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BRASIL

Ditadura militar: livros e telas e o papel da memória

Gabriel Santos, de Maceió (AL)

Lamarca é um filme de Sérgio Rezende, que estreou em 1994, e foi baseado na biografia “Lamarca, o capitão da guerrilha”, escrito por Miranda Oldack e Emiliano José. Nunca havia assistido a este filme ou lido a biografia daquele que foi um dos grande combatentes contra a ditadura militar, mas conhecia a história de Lamarca, sua vida e sua morte, de forma superficial. Nesse dias, por mero acaso, me deparei com o mesmo, e acabei parado diante da TV, assistindo e sofrendo algo que já sabia como terminava. O filme se saiu muito melhor que o esperado. Paulo Betti, que interpreta o capitão da guerrilha, tem uma atuação fantástica. Quanto mais se aproximava do fim, mais os diálogos secos prendiam minha atenção. A tensão rodeia todo o filme, que mais parece uma obra de ficção norte-americana sobre aventura, mas que infelizmente foi bastante real.

Assistir Lamarca foi uma experiência angustiante. Talvez por saber como a história terminaria para ele e seu grupo. Cada cena e cada diálogo eram observados como se soubesse que eles estavam caminhando para o fim. É um filme que assistimos já sabendo o trágico final, e esperamos por este e o vemos inúmeras vezes no desenrolar da película. É como se desde a primeira cena víssemos Lamarca caminhando para o fim. E isto gera uma série de discussões que travamos com os personagens do enredo: “não faça isso”, “isso vai dar erro”, “essa é a pior escolha”. Sentimos a vontade de retornar aos anos 1970 e aconselhar aqueles atores que representam verdadeiros brasileiros que pegaram em armas para lutar pelo que acreditavam. Queríamos que o rumo do filme e seu final fosse outro, mas não era possível.

Um por um, cena após cena, os companheiros primeiro do VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e depois do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) vão literalmente caindo. São torturados ou derrubados pelas balas da ditadura militar, que os acerta e a câmera filma seus corpos sendo levados ao chão.

Dentre muitas coisas, o que mais me angustiou foi a diferença de sentimentos que o grupo de guerrilheiros passava. No mundo real, não saberemos o que se passava nas mentes daquelas mulheres e homens. Mas, no filme de Sérgio Rezende, o sentimento apresentados se misturam. Em alguns momentos, Lamarca e seu grupo tratam como se o fim estivesse próximo, morando na esquina, a derrota era iminente, era necessário fugir do país. Porém, em outras situações o grupo tinha uma fé absurda na vitória, apesar de inferiores numericamente e militarmente aos militares. Afinal eles lutavam pelo povo. Diziam no meio da caatinga, isolados do povo para que este não os entregasse para os milicos. A escolha de Rezende por retratar desta forma é justamente para perpassar que existia uma visão até certo ponto romantizada do ato da guerrilha, e da morte como combatente. Coloca, assim como muitos outros filmes que retratam do tema, a militância armada e a derrubada do regime, o mundo novo que queriam construir, como uma utopia que nunca seria alcançada. Uma espécie de utopia inalcançável e infantil.

Por coincidência, há alguns dias terminei de ler “A quem de direito”, um romance argentino escrito por Martín Caparrós. Um livro que me fez ficar muito pensativo sobre como no Brasil a memória do período da ditadura militar é tratada e como os guerrilheiros são vistos.

O romance de Caparrós conta a história de Carlos, um amargurado ex-líder guerrilheiro. Mas, atrevo dizer, que o ator principal do romance não é este. O papel central é justamente os conflitos entre as ideias que perpassam todo o livro. Carlos, depois de tantos deveria se vingar pelo desaparecimento de Estela, sua companheira e também guerrilheira? Aqueles ex-guerrilheiros que assumiram o papel de políticos são traidores da causa que lutavam décadas atrás, ou só a buscam por outros meios? Estes conflitos no romance podem ser materializados na imagem do padre Augusto, e podem também ser trazidos para uma palavra: memórias.

“A quem de direito”, é uma espécie de reflexão coletiva narrada hora por meio de diálogos longos, hora por meio de monólogos, sobre a possibilidade de ainda mudar o mundo, sobre os limites e a importância da atuação parlamentar (estes feitos entre Carlos e seus colegas), sobre as ilusões do tempo de guerrilha, as barbaridades da ditadura, seus resquícios (feito por Carlos com o que ele acreditava ser Estela), e qual o papel de recordar das décadas passadas, ainda mais para os mais jovens, essas conversas eram feitas com Valéria, ela na minha opinião é a personagem mais interessante do livro. A narrativa se passa na Argentina, mas é impossível não pensar no Brasil enquanto anda pelas linhas. A grande questão é: o que fazer com as memórias da ditadura militar? Para que elas servem?

Sobre este ponto, é sempre importante que não existe no Brasil uma memória coletiva e social sobre o que foi o período da ditadura militar. Os criminosos nunca foram verdadeiramente punidos. Podemos dizer que isto é muito por conta do que foi a redemocratização pactuada que ocorreu. O fato é que diferentemente de outros países latino-americanos, no Brasil não se tem um repúdio sobre o período militar e as práticas dos militares.

É notável o forte movimento que existe para reabilitar o período dos generais. O próprio presidente é um saudosista da ditadura, e vemos iniciativas como o Brasil Paralelo, por exemplo.

Mas não é somente do submundo da extrema direita que surgem tentativas de reabilitação do período militar. Na academia o mesmo acontece, porém de forma mais culta, menos escrachada e com outros nomes. Existe uma tentativa, que vem sendo posta em prática, de “igualar os lados” que atuavam nos processos políticos antes do Golpe de 1964 e após o mesmo. Ambos seria autoritários e não teria apreço pela democracia e se preparavam para aplicar um golpe, de acordo com Daniel Aarão Reis, só para citar um exemplo. Outros nomes se encaixam neste balaio, como Marco Antônio Villa e Argelina Cheibub Figueiredo. Por outro lado, alguns autores se confrontam com esta tese, e fazem uma crítica a este revisionismo historiográfico que abre portas para a negação do que foi a ditadura. Entre eles é A Miséria da Historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo, organizado por Demian Melo.

Voltando ao tema da construção de memórias, uma das coisas que me deixou reflexivo após o livro e o romance, é que a como é feita construção da memória dos assassinados pela ditadura. Existe um apagar do papel político de suas mortes. Os mortos pela ditadura se transformam em aqueles que morreram por defender a democracia. Eles eram isso, mas muitos, eram além disto. Eram defensores de uma outra sociedade, queriam construir um outro mundo, buscavam fazer uma Revolução Brasileira, e como estratégia apostaram na guerrilha. Se a extrema direita brasileira transforma os guerrilheiros em monstros, a direita os coloca no mesmo patamar que os militares, setores da esquerda retiram seus ideais, colocam todos dentro dos “defensores da democracia”, e tentam realizar uma espécie de canonização.

Quando agimos assim, perdemos a batalha pela memória do que foi o período da ditadura militar. É importante sempre lembrar, que os revolucionários do passado não cabem em altares. Nosso dever não é trata-los como santos, mas sim buscar entender suas práticas e aprender com eles. Isto significa ver onde acertaram e onde erraram. E até onde suas lições permanecem válidas até o dia de hoje.

Por exemplo, ao construir uma memoria de Lamarca, Marighella, Osvaldão, são heróis de nossa história. Nossa luta hoje é em certa medida, continuidade direta do que eles fizeram. Foram revolucionários, independente dos erros e acertos, que morreram lutando pela revolução. Reduzir os mesmos a lutadores da democracia é uma falsificação da história.

Por fim, uma das consequências políticas da forma que a memória destes foi construída, é que ela impede qualquer tentativa de crítica. É extremamente importante que se façam avaliações sérias sobre o que foi a escolha pela guerrilha como estratégia durante os anos 60 e 70 e sua consequência. De certa forma isto serve como lições para a nossa geração e para as gerações futuras.

Voltando ao filme Lamarca, as melhores cenas do longa é quando ele chega no interior baiano. A paisagem seca, os rostos cansados e enrugados do povo sertanejo, a caatinga, as casas de barro. Estas não são justamente as melhores cenas por conta da beleza da fotografia, apesar desta merecer um elogio especial. Mas sim, justamente porque é neste momento da história que as classes populares entram em cena, mesmo que ainda como figurantes. O povo real e os guerrilheiros do MR-8 se encontram somente quando estes sãos assassinados e cabe aos moradores da cidade cuidar de seus corpos. Ou ainda quando o povo pobre assiste com um olhar surpreso mas firme as ações dos policiais na troca de tiros. Porém, existe um momento em que a histórias dos guerrilheiros e do povo acabam se assemelhando e se confundindo. É justamente quando os militares entram em um povoado, apontam suas armas para todos, encostam a população na parede, e revista um por um, procurando os guerrilheiros.

Trazendo para os dias atuais, apesar de “A quem de direito” ser um romance, e “Lamarca” uma adaptação cinematográfica de uma biografia, eles têm uma lição em comum que podemos extrair para o combate ao governo de Jair Bolsonaro.

De ambas as obras podemos extrair que se não nos ligarmos o povo brasileiros estaremos fadados ao fracasso. Não existe atalho. Não existe saída se não for a construção junto a classe trabalhadora e os oprimidos desta terra. Ações isoladas, palavras de ordem radicalizadas, podem soar bonito e nos fazer sentir moralmente bem, mas nos conduz a derrota se não formos ouvidos.

Pois como escreveu Thiago de Mello, meu poeta preferido, e que foi torturado durante a ditadura militar: É tempo, sobretudo, de deixarmos de sermos a pequena vanguarda de nós mesmos.