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Colunas

Vidas secas no Rio de Janeiro

Divulgação / Cedae

Estação de Guandu

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“E qualquer desatenção – faça não – pode ser a gota d’água”
(Chico Buarque)

Água não se nega nem ao inimigo, diz o provérbio. Ao inimigo, é verdade, pode ser que ela não seja negada, a depender da ética do oponente. Ao morador do Rio de Janeiro, no entanto, em especial aos mais pobres, a água é, sim, negada diariamente desde o começo do ano, talvez porque, para o ultraneoliberalismo neofascista no poder, sejam justamente os pobres moradores do Estado (em especial, os moradores pobres) os seus piores inimigos, para os quais o preceito ético do provérbio não deve ser aplicado. “Que bebam água Perrier”, deve mentalmente sentenciar o governador, no melhor estilo Maria Antonieta, a que acabou perdendo a cabeça.

Guerra é guerra, devem pensar Witzel, seus snipers que miram nas cabecinhas, seus aliados políticos obscuros, sua lumpemburguesia miliciana e seus incrédulos pastores, os quais batizam seus fiéis em rios límpidos, mas que, como gestores públicos da água, nos oferecem esgoto ou detergente para beber. Geosmina, Escherichia coli ou Limpol. O cardápio varia, mas o objetivo não: privatizar a água, de preferência a preço de banana, bananas que somos e não reagimos.

Entregando a água, o fundamento primeiro da nossa existência, ao Deus-Mercado, seus adoradores no poder não farão senão, inclementes, aumentar o deserto que se tornou nossas vidas. Vidas secas. Água por aqui, só a da chuva, e nesses tempos caóticos, qualquer chuva é suficiente para interditar a cidade e desabrigar gente humilde, gente que em sua maioria confiou seu voto a um pastor que prometeu delas cuidar. Protegido do dilúvio na arca dos palacianos, acompanhado por gente de origem e fortuna duvidosas – para resgatarmos as palavras de Marx -, o pastor aguarda tranquilamente que suas ovelhas, encharcadas e sem pastos, o sigam novamente em outubro, na crença de que, desta vez, nada lhes faltará.

Enquanto isso, enquanto o capital trabalha, o trabalho, ou melhor, a esquerda, seus sindicatos e parlamentares, parece estar de férias ou, quem sabe, talvez esteja aguardando o carnaval chegar, ou as águas de março caírem, para começar a lutar. Os direitos de beber água potável e de que as águas do céu não coloquem casas e vidas por água abaixo talvez não sejam assim tão urgentes, ou talvez, de tão abrangentes, de tão fundamentais, de tão gerais, já não falem especificamente nem para categorias sindicalizadas, que costumam eleger suas direções sindicais com pautas econômico-corporativas, nem para segmentos eleitorais específicos, os quais costumam garantir nas urnas mandatos proporcionais com pautas identitárias específicas. Enredada numa lógica de reprodução de cargos e gabinetes, parte da nossa esquerda sindical e da nossa esquerda parlamentar, com a boca seca mas com os olhos no calendário eleitoral do sindicato ou do município (como se tudo estivesse normal), parece inerme, talvez resignada diante da reacionária situação atual. Ignorando ou mesmo rejeitando um tal de Ilitich Ulianov, nossa esquerda, sem saber o que fazer, movida pelo economicismo sindical ou pelo imediatismo eleitoral, abdica de organizar e politizar a luta por uma questão tão vital como a água. Inegavelmente, trata-se de um problema que objetivamente atinge o conjunto de uma classe trabalhadora que, por motivos vários, incluindo a própria prática de parte da esquerda sindical e parlamentar, já não se vê como classe, já não reconhece sua dimensão e forças oceânicas, subjetivamente fragmentada em múltiplos grupos de específicos pingos d’água que está.

Até lá, até a gente acordar, o ultraneoliberalismo neofascista no Rio de Janeiro vai vencendo de lavada, com ou sem água.

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