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TEORIA

Brasil Paralelo e o revisionismo histórico

Mayara Balestro e João Miranda, de Marechal Cândido Rondon (PR)
Reprodução

No parapeito do fim do ano de 2018, Roger Waters fez um grande show em Curitiba. Como era de se esperar, o músico inglês, na oportunidade, manifestou-se sobre o nosso tempo durante todo o evento. O que mais nos chamou a atenção é que Waters, durante praticamente todo o show, parecia invisível no palco. Os olhos do público eram, propositalmente, direcionados para o grande telão, em que eram transmitidas mensagens de protesto – e que ali eram colocadas à prova.

Em tempos da chamada “autoverdade”, em que a verdade tem, frequentemente, o seu valor definido pelo ato de dizer e por quem a diz, talvez a mensagem mais importante deixada pelo compositor de “Time” seja a inverdade do argumento de autoridade. Intervenção fundamental em um país como o nosso, no qual, assim como em muitos lugares ao redor do planeta, tem-se visto nas suas ruas de byte e de asfalto a valorização da verdade pessoal, autoproclamada como inquestionável. Verdade que não tem o seu valor definido, neste sentido, por sua ligação com os fatos, mas no fato de dizer tudo, tipificando a realidade da experiência a partir da experiência da realidade daquela ou daquele que a narra.

É o que faz o chamado Brasil Paralelo. O think tank foi criado em 2016 na capital gaúcha para produzir documentários em vídeo, supostamente com o objetivo de contribuir para a melhoria da educação brasileira – em especial, no que tange aos temas política e história. Querem com as peças audiovisuais divulgar a visão de mundo que têm e, principalmente, sua versão da história brasileira. Incomodados com o contexto político, os fundadores vinham discutindo desde a reeleição de Dilma sobre uma maneira de intervir no debate. “Diante do cenário político de 2014, com a reeleição da Dilma Roussef, um despertar de consciência política ganhava cada vez mais força a partir do sentimento da maioria da população”, afirmou Felipe Valerim, um dos fundadores.

Em 2016, no Cinemark, cinema presente no Metrô Santa Cruz de São Paulo, exibiram o sexto e último episódio, sobre o Impeachment de Dilma Rousseff (Impeachment – Do apogeu à queda), da primeira série que fizeram, intitulada “Congresso Brasil Paralelo”. O objetivo desse episódio é contrapor-se à versão que entende que a queda de Dilma foi fruto de um golpe. Na época houve um debate após o filme que contou com a presença dos vários representantes da “nova direita” brasileira, dentre eles, Ícaro de Carvalho (investidor e empreendor digital, liberal), o príncipe Luiz Philipe de Orléans e Bragança, Hélio Beltrão (Instituto Mises Brasil) e Joice Hasselmann (PSL).

Os seis documentários da série contam com depoimentos de mais de 80 entrevistas, em que foram entrevistados, dentre outros, Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Luis Felipe Pondé, Onyx Lorenzoni, Janaína Paschoal, Lobão, Roger Moreira, Rodrigo Constantino, Gilmar Mendes, Danilo Gentili.

Apesar de ser tão novo, o Brasil Paralelo já criou vários outros documentários, abordando diversos temas da história brasileira. O mais recente foi sobre a ditadura civil-militar (1964-1985) que assolou o país. Dirigido por Felipe Varelim e Lucas Ferrugem, o documentário intitulado “1964: o Brasil entre armas e livros” busca amenizar a ditadura, defendendo que a repressão e a censura não foram tão severas e que havia uma perigosa ameaça comunista. A narrativa historiográfica, construída por profissionais da história, foi escrita, segundo eles, por pessoas contaminadas por ideias da esquerda.

A instrumentalização do discurso faz parte dessa construção do Brasil Paralelo, no sentido de afirmar a hegemonia burguesa; classe que, através desse e de outros aparelhos privados de hegemonia, atuam na difusão dos ideais liberais; ideais que, para Valerim, têm o principal benefício expandir a consciência dos brasileiros.

O Brasil Paralelo tem conquistado diferentes espaços ou instâncias de poder, com destaque para as redes sociais. Hoje o canal do youtube deles possuem mais de um milhão de seguidores, com dezenas de vídeos publicados. Possuem também um site, no qual hospedam toda a produção cinematográfica que fizeram. Para ser seguidor e ter acesso exclusivo a todos os documentários e séries é preciso pagar o valor de mais de setecentos reais.

Partem do pressuposto de que a academia foi tomada pelo marxismo e as ideologias de esquerda, sendo necessário, diante disso, combater o que chamam de “marxismo cultural”. Para tanto, distorcem a história, agindo diretamente na formação da consciência histórica das pessoas, disseminando concepções revisionistas da história do Brasil, de maneira que elas acreditem na versão apresentada por esse aparelho e neguem a narrativa historiográfica forjada cientificamente pelas historiadoras e historiadores.

O revisionismo serve, obviamente, aos interesses da classe dominante. O historiador Edmundo Dias aponta que a possibilidade de uma classe (subalterna ou dominante) de constituir a sua hegemonia decorre de sua capacidade de construir uma visão de mundo, uma nova civiltà, uma nova civilização. Esse processo é a “síntese de múltiplas determinações”, e não um a priori efeito da estrutura. A organização (ou organizações) dessa classe deve ser o porta-voz para o desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular na realização dessa reforma intelectual e moral que deve, necessariamente, estar ligada a um programa de reforma econômica (DIAS, 1996, p. 10).

Segundo o historiador brasileiro Edmundo Dias, Gramsci aponta que, enquanto representante de uma vontade coletiva, a organização de classe deve construir uma nova visão do mundo, qual se coloque no lugar da anterior como novo horizonte. Para tanto, deve organizar e mobilizar as vontades, dando-lhes homogeneidade e sentido. Isso passa necessariamente pelo conhecimento da estrutura, através de uma análise que leve a compreensão correta das práticas classistas estruturais no interior de uma conjuntura, distinguindo na estrutura os movimentos orgânicos e os estruturais. A hegemonia se faz, dessa maneira, com a combinação de coerção e consenso. E o consenso se constrói através, primordialmente, do convencimento político e ideológico (DIAS, 1996, p. 11-12).

Assim, o Brasil Paralelo, disseminando conteúdos revisionistas, contribui para a perpetuação da classe burguesia, ensejando realizar sua doutrinação pautados pelos ditames do capital e da economia de mercado. Porém, não apenas isto. Em nosso entender, a luta perpetrada pelo Brasil Paralelo pela hegemonia do que deve e não deve ser “educativo”, “ensinado” a respeito da história passada e presente, está relacionada também a uma atuação decisiva no âmbito ampliado do Estado,  na medida em que se trata de uma estratégia de organização e ação orgânica de classe que culminou no golpe de 2016 e em seus desdobramentos atuais; essa estratégia está voltada também à aprovar medidas regressivas a serem impostas a população brasileira, como é o caso do projeto “Escola sem Partido”, das contrarreformas do Ensino Médio (além da trabalhista e previdenciária), da criminalização “oficial” dos movimentos sociais e dos intelectuais de esquerda.

Neste sentido, Brasil Paralelo está imbricado a um projeto maior, ancorado na defesa do capitalismo neoliberal e privatista, de uma concepção histórica/historiográfica revisionista na forma de desqualificar pesquisas científicas e estudos críticos ao capitalismo.

Brasil Paralelo representa, neste sentido, a defesa de ideias autoritárias e de mudança de regras democráticas, procurando difundi-las no poder político. Acaba sendo curiosa a ideologia desta “nova direita”, pois, ao mesmo tempo que defende a liberdade de imprensa e de opinião, ao mesmo tempo em que se autoafirma como “libertária”, persegue e criminaliza movimentos e grupos de esquerda (especialmente, os marxistas), propagando matérias repletas de calúnias e difamações; promove o discurso de ódio sobre minorias, mulheres, movimentos sociais e sindicatos; exalta o mercado como espaço de realização das liberdades; persegue professoras e professores e a liberdade de cátedra. Em torno dessa paradoxal mobilização midiática, parece-nos que o Brasil Paralelo procura aproveitar-se da atual conjuntura política (conservadora, reacionária, neoliberal) para fortalecer uma “guerra de posição” no mundo digital, com o objetivo de garantir a direção e o domínio moral, político e cultural do que deve (e não deve) “entrar” para a história que eles tentam disseminar.

Aparelhos privados de hegemonia como o Brasil Paralelo têm, dessa forma, um grande papel na guerra de narrativas que perpassa o Brasil contemporâneo, por adotarem ferramentas como vídeos no youtube, com grande difusão nas redes sociais. Não seria necessária uma lupa para constatar que, na atual conjuntura, tais produtos e ferramentas possuem uma forte influência, com capacidade de moldar/deformar os rumos da história do país, contribuindo para radicalizar sentimentos de ódio de classe, aversão aos partidos, às minorias, aos movimentos sociais, sindicatos, perseguições de professores e à liberdade de cátedra.

Diferentemente dessa prática do Brasil Paralelo, o argumento tangível da produção historiográfica científica não se pauta pelo argumento de autoridade. A factividade da narrativa histórica fundamenta-se, em primazia, naquilo que pode ser comprovado em documentação, a qual deve estar acessível para que a pessoa que lê a obra historiográfica possa, caso queira, acessar tais fontes, como apontou o historiador francês Antoine Prost (2008, p. 235).

Não significa que a narradora ou o narrador não estejam presentes na narrativa. Afinal, como disse o historiador francês Michel De Certeau, o modo como a profissional e o profissional da história escrevem a história representa a relação destes com um lugar. Noutras palavras, isso significa que a produção historiográfica está referida a ‘lugares’ sociais, políticos, econômicos, culturais, os quais constituem a contextura dos procedimentos científicos (CERTEAU, 1982, p. 66).

O fato de a subjetividade ser um elemento intrínseco da narrativa histórica não significa, todavia, que a produção historiográfica não se ancore em bases científicas. Concordando com o historiador e filósofo alemão Jörn Rüsen, a impossibilidade epistemológica de abster o caráter pessoal da produção histórica é um dos pilares que estruturam a cientificidade da operação historiográfica, pois a subjetividade permite à ciência histórica estar imbricada à prática da vida (RÜSEN, 2001). Neste interim, a subjetividade se trata do ponto de partida, do a priori da produção histórica. Tal subjetividade, como dito anteriormente, emerge das relações intersubjetivas que nós, profissionais da história, estabelecemos com o presente, com o passado e com o futuro, condicionada pelas mais variadas determinações sociais, políticas, culturais, constituindo os nossos interesses específicos para determinado tipo de tema, abordagem, documentação, etc.

Essa busca se dá por um processo que enseja alçar as profundezas do tema a que se propõe pesquisar, constituindo perguntas, hipóteses e métodos de investigação. Neste sentido, a historiadora e o historiador são, respeitando as proporções, os shelorckianos do passado, atentando-se aos detalhes do processo histórico; detalhes estes não raro negligenciados por outras áreas do conhecimento. Ao invés de toda a floresta, pois bem, estudamos uma determinada árvore, ou, ainda, uma parte desta, sem deixar, é claro, de refletir sobre a floresta como um todo, considerando que uma determinada árvore é como é por conta, em grande medida, da floresta em que floresceu, cresceu e morreu (ou morrerá).

Em nosso procedimento de pesquisa, as hipóteses levantadas à luz de um determinado referencial teórico-metodológico sobre a árvore estudada são contrapostas com as fontes. As fontes e as hipóteses são postas lado a lado, através de um determinado método, de acordo com uma ordem e analisadas em conjunto. Quando o procedimento se mostra falho e as hipóteses caem por terra, volta-se às fontes, num processo dialético com a teoria em que nos ancoramos. Ao longo da operação historiográfica, nunca podemos moldar a realidade de acordo com o referencial teórico que adotamos.

Entretanto, vale o questionamento: se a subjetividade é algo implícito e inseparável da narrativa histórica, o que impede que a historiadora e o historiador moldem a história a partir dos seus interesses privados? Além das bases científicas, o caráter coletivo da produção historiográfica é um elemento que permite o equilíbrio entre a subjetividade e a objetividade. O nosso trabalho não só se ancora no que foi refletido anteriormente pelos pares, como também é comumente submetido a algum tipo de avaliação, seja por uma banca de qualificação, seja por um corpo editorial de uma revista, jornal ou editora, seja pelo público em uma palestra, seminário, etc. Para tanto, passamos por um longo processo de formação, que envolve, no mínimo, graduação (4 anos), mestrado e doutorado (6 anos), em que aprendemos, via infinitas aulas e leituras, a realizar uma pesquisa histórica. Depois disso, ainda passamos por um rigoroso processo seletivo para sermos professores numa universidade pública. Contudo, é claro que isso não impede completamente que deixem de existir imperfeições em nossa narrativa, inclusive, são inevitáveis. Por isso, a verdade que construímos não é absoluta. Diferentemente do que faz o Brasil Paralelo, nós, profissionais da história, não nos pautamos em uma argumentação incondicional, em um argumento de autoridade.

Consequentemente, o nosso trabalho é sempre inacabado. Pesquisar é como mergulhar intencionalmente em uma areia movediça. Ao invés de tatearmos, desesperados, para todos os lados, em busca de algo em que podemos nos agarrar para não nos afundarmos, ao pesquisar mergulhamos de cabeça no poço de areia com o desejo de ir o mais fundo que conseguirmos. Esse processo é infindável. Quanto mais caminhamos em direção ao horizonte, mais constatamos a nossa ignorância a respeito dos meandros do nosso objeto – e mais nos sentimos distante do horizonte. Contudo, nunca deixamos de caminhar, sempre buscando a melhor fundamentação para a nossa argumentação.

Portanto, enquanto profissionais da história, buscamos em nossa prática estar sempre iluminados pelos preceitos científicos, de forma a dar conta da melhor maneira do objeto que nos cabe explicar, considerando que o mesmo faz parte de uma totalidade complexa – que é o mundo – sobre o qual também devemos refletir, sem pretensões de explica-lo, é claro, em sua completude, pois isso é epistemologicamente impossível. O oficio da historiadora e do historiador é, enfim, algo difícil e complexo, mas ao mesmo tempo apaixonante, belo e desafiador.  

Concordamos que a história que construímos entre os muros da universidade, pautada em preceitos científicos, basilares, não é a única que existe. Afinal, a história não é o apanágio da historiadora e do historiador. Pelo contrário, está na alma do povo, no espírito popular, percorrendo os imaginários de porta em porta, constituindo cosmovisões e epistemologias, que, não raro, têm o poder de influência e sedução maior do que os da narrativa da ciência histórica. O conhecimento histórico não é, assim, apenas o resultado do que fazem as historiadoras e os historiadores. A história, digamos, não-científica, tem importância tanto quanto a científica – e não pode ser ignorada por nós profissionais da história.

No entanto, o que o Brasil Paralelo faz, em seu revisionismo histórico, é instrumentalizar o conhecimento histórico por uma prática social, por uma ideologia, por uma visão de mundo. São, consequentemente, profundamente antiéticos, alterando sem cessar o vivido, e o que se vive, supostamente em nome do que os seus autores querem viver.

O conhecimento histórico é, dessa forma, colocado no leito de Procusto. Na mitologia grega há uma lenda chamada “Leito de Procusto”, que se tratava de um bandido que sequestrava as pessoas, levando-as para a sua casa. Nela, havia uma cama de ferro, que possuía o exato tamanho de Procusto e para a qual ele obrigava as pessoas a se deitarem. Se os “hóspedes” fossem demasiados altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, e os que tinham pequena estatura eram esticados até atingirem o comprimento suficiente.

Brasil Paralelo faz isso: o acontecimento histórico que não se ajusta exatamente ao tamanho das suas ideias, é forçadamente “ajustado”, nem que isso signifique amenizar o que ocorreu na ditadura no país, nem que isso signifique deslegitimar todo o legado de Paulo Freire.

O conhecimento histórico é importante demais e esse ataque deve ser combatido com as armas da crítica. É importante demais porque as narrativas do passado, apesar de não serem o real em si, têm a grande responsabilidade de tomar o lugar deste que pretendem dar conta, representando nessas narrativas o passado construído cientificamente. E essas narrativas têm o potencial de ser elemento fundamental na constituição da consciência histórica de toda uma nação. Assim como o conhecimento histórico-científico produz realidades, as inverdades apresentadas pelo Brasil Paralelo também. O fenômeno da pós-verdade, tão disseminada por diversos aparelhos privados de hegemonia, sendo um deles aquele sobre o qual refletimos aqui mais atentamente, não se trata unicamente de mentiras para ocultar a realidade, mas também de mentiras que produzem realidade, como o Brexit, a eleição de Donald Trump e de Jair Bolsonaro.

O grande desafio que se apresenta é, portanto, devolver a verdade à verdade. Por isso precisamos continuar nos movendo cada vez mais. Não por esperança. Mas por imperativo ético. E isso não amanhã. Ontem.

 

* Mayara Balestro e João Miranda são professores(as) de história em Marechal Cândido Rondon (PR)

 

Referências

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores. São Paulo: Editora Ática, 1995.

DIAS, E. Hegemonia: racionalidade que se faz história. In: DIAS, E. et al. O outro Gramsci. São Paulo, Xamã, 1996.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.