUTSCHER, Isaac. A Rússia depois de Stalin. Rio de Janeiro: Agir, 1956; D’ANGELO, Sergio; PALADINI, Leo. Lo sfida di Krusciov: problemi economici e politici dell’URSS dopo Stalin. Milano: Feltrinelli, 1960.
7 – MARTENS, Ludo. Stalin: um novo olhar. Rio de Janeiro: Revan, 2003. [1ª reimpressão, 2015]
8 – LOSURDO, Stalin. Ob.cit. p. 165.
9 – Id.ib., p. 23, 30, 44.
10 – Id.ib., p. 88, 198.
11 – Id.ib. p. 89.
12 – Id.ib. p. 85.
13 – Id.ib. p. 86-7, 241.
14 – LOSURDO. Stalin. p.128.
15 – Id.ib. p. 179.
16 – Id.ib. p. 123.
17 – Id.ib. p. 56, 57, 60 et passim.
18 – TROCKIJ, Lev. 1905. Firenze: Nuova Italia, 1999.
19 – LOSURDO. Stalin. p. 59, 64; DAY, Richard B. Trotskij e Stalin: Lo scontro sull´economia. Roma: Riuniti, 1979. p. 131 et seq.
20 – LOSURDO. Stalin. p. 48, 50,122,143, 220
21 – Id.ib. p.114
22 – Id.ib.p. 122.
23 – Id.ib. p. 66, 69.
24 – Id.ib. p. 59; KOLONTAI, A. A oposição operária: 1920-21. 2 ed. Lisboa: Afrontamento 1977.
25 – id.ib. p.58 59
26 – LOSURDO. Stalin. p. 166.
27 – Id.ib.p, 120.
28 – Id.ib. p. 142.
29 – Id.ib. p. 174
30 – Id.ib. p. 123.
31 – Id.ib. p. 96.
32 – LOSURDO. Stalin. p. 75-9.
33 – TROTSKY. Cours nouveau. Paris: Minuit, 1963.
34 – PROUÉ, Pierre.Trotsky. Paris: Fayard, 1988.
35 – BUCHARIN, STALIN, TROTSKIJ, ZINOVJEV. La “Rivoluzione permanente” e il socialismo in un paese solo. I documenti de uno scontro d’idee decisivo per la rivoluzione sovietica e per la storia del movimento operaio internazionale. Roma: Riuniti, 1973.
36 – DAY, Richard B. Trotskij e Stalin: Lo scontro sull´economia. Roma: Riuniti, 1979; PREOBRAJENSKY, Eugênio. A nova econômica. Rio de janeiro: Paz e terra, 1979; BUKHARIN, N. PREOBRAZENSKIJ, E. L’accunulazione socialista: a cura de Lisa Foa. Roma: Riuniti, 1973; PREOBRAZENSY. A nova economia.
37 – Broué, P. Os Trotskistas na União Soviética (1929-1938). I e II. Esquerda Marxista. https://www.marxismo.org.br/os-trotskistas-na-uniao-sovietica-1929-1938/; https://www.marxismo.org.br/os-trotskistas-na-uniao-sovietica-1929-1938-2a-parte/ Acessado em 13.01.2020.
38 – CILIGA, A. Au Pays du Grand Mensonge. Problèmes et documents. [1937] Paris: Gallimard, 1938. 252 p. Há edição em italiano, da Jaca Book, de 2006, que necessita ser consultada com cuidado.
39 – DEUTSCHER, I. El profeta desterrado. 1929-1940. México: Era, 1988.
40 – LOSURDO. Stalin. p. 77.
41 – Id.ib. p, 79.
42 – Id.ob. p. 91-5; MARIE, Jean-Jacques. Stálin. São Paulo: Babel, 2011. p. 470-77.
43 – Id.ib. p. 93.
44- Id.ib. 95.
45 – Id.ib. 85.
46 – MARIE. Stálin. Ob.cit. p. 470-77.
47 – Facebook Mário Maestri. Comentário à postagem “Domenico Losurdo, um farsante de sucesso na Terra dos Papagaios”. 26 de dezembro de 2019 às 15:05 ·
48 – BROUÉ, Pierre. Révolution en Allemagne.(1917- 1923). France: Juliard, 1964.
49 – LOSURDO. Stalin. p. 123.
50 – LOPES, Carlos. União Soviética: Algumas notas sobre Domenico Losurdo. Hora do Povo, 13/03/2019. https://vermelho.org.br/2019/03/13/uniao-sovietica-algumas-notas-sobre-domenico-losurdo/
51 – COURTOIS, Stephane; WERTH, Nicolas; PANNÉ, Jean-Louis. PACZKOWSKI, Andrzej. BARTOSEK, Krel. MARGOLIM, Jean-Louis. Le livre noir du communisme : crimes, terror, répression. Paris : Lafont Robert, 1997. 846 p.
52 – LOSURDO. Stalin. p. 23.
53 – Id.ib. p. 231.
54 – Id.ib. p. 152-7.
55 – Id.ib. p.107.
56 – id.ib. p. 131, 277.
57 – SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-1964). Rio de Janeiro: Saga, 1969.
58 – LOSURDO. p. 87-8.
59 – id.ib. p. 238, 220
60 – id.ib. p.79, 87.
61 – Id.ib. p. 79.
62 – LOPES, Carlos. União Soviética […]. Ob.cit.
63 – LOSURDO. p. Id.ib. p. 96.
64 – Id. O marxismo ocidental […]. Ob.cit.
65 – Id.ib. p, 174.
66 – PRESTES, A.L. Prestes. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 258.
67 – MAESTRI, Mário. Revolução e contra-revolução no Brasil: 1530-2020. 2 ed. Porto Alegre: FCM Editora, 2019. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil
68 – MAESTRI, MÁRIO. O maior drama vivido até hoje pela humanidade. Conferência apresentada na 51a. Reunião Anual da SBPC-PUCRS, Porto Alegre, 16.07.1999, no Simpósio “Fim das Utopias: Esquerda Desarmada”.
69 – Idem.& Mário Augusto Jakobskind. A historiografia envergonhada. 14/05/2003 http://observatoriodaimprensa.com.br/primeiras-edicoes/a-historiografia-envergonhada/ [Ofereci parceria nessa resenha a M.A.Jakobskind.]
70 – Id.« A Guerra Contra o Paraguai: História e Historiografia: Da instauração à restauração historiográfica [1871-2002] », Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Colloques, mis en ligne le 27 mars 2009, consulté le 13 janvier 2020. URL : http://journals.openedition.org/nuevomundo/55579
71 – Id. Silêncio, Marginalização, Superação e Restauração do cativo negro na historiografia brasileira. Escravidão negra do Piauí e temas conexos. Teresina: EdUFPi, 2018.
Silêncio_Marginalização_Superação_e_Restauração_o_cativo_negro_na_historiografia_brasileira
72 – Id. Abdias do Nascimento: Quilombola ou capitão-do-mato? Ensaios de interpretação marxista sobre a política racialista para o Brasil. 1. ed. Porto Alegre; Passo Fundo: fCM Editora – PPGH UPF, 2018. https://www.academia.edu/37464734/Abdias_do_Nascimento_Quilombola_ou_Capitão-do-Mato_livro_