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BRASIL

Cinco anos da Chacina do Cabula: o machado esquece, mas a árvore recorda

Manoel Faustino, de Salvador (BA)
Lena Azevedo / Direito Global

Ato público, um ano após a chacina.

No último final de semana dois casos flagrantes de abuso de autoridade e violência policial chamaram a atenção da sociedade baiana. Na TV, no rádio e na internet, a imprensa repercute  uma abordagem onde um policial desfere socos e pontapés num jovem negro de 16 anos. No outro caso, na festa de Iemanjá, uma guarnição da PM agride um grupo de mulheres, chegando um PM a dor um soco no rosto de uma delas.

Graças aos vídeos gravados pelas testemunhas (que agora têm recebido ameaças anônimas), o que era pra ficar entregue a invisibilidade ganhou as redes e expôs, mais uma vez, à toda a sociedade como são truculentas as ações policiais. Rapidamente toda linha de comando da PM e o próprio governador Rui Costa (PT) vieram a público dizer que são casos isolados, que são ações que não condizem com a conduta da instituição. Enquanto o Comandante Geral da PM Anselmo Brandão pediu desculpas às famílias, o governador anunciou que irá cobrar punição aos envolvidos.

Contudo, contrariando o Comandante Brandão e o governador petista Rui Costa, a trajetória histórica da Instituição policial militar é marcada pela repressão e por dar a negros e negras um tratamento de “classes perigosas”, aqueles para os quais o estatuto da presunção de inocência e do devido processo legal não os alcança, ficando entregues ao tribunal de rua onde o poder da farda acusa, julga e sentencia ali mesmo, e muitas vezes a morte, a população negra.

Chacina do Cabula

Em nossa história recente, um dos casos mais tristes e emblemáticos desse Tribunal de Rua foi o da Chacina do Cabula. Na madrugada de um 06 de fevereiro de 2015, dias antes do Carnaval, 12 jovens foram brutalmente assassinados por uma guarnição da PM. Nas primeiras horas uma nota oficial do Comando Militar divulgou uma informação falsa, alegando ter ocorrido confronto e apreensão de armas de grosso calibre. Diante da repercussão, essa falsa versão logo foi derrubada e a investigação acompanhada pelo ministério público revelou a dimensão e crueldade da Chacina: Foram 143 disparos, 88 certeiros, a maioria deles num ângulo que sugere que os 12 jovens assassinados, 4 deles adolescentes, estavam rendidos e foram executados.

Tamanha barbárie não constrangeu a justiça baiana, que no mesmo ano inocentou, num julgamento relâmpago, todos os nove policiais envolvidos . Graças a intervenção do Ministério Público, da Defensoria, da Anistia Internacional e do movimento negro, o julgamento foi anulado e até mesmo um pedido de federalização foi feito. No pedido do MP, endossado pelo Procurador geral da República, Rodrigo Janot, questionou-se a parcialidade com o que o caso foi tratado, a começar pelo Secretário de Segurança pública do Estado e pelo governador. O primeiro foi a público dizer que acreditava na versão dos seus policiais. Já o petista Rui Costa cunhou a sinistra frase: “Um PM com uma arma em punho é como um artilheiro em frente ao gol”.

Hoje, passados 5 anos da chacina, essa terrível ação de execução sumária segue impune. A federalização do processo foi negada, devolvendo-o para a justiça estadual. Pior, dos 9 policiais envolvidos na chacina, 8 continuam a atuar nas ruas, e um deles está na reserva. Ou seja, não houve qualquer tipo de punição, nem mesmo administrativa, continuando todos eles perfeitamente integrados ao quadro da Instituição policial.

O caso do Cabula é ilustrativo daquilo que defendem  inúmeros especialistas em segurança pública, o movimento negro e até organismos internacionais como a Anistia Internacional e a ONU; é preciso rever toda lógica sobre a qual se alicerça a política de segurança pública no Brasil. A violência, o abuso de poder e altíssima letalidade estão na gênese da Instituição policial, por isso casos como o do último domingo não são isolados, e até mesmo chacinas como a do Cabula terminam abafadas e os seus envolvidos acolhidos pela Instituição.

Durante os anos que esteve a frente do governo federal, o Partido dos Trabalhadores lamentavelmente não deu ouvidos aos apelos da comunidade negra por uma nova política de segurança pública. Pelo contrário, sob o governo Lula se estruturou a Força Nacional de segurança e um plano de segurança pública centrado no reforço da militarização. Foi também sob Lula que se instituiu a lei de drogas responsável pelo salto no hiper encarceramento negro. Na Bahia, tanto Rui Costa, quanto seu antecessor Jacques Wagner, orgulham-se de ter  reforçado a militarização. O dinheiro que nunca há para escolas e merenda, sobra pra compra de viaturas, fuzis e blindados. Desgraçadamente o PT, maior partido de esquerda do Brasil, não foi capaz de se mover um milímetro na direção do incontornável debate sobre a desmilitarização das polícias.

Agora, sob o governo Bolsonaro um verdadeiro salvo conduto para o recrudescimento da violência policial está sendo praticado. O pacote Anti-crime idealizado pelo Ministro da justiça e segurança pública Sérgio Moro, é ainda mais permissivo com as práticas de abuso de autoridade e deve favorecer um salto ainda maior da taxa de letalidade das policiais. Em 2019, no Rio de Janeiro, 1.546  pessoas morreram em ações policiais só nos 10 primeiros meses do ano. Na Bahia, só no primeiro semestre de 2019, 350 pessoas morreram em ações policiais. Com o pacote anti-preto e anti-pobre de Moro esses números devem aumentar.

A passagem dos 5 anos da Chacina do Cabula desmonta totalmente o discurso hipócrita de que os casos de violência são isolados. Revela também que tão pouco há compromisso com a correção e punição das ditas “maçãs podres ” da Corporação. Da nossa parte, esses 5 anos não fizeram com que nossos jovens caíssem no esquecimento. A luta por eles e por tantos outros segue, e pedidos de desculpas não bastam, pois são  muito pouco perto da dívida histórica que o Estado brasileiro tem com o povo negro.