Três problemas teóricos e uma aposta estratégica
Publicado em: 14 de janeiro de 2020
Colunistas
Valerio Arcary
Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.
Colunistas
Valerio Arcary
Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.
O marxismo como a ciência deve ser, teoricamente, humilde. Atribui-se a Noam Chomsky uma elaboração instigante sobre a construção do conhecimento. Ele afirmou que nossa ignorância pode ser organizada na forma de problemas e mistérios.
Um problema é uma questão nova que deve desafiar nossa curiosidade. Ou o desejo de conhecer o que sabemos que não sabemos. Um problema é algo que deve ser formulado como uma pergunta, e pode ser resolvido com uma pesquisa. Diante de problemas podemos construir hipóteses. Os desdobramentos da investigação do objeto de estudo, e o debate das diferentes hipóteses abre o caminho. Abrir o caminho é a descoberta de quais ideias estavam mais erradas.
Um mistério é algo muito diferente. Mistério é aquilo que provoca nosso espanto. Diante de um mistério ficamos apreensivos, estupefatos, perturbados, ou maravilhados, mas não temos condições de encontrar uma resposta. Simplesmente, não temos a menor ideia. Com o tempo, mistérios se transformam em problemas, porque o conhecimento é um processo.
Estamos diante de três novos problemas teórico-programáticos complexos e com possíveis desdobramentos trágicos, senão calamitosos. Nenhum deles é um mistério. São três grandes conflitos, cada um com seus ritmos próprios de amadurecimento. Devem ser desenvolver em forma desigual, porém, combinada. A questão do tempo das três crises é central, e está longe de ser clara: (a) a possibilidade de que a próxima crise econômica do capitalismo se transforme em uma depressão mundial mais grave do que a crise de 1929; (b) a possibilidade de que a crise geopolítica potencializada pelo crescimento da China ameace a supremacia norte-americana no sistema internacional de Estados, portanto, o perigo de guerra mundial; (c) a possibilidade de que a crise ambiental provocada pelo aquecimento global não seja controlada, e venhamos a sofrer, nas próximas décadas, desastres incontornáveis.
Existe a possibilidade, também, que as três crises se agravem, simultaneamente, em um cenário apocalíptico. Um marxismo aberto é aquele que dialoga com as investigações que a ciência mais avançada do tempo em que vivemos produz. Podemos não saber as respostas, mas devemos formular as perguntas corajosas. Os três problemas são cruciais para o futuro.
Diante dos três problemas encontraremos análises negacionistas e catastrofistas. Mas não são perigos simétricos. São, qualitativamente, distintos. O negacionismo é, incomparavelmente, mais grave. Negacionismo não deve ser confundido com ceticismo. Um saudável ceticismo crítico é indispensável em qualquer campo de investigação. Os negacionistas são aqueles que rejeitam o consenso científico. O marxismo revolucionário deve ser hostil a teorias de conspiração. O cálculo de probabilidades é um campo da ciência que merece ser levado a sério.
O primeiro problema nos remete à dinâmica da economia no século XXI. A ideia negacionista de que o capitalismo teria superado a pulsação na forma de ciclos que alternam expansão e contração não tem fundamento. A crise de superacumulação de 2008 só foi superada depois de uma massiva desvalorização e destruição de capital. O que prevaleceu desde então foi um gigantesco endividamento estatal na forma de relaxamento monetário ou QE (Quantitave Easing).
O crescimento econômico das potências centrais, em ritmo catatônico-vegetativo, não ilude as sequelas sociais e políticas que explicam a eleição de Trump e o Brexit, e tem potencializado o crescimento da extrema-direita. Existem duas hipóteses em discussão entre os economistas marxistas. A primeira é que a crise é iminente porque já estaríamos, outra vez, diante de uma insustentável pirâmide de capital fictício, embora seja imprevisível qual será desta vez o gatilho ou faísca, e a dimensão. A segunda é que a força da ofensiva internacional contra os direitos dos trabalhadores e do povo, portanto, as novas condições de superexploração, possa adiar a forma explosiva da crise. O sistema ganha tempo, à custa de um aumento global da desigualdade social. Mas não, indefinidamente.
O segundo problema nos remete ao tema da decadência lenta, porém, contínua da supremacia norte-americana e a ascensão da China. A ideia negacionista de que a globalização era a antessala de uma época de paz, prosperidade e democracia, evidentemente, não se confirmou. Nenhuma potência, nos últimos 350 anos ascendeu à posição dominante sem guerra. Nenhuma nova potência foi integrada ao centro do sistema mundial de Estados, desde a assimilação do Japão como imperialismo associado sem Forças Armadas, ao final da Segunda Guerra Mundial. A disputa pela hegemonia entre Alemanha e Inglaterra esteve na raiz das duas guerras do século XX. O Reino Unido só aceitou o seu deslocamento como potência dominante, na forma de uma associação privilegiada com os EUA, diante do perigo de uma onda revolucionária na Europa continental depois da derrota do nazi-fascismo.
Existem duas grandes hipóteses: (a) a potência do crescimento chinês continua a ser tolerada pelos EUA, ainda que com acesso mais restrito ao financiamento externo, e renegociação das condições comerciais dos últimos vinte e cinco anos; (b) o conflito entre os EUA e a China se transforma em uma nova corrida armamentista, e abre uma etapa de guerra fria, com todas as possíveis consequências.
O terceiro problema nos remete à crise ambiental provocada pelo aquecimento global. A ideia negacionista de que teria causas naturais é insustentável. A Terra já conheceu várias transformações no seu passado de milhões de anos. O clima já foi muito mais quente, e não havia geleiras, e muito mais frio, com várias glaciações. Mas estas mudanças se explicam por causas naturais: variações na atividade solar, irrupções vulcânicas, deslocamento na posição dos polos e até na órbita planetária.
As evidências de que o aquecimento global é provocado pela atividade humana são incontroversas Existem dois cenários previsíveis entre os especialistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). A primeira defende que já é inevitável uma elevação da temperatura média acima de 1,5 °C. Seria o máximo tolerável antes de se produzirem consequências irreversíveis. Num cenário de elevação de 3,5 °C se prevê a extinção provável de até 70% de todas as espécies hoje existentes, um cataclismo.
A aposta estratégica dos socialistas deve repousar em um robusto otimismo de que a classe trabalhadora e a maioria de muitas centenas de milhões de pessoas oprimidas não deu ainda a última palavra. São a força social mais ponderosa da história. Não caminharão para o abismo da destruição da vida civilizada sem lutar. Tropeçarão, mas voltarão a se levantar. A eles pertence o futuro. Levam nas suas mãos uma esperança do tamanho do mundo.