Apesar dos contextos divergirem e da especificidade ser sempre importante, porque é que a barbárie manteve o seu avanço relativamente aos movimentos democráticos e de trabalhadores no mundo árabe? Quais, e por que razão, foram os pontos de viragem na derrota na região desde 2011? Qual é o estado da esquerda egípcia e dos movimentos de trabalhadores face ao ultra-liberalismo de Sisi e à sua brutalidade autoritária?
Infelizmente, tanto a esquerda quanto o movimento de trabalhadores no Egito estão em má forma. Sofreram uma derrota dolorosa – não apenas devido ao regresso brutal do Estado repressivo mas também devido às suas contradições e ilusões. A maior parte da esquerda egípcia teve uma trajetória politicamente errática, trocando de uma aliança mal concebida por outra: da Irmandade Muçulmana aos militares.
Em 2013, a maior parte da esquerda e do movimento independente de trabalhadores apoiou o golpe de Sisi com vistas muito curtas, subscrevendo a ilusão de que o exército iria fazer regressar o processo democrático aos seus eixos. Pensaram que livrar-se de Morsi e da Irmandade Islâmica, depois de um ano no poder, iria reabrir o caminho para aprofundar o processo revolucionário apesar disso ser feito pelos militares.
Parece bastante parvo mas mantinham genuinamente esta ilusão, que os militares promoveram na fase inicial pós-golpe. Os militares até cooptaram o chefe do movimento independente de trabalhadores para o seu primeiro governo pós-golpe. Este engano terrível desacreditou tanto a esquerda como o movimento independente de trabalhadores. Como resultado, a oposição de esquerda está muito enfraquecida e marginalizada hoje em dia no Egito.
Não estou a falar aqui da esquerda marxista radical, que sempre foi marginal, apesar de ter desempenhado um papel desproporcional por vezes durante o levantamento revolucionário de 2011-13. Estou a falar da esquerda mais alargada, aquela que costumava apelar a largas massas. Esta esquerda mais alargada perdeu grande parte da sua credibilidade após 2013. Esta é na verdade uma razão crucial pela qual o povo não se mobilizou massivamente contra a nova investida neoliberal. Quando não há uma alternativa credível, o povo tende assimilar o discurso do regime que diz: “somos nós ou o caos, nós ou uma tragédia do tipo da Síria. Têm de aceitar o nosso calcanhar de ferro. Será duro, mas no final de contas irão encontrar prosperidade.” Os egípcios não compram verdadeiramente esta última promessa – a prosperidade – mas ainda estão paralisados pelo medo de cair numa situação muito pior ainda do que aquela que estão a sofrer.
Ligado a tudo isto está uma outra especificidade dos processos revolucionários regionais, da qual a Síria é a mais trágica ilustração. Já tínhamos discutido uma primeira especificidade – a crise estrutural que é peculiar no mundo árabe no contexto de uma crise geral do neoliberalismo. A outra especificidade é de que esta região experienciou durante várias décadas o desenvolvimento de um corrente de oposição reaccionária, que foi promovida durante muitos anos pelos Estados Unidos a par com o seu mais antigo aliado na região, o reino saudita. Refiro-me ao fundamentalismo islâmico, claro – a todo o espectro desta corrente, cuja componente mais proeminente é a Irmandade Muçulmana e cuja franja mais radical inclui a al-Qaeda e o auto-intitulado Estado Islâmico (também conhecido como ISIS),
O fundamentalismo islâmico foi patrocinado por Washington como o principal antídoto ao comunismo e ao nacionalismo de esquerda no mundo muçulmano durante a Guerra Fria. Durante os anos 1970, os fundamentalistas islâmicos tinham luz verde de quase todos os governo árabes enquanto contrapeso à radicalização de esquerda da juventude. Com o subsequente refluxo da onda de esquerda, tornaram-se as forças de oposição mais proeminentes em alguns países, como o Egito ou a Jordânia e foram esmagados em outros como a Síria ou a Tunísia. Estavam, contudo, presentes em todos os lados.
Quando os levantamentos de 2011 começaram, os ramos da Irmandade Muçulmana aproveitaram a onda revolucionária e tentaram sequestrá-la para servir os seus próprios propósitos políticos. Eram muito mais fortes do que qualquer força de esquerda que restasse na região, muito enfraquecida pelo colapso da URSS, enquanto que os fundamentalistas gozavam de financiamento e ajuda mediática das monarquias petrolíferas do Golfo.
Como resultado disso, o que se desenvolveu na região não foi a oposição binária clássica da revolução e contra-revolução. Foi uma situação triangular na qual se tinha, por um lado, um polo progressista – aqueles grupos, partidos e redes que iniciaram os levantamentos e representaram as suas aspirações dominantes. Este polo era organizativamente fraco, exceto na Tunísia onde um movimento de trabalhadores poderoso compensava a fraqueza da esquerda política e permitiu que o levantamento neste país marcasse a primeira vitória na queda de um presidente, marcando assim a onda de choque regional. Por outro lado, havia dois polos profundamente reaccionários e contra-revolucionários: os velhos regimes, representando classicamente a força contra-revolucionária princial, mas também as forças fundamentalistas islâmicos competindo com os velhos regimes e tentando tomar o poder.
Nesta disputa triangular, o polo progressista, a corrente revolucionária, foi rapidamente marginalizada – não ou não somente devido às suas fraquezas organizativas e materiais mas também e primariamente devido à sua fraqueza política, à sua falta de visão estratégica.
A situação ficou portanto dominada pelo embate entre duas forças contra-revolucionárias que escalou num “choque de barbáries”, como eu lhe chamo, do qual a Síria é a mais trágica ilustração, com um regime síria bárbaro a confrontar as forças fundamentalistas islâmicas bárbaras. O potencial enorme que era representado pelos jovens que iniciaram a revolta na Síria em março de 2011 foi completamente esmagado.
Muitos destes jovens deixaram o país porque não conseguiam sobreviver quer nos territórios controlados pelo regime quer nos territórios controlados pelas forças fundamentalistas islâmicas. Muito do potencial progressista sírio foi assim espalhado pela Europa, Turquia, Líbano e Jordânia. Algum sobrevive dentro do país mas enquanto a situação de guerra perdurar, será difícil reemergir.
A situação curda na Síria é uma história diferente. O PYD/YPG no nordeste da Síria é indubitavelmente a mais progressista de todas as forças armadas ativas no território da Síria, senão a única força progressista. Conseguiram desenvolver e estender o território sob o seu controlo com o apoio dos EUA, porque Washington durante o governo Obama viu-os como soldados rasos eficientes para combater a ISIS. Eles tinham a sua aposta própria no combate à ISIS, claro, uma vez que é um inimigo mortal para si.
A sua primeira cooperação direta com os EUA foi a batalha de Kobane em 2014, quando o apoio aéreo dos EUA, incluindo lançamentos aéreos de armas, foi decisivo para permitir que os lutadores curdos fizessem recuar a ofensiva da ISIS. Houve então uma convergência de interesses entre os EUA, providenciando apoio aéreo bem como outros meios e recursos, e o YPG, providenciando tropas no terreno.
Foi isto que Donald Trump deixou cair, apunhalando os curdos pelas costas e abrindo caminho à investida nacionalista-colonialista e racista contra eles. A sua situação tornou-se extremamente precária porque estão entre o martelo turco e a bigorna do regime sírio, entre o chauvinismo turco e o chauvinismo árabe – dois projetos de limpeza étnica, convergindo no projeto de substituir curdos por árabes nas áreas de fronteira da Síria com a Turquia. Moscovo está a ajudá-los a ambos neste empreendimento.
Mas o PYD/YPG falhou em juntar-se consistentemente com o resto da luta contra o regime assassino de Assad… Eu não colocaria a principal culpa neles: nenhuma das forças armadas da oposição síria estava aberta ao verdadeiro reconhecimento dos direitos democráticos e nacionais curdos.
Para ser claro, o PYD/YPG não é uma reiteração da Comuna de Paris como alguns tendem a retratá-lo de forma bastante ingénua. E contudo, com todas as suas limitações e sem alimentar ilusões acerca deles, representam a força significativa organizada mais progressista no terreno na Síria. Se tomarmos o estatuto da mulher como o nosso principal critério – e deve ser sempre um critério crucial para os progressistas – não há nada que se compare com o PYD/YPG. Junte-se a isto que os seus co-pensadores na Turquia dirigem o Partido Democrático dos Povos (HPD), a única força política grande progressista e feminista no país.
Para os marxistas, quais foram as lições políticas e teóricas mais significativas a serem tiradas do ciclo anterior de luta revolucionária? Frequentemente ouvimos o argumento de que o marxismo é “orientalista” e assim não adequado às sociedades não ocidentais. A atitude de Michel Foucault para com a revolução iraniana (1979) foi um exemplo da tentativa de encontrar salvação numa Alteridade religiosa não-ocidental, declarando um fim às visões universais de emancipação humana, à política de classes e instrumentos teóricos marxistas para compreender o mundo. Então porque é que acreditas que a teoria marxista está melhor equipada para compreender as revoluções e contra-revoluções por todo o Médio Oriente e Norte de África? Quais são as perspetivas de surgir uma nova geração de ativistas marxistas árabes desde 2011 e em que medida isto começou a acontecer?
A visão orientalista da região é que esta está condenada a ficar eternamente presa à religião como parte da sua essência cultural e que a religião explica tudo e foi sempre a motivação central das populações da região. Esta é uma visão completamente falaciosa que é também bastante impressionista uma vez que ignora o passado e acredita que o presente vai durar para sempre.
Olhando para o Médio Oriente e Norte de África nos anos recentes, pode-se ficar com a impressão de que as forças islâmicas fundamentalistas são proeminentes em todo o lado. Contudo, isso não era o caso há algumas décadas, especialmente nos anos 1950 e 1960, quando estas forças eram marginalizadas por forças de esquerda bem mais fortes.
Pediram-me para escrever um prefácio à reedição de Marxismo e o Mundo Muçulmano de Maxime Rodinson há alguns anos. Esta coleção de artigos, a maior parte dos quais escritos nos anos 1960, discute uma parte do mundo na qual as correntes de esquerda eram dominantes. Tive, assim, de informar ou relembrar os leitores deste facto histórico, para que não fiquem perplexos com a leitura deste livro.
Poucos se dão conta hoje em dia que nos anos 1950 e 1960 era amplamente assumido que a região árabe se encontrava sob hegemonia ideológica comunista. Um autor marroquino publicou em 1967, em francês, um livro intitulado Ideologia Contemporânea Árabe, no qual discutia aquilo a que chamava “marxismo objetivo” enquanto ideologia que estava difusa na região. Através desta expressão, ele queria dizer que o povo usava categorias e ideias marxistas, a maior parte sem tomar conta da sua origem.
Ou tome-se um país como o Iraque – um bom exemplo. Hoje, clérigos e mullahs dominam o palco político, especialmente entre os xiitas. Mas se recuarmos até aos finais dos anos 1950, descobre-se que a luta política maior no país era a que opunha comunistas a baathistas, estes últimos defendendo uma ideologia nacionalista que se descrevia como socialista.
Os comunistas eram particularmente influentes entre os xiitas e eram capazes de mobilizar centenas de milhares de pessoas em manifestações. Então, pensemos nesse Iraque e no Iraque de hoje: um vasto mar os separa. Mas isso prova que não há nada nos genes das populações da região que os leve a acatar a direção política de forças religiosas.
O líder político mais popular na história árabe moderna é indiscutivelmente Gamal Abdel-Nasser – presidente do Egito entre 1956 e a sua morte prematura em 1970. Desviou-se o mais possível à esquerda dentro das fronteiras do nacionalismo burguês, implementando uma nacionalização abrangente da economia ao mesmo tempo que reformas agrárias sucessivas, promovendo um desenvolvimento industrial liderado pelo Estado e melhorando substancialmente as condições de trabalho, tudo isto no pano de fundo do anti-imperialismo e do anti-sionismo.
Apesar de ter ocorrido sob duras condições ditatoriais, esta foi uma fase muito progressista da história do Egito, e foi emulada em vários países árabes. Quando se contempla esta história, damo-nos conta que o papel do fundamentalismo islâmico nas décadas mais recentes não está enraizado em alguma essência cultural, tal como a visão orientalista considera. É mais o produto de desenvolvimentos históricos específicos. Como já discutimos, é em parte do uso prolongado e intensivo de Washington do fundamentalismo islâmico em conluio com o mais reacionário Estado do mundo, o reino saudita, na luta contra Nasser e a influência da URSS na região Árabe e no mundo muçulmano.
Quando a Primavera Árabe (como foram chamados os levantamentos em 2011) despontou, uma nova geração entrou na luta numa escala massiva. O grosso desta nova geração aspira a uma transformação progressista radical. Aspiram a melhores condições sociais, liberdade, democracia, justiça social, igualdade, incluindo emancipação de género. Rejeitam as políticas neoliberais e sonham com uma sociedade em nítido contraste com as visões programáticas daquelas forças fundamentalistas que sequestraram ou tentaram sequestrar os levantamentos e desviaram-nos para os seus objetivos específicos.
Há um potencial progressista enorme na região e vimo-lo voltar à tona na segunda vaga revolucionária que ocorre neste momento. Começou em dezembro com o levantamento sudanês, seguido a partir de fevereiro do levantamento argelino e desde outubro por protestos políticos e sociais massivos no Iraque e no Líbano. Sudão, Argélia, Iraque e Líbano estão a ferver e vários outros países da região estão à beira da explosão.
E quanto ao papel do estalinismo no mundo árabe?
A União Soviética e os partidos comunistas sobre sua liderança representaram a forma dominante de “marxismo” na região durante décadas. Houve vários partidos comunistas importantes na região, todos estreitamente ligados a Moscovo. Isto significava que a auto-descrita literatura marxista era dominada fortemente pelo estalinismo na região nos anos 1950 e 1960. Com a emergência global da Nova Esquerda nos finais dos anos 1960 e 1970, novas traduções permitiram acesso a autores marxistas críticos e marxistas anti-estalinistas em árabe.
A ascensão da Nova Esquerda na região árabe foi impulsionada pela derrota dos exército árabes de junho de 1967 na chamada Guerra dos Seis Dias, que foi um golpe significativo para Nasser e para o seu regime. Uma larga camada da juventude radicalizou-se para além tanto do nasserismo quanto do estalinismo, naquilo que era frequentemente mais um nacionalismo radical de trajes “marxistas” do que um marxismo pleno.
A Nova Esquerda árabe cresceu significativamente nos finais dos anos 1960 e nos inícios dos 1970 mas falhou em construir uma alternativa à velha esquerda quanto mais em ser alternativa aos poderes instalados.
Este é o período no qual os regimes utilizaram o fundamentalismo islâmico para cortar a Nova Esquerda pela raiz. A maior parte, senão todos, os governos árabes soltaram as rédeas e ajudaram grupos fundamentalistas islâmicos nos anos 1970, especialmente nas universidades, como um antídoto para a radicalização de uma nova ala de esquerda. Contribuíram assim significativamente para o falhanço da esquerda radical.
Claro, estes últimos carregam a maior parte da responsabilidade na sua própria derrota. Faltou maturidade política e argúcia estratégica. A nova radicalização não foi mais além do que o “marxismo” superficial e dogmático previamente dominante, fortemente influenciado pelo estalinismo. O marxismo era geralmente reduzido a uns quantos lugares comuns. Houve exceções, claro, mas o conjunto da produção intelectual original permaneceu muito limitado – deixando de lado contribuições de pensadores marxistas da região que viviam no estrangeiro e escreviam em línguas europeias, como o falecido Samir Amin. A exceção mais proeminentes foi Hassan Hamdan, conhecido pelo nome literário de Mahdi Amel. Ele era o intelectual mais sofisticado do Partido Comunista Libanês e foi assassinado pelo Hezbollah em 1987. Uma antologia dos seus escritos será brevemente lançada numa tradução em inglês.
*Gilbert Achcar é professor de Estudos do Desenvolvimento e Relações Internacionais no SOAS da Universidade de Londres. É autor de vários livros sobre o Médio Oriente, incluindo The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising e Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising. Esta entrevista, publicada originalmente(link is external) na Marxist Left Review, foi conduzida por Darren Roso. A tradução é de Carlos Carujo.
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