Pular para o conteúdo
BRASIL

Ainda estamos vivos: um diálogo com Safatle

Gabriel Santos, de Maceió (AL)
Frida Khalo

Detalhe da pintura Menina com Máscara da Morte (Niña con Máscara de Calavera), de 1938

Recentemente um artigo de Vladimir Safatle publicado em sua coluna no El Pais decretou a morte da esquerda brasileira, por mais que para o autor a esquerda se recuse a acreditar que esteja morta. 

Safatle, concorde-se com ele ou não, alcançou o posto de um dos intelectuais mais importantes da esquerda radical e anticapitalista brasileira. Suas reflexões, artigos e apontamentos, em especial após Junho de 2013, são importantes reflexões para nosso campo político e para aqueles que se propõem a superação do “atual estado das coisas”. Porém, Safatle tem se caracterizado também pela suas leituras pessimistas da realidade, que se confirmaram erradas em muitos casos. O mesmo chegou a afirmar que não teríamos eleições em 2018 e que um novo Golpe de Estado fecharia o regime. Em seu último texto: “Como a esquerda brasileira morreu”, ele defende que a partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos e intelectuais da esquerda brasileira, não conseguem pautar os debates nacionais, apresentar projetos para o País, é incapaz de resistir aos ataques do governo e de apresentar um outro horizonte estratégico. Além disso, Safatle, apresenta a ideia de que políticas de colaboração estão no DNA da esquerda brasileira, desde sua origem com o PCB. O autor emprega também o conceito de populismo de esquerda, algo confuso e pouco definido sobre o que exatamente ele seria, mas que para Safatle foi a forma que a esquerda atual desde Jango.

Minha sensação ao ler o texto do professor uspiano foi de que já tinha escutado isso antes. Qualquer ativista social já deve ter visto ou ouvido, em especial nas redes sociais, que “a esquerda não faz nada”, “está paralisada diante do governo Bolsonaro”, entre outras coisas. O que me surpreendeu, além dos frágeis e fracos argumentos de Safatle, foi justamente quando ele tentou historicizar e conceituar a atuação da esquerda, e fez uma verdadeira confusão.

É interessante e, irônico, que este artigo surge em um momento que por todo o Brasil vemos um forte movimento grevista feito pelos petroleiros, que chega em seu décimo primeiro dia, se nacionaliza e incomoda cada vez mais a Justiça, o governo Bolsonaro e aqueles que defendem a privatização de nossas riquezas nacionais.

As esquerdas no Brasil

Voltando ao texto, Safatle parte de buscar entender como chegamos nessa situação, suas críticas a oposição ao governo Bolsonaro são válidas e valem reflexão. Apesar disso o primeiro incômodo que o texto me causa e o primeiro erro que é possível apontar nele, é o fato do filósofo utilizar a categoria de esquerda de forma universal, geral e abstrata. Não é segredo para ninguém que acompanha e tem proximidade com os movimentos sociais que no Brasil existem diversas esquerdas. Esse campo político que se encontramos é composto no plural e na diversidade. Existem diferenças teóricas, estratégicas, na forma de atuação, de pensar e ver o mundo, de objetivos finais, e várias outras coisas. Se as esquerdas são diferentes, elas precisam ser criticadas e apontadas como tal, se não a crítica e o debate se torna confuso.

Existe uma diferença entre o PT e o PSOL, entre o PSTU e o PCdoB, entre o PCO e PCB, só para citar exemplos de partidos políticos. Da mesma que existem diferenças entre o Afronte e a UJS, só para apontar um outro exemplo, que seria a atuação nos movimentos sociais.

Afinal, qual esquerda que Safatle crítica? 

Em nosso país, durante as últimas quatro décadas, o Partido dos Trabalhadores foi força majoritária deste vasto campo. A estratégia da direção do PT foi vista como a ser seguida e orientou a atuação de milhares de ativistas no país. Foi apostado em um Programa Democrático Popular como estratégia, e naquilo que é conhecido como Frente Popular para governar, ou seja, na aliança com setores da burguesia e com partidos burgueses. O resultado final, como o próprio Safatle diz, foi que a primeira experiência de governo de esquerda no Brasil terminou em um Golpe.

As críticas que o autor faz a política de conciliação são válidas e justas. A estratégia que o PT utilizou para chegar ao governo e governar acabaram de forma trágica. É preciso superá-las para conseguirmos construir um novo mundo e uma alternativa programática e estratégica ao governo Bolsonaro. 

No momento que Safatle não distingue o programa frente-populista dos outros programas existentes no campo da esquerda, e trata todos como igual, passa a impressão de que todas correntes e partidos defendem o mesmo projeto, e isto, além um erro e de ser injusto com aqueles que passaram anos sendo oposição de esquerda ao PT, leva a conclusão que ele chega no fim: estamos mortos. Afinal se não existiu nenhuma tentativa de se construir algo diferente do que deu errado, e ninguém se apresenta para tal tarefa, não existe alternativa.  

Nadando contra a corrente

Apesar do hegemonismo do PT, houveram aqueles que ousaram nadar contra a corrente. Isto não é coisa menor. Porque, apesar de alguns erros cometidos, foram as críticas ao programa democrático popular que permitiu a elaboração de um programa de esquerda alternativo e radical. Existem alternativas e projetos econômicos de esquerda que se diferenciam da cartilha de austeridade fiscal e exportação de commodities. Existem programas anticapitalistas que propõe uma ruptura com o atual sistema e isto só o possível pelo fato de se ter “esquerdas” e elas buscarem se construir por fora do partido hegemônico e em crítica ao programa deste.

Um dos momentos incômodos é quando Safatle fala sobre estados e municípios que a esquerda governa e que repetem políticas neoliberais e de arrocho fiscal. É verdade que nos estados que PT e PCdoB governam foram aplicadas reformas da previdência contra servidores públicos e tem tidos políticas econômicas semelhantes a de Guedes. Mas ao mesmo tempo, nesses estados, houve setores da própria esquerda que criticaram e foram contrários tais medidas e apresentaram projetos alternativos. Não apontar isto é armar uma derrota no futuro. A derrota do presente aconteceu, setores da esquerda (setores majoritários) aplicaram políticas neoliberais, mas houve quem resistiu e buscou diferente, e assim tenta organizar a vitória do futuro. Ao não mostrar isto nós perdemos hoje e perderemos amanhã, pois não existe alternativa.

Quando Rui Costa e o PT na Bahia cortaram verbas da educação no estado, um grande greve foi organizada contra tais medidas. Da mesma forma, quando Rui aplicou sua reforma da Previdência, existiu resistência e denúncias. Organizações e coletivos como o PSOL, o Afronte, RUA, UJC, foram linhas de frente. O mesmo ocorreu no Piauí, Rio Grande do Norte, entre outros locais. 

Não houve derrota histórica

Em nossa opinião o  grande erro político do texto de Safatle é a ideia de que a esquerda brasileira morreu. Esta ideia é aquilo que se assemelha da afirmação de que sofremos uma derrota histórica da classe trabalhadora.

É bem verdade que a nossa classe vem de inúmeras derrotas seguidas, seria algo como um lutador que sofreu uma série de socos na luta se encontrando baqueado nas cordas. A situação é reacionária, mas afirmar que houve uma derrota histórica, ou que a esquerda está morta, é dizer que a relação de forças entre as classes foi alterada de tamanha forma que ela se torna impossível de mudar por um longo período de tempo. É dizer que não existe entre todas as diversidades da esquerda aqueles que se propõem a fazer diferente do projeto de conciliação derrotado.

Uma derrota histórica é algo muito mais grave que uma derrota eleitoral, ou do que uma derrota como foi a aprovação da reforma da Previdência. Uma derrota histórica é o anúncio de que toda uma geração de lutadores sociais não terá a esperança e a possibilidade de mudar a situação atual. Será necessário a espera de anos e décadas para que surja uma nova alternativa. Afirmar que ela ocorreu é dizer que precisamos mudar tudo que estamos fazendo. Se a esquerda brasileira morreu, precisamos por fim a tudo que estamos construindo e apostando. 

Mas se ainda não houve uma derrota histórica, é justamente porque existem setores da classe que se mobilizam, querem lutar e apostam em alternativas. O fato de não ter ocorrido uma derrota histórica explica o crescimento do PSOL, assim como os gigantescos atos de Tsunami na Educação que botaram centenas de milhares de pessoas na rua, e agora a greve dos petroleiros mostra que apesar de machucada e sofrida, a nossa classe ainda não está morta. 

A existência de alternativas que buscaram se construir por fora do projeto democrático popular do PT, são acúmulos sociais e políticos importantes que impediram que a morte da esquerda chegasse.

Ainda estamos vivos, mas e agora?

O fato de não ocorrido a morte da esquerda, ou uma derrota histórica, não quer dizer que ela não possa vir acontecer no futuro próximo. Impedir que a mesma ocorra é uma grande tarefa dos ativistas sociais hoje. 

É preciso desde já que as forças de esquerda debatam qual a orientação estratégica e qual programa para derrotar Bolsonaro. Os rumos do país passam por qual tática sair vitoriosa e for aplicada pela maioria das correntes. 

Existem aqueles que apostam em uma estratégia reformista-eleitoral, que buscam repetir a fórmula usada pelo PT para chegar ao governo, atraindo setores de centro e de direita moderada para formar um projeto de país. É justamente está fórmula crítica com razão por Safatle, e que se repetida levará todo o conjunto da esquerda brasileira para a forca. 

De lado aposto, existe uma alternativa que busca construir uma alternativa com as forças que representam os oprimidos e explorados com um programa mínimo que responda às demandas do povo brasileira contra o projeto da extrema direita. Ou seja, é preciso apostar na tática da Frente Única para disputar a consciência da classe trabalhadora e ganhar pessoas cada vez mais pessoas para a ideia de derrotar o governo e de construir um governo que seja feito sem as velhas alianças com a direita e setores da burguesia.

Então junto da tarefa da Frente Única existe uma imensamente complicada, que é a de construir um programa radical, anticapitalista, e que coloque a transformação social como alternativa. Este programa precisa ser encabeçado por uma nova alternativa política, pois, aquela que foi majoritária nos últimos 40 anos dentro de nosso campo não se propõe a tal e ainda mantém velhas práticas e políticas que nos armam para a derrota.

É preciso e possível semear desde já o florescer de uma novo projeto para esquerda que esteja ligada aos movimentos sociais e ao povo brasileiro. E só podemos fazer isto porque setores deste vasto campo que é a esquerda brasileira se mantém vivos e afirmaram há muitos anos que as políticas majoritárias de PT e PCdoB estavam erradas.