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BRASIL

A grande tarefa é derrotar os cabeças-em-linha-reta

Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online.
Travesti Socialista

“[A] micropolítica e a macropolítica não estão separadas na sociedade. Ao contrário, interpenetram-se, mostrando, cada uma, força para transformar a outra. Todavia, este raciocínio só faz sentido num universo conceitual que atribui à estrutura e a sua capacidade de determinação um lugar importante. Não se trata, obviamente, de defender um conceito de determinação cega, mas de entendê-la como limites e pressões, deixando espaço, ainda que exíguo, para o imponderável. O tripé gênero-raça/etnia-classe exerce pressões numa determinada direção. O uso de conceito(s) inscrito(s) neste nível assegura o afastamento do relativismo absoluto, tão a gosto de pós-estruturalistas. Com efeito, esta instância do particular (sentido usado por Marx), na qual se faz história, é imprescindível para se evitarem, simultaneamente, o relativismo irrestrito e a fragmentação como traços do conhecimento.”

Heleieth Saffioti, ‘Violência de gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade’, p 76.

 

Encontrei o seguinte texto de Marília Moschkovich que, óbvio, estava sendo ridicularizado em uma postagem: “A grande tarefa do marxismo é o sexo”.

Ignorei a princípio, depois refleti: “Talvez não seja um texto tão ruim assim”. Ao abrir e ler o nome da autora, pensei: “Não, esse texto deve ser bom”. Já conhecia essa mina, ela não brinca em serviço. Ler o texto só reforçou minha hipótese: é ótimo.

Não queria ter de dizer que não concordo com tudo que ela escreve. Baralho, não concordo nem com tudo que eu mesma escrevo! Mas, se não digo isso, já vão pensar que eu surfo em qualquer onda. Muito pelo contrário! Não surfo nem a paulada nessa onda de ridicularizar tudo que não segue as correntes dominantes. Mesmo que dominantes localmente, no marxismo, por exemplo.

Ora, ora, foi assim que eu decidi dar uma chance pro marxismo. Tantas críticas óbvias, rasas, impressionistas, só me fizeram pensar que talvez, só talvez, tivesse algo de bom ali.

Desde o final do século XIX que marxistas se deparam com ‘marxistas’ que ridicularizam de cara qualquer coisa nova e ‘estranha’. Normalmente, são chamados mecanicistas. Aqui, prefiro dizer que têm ideias retas, que suas cabeças andam em linha reta. É como uma equilibrista que anda numa corda e cai na metade do caminho.

Um nome que pouca gente lembra

A Marília discorreu que a negligência desse assunto é um erro histórico das correntes marxistas, inclusive dos bolcheviques. Reforço aqui uma consequência desse erro.

Vamos falar de um bolchevique muito importante chamado Georgi Chicherin. Ele foi, logo após Trotsky, o Comissário (ou ‘Ministro’) para as Relações Exteriores. Em meio à guerra ‘civil’ na Rússia Soviética, Chicherin desenvolveu negociações e pressões pelo mundo para colocar um freio à guerra e impedir um novo banho de sangue mundial. Sangue que foi, na vasta maioria, dos povos eslavos, como o russo.

O próprio Lenin considerava o papel dele muito importante, como afirmou em algumas das inúmeras cartas que ele trocava com Chicherin. Ele foi um dos bolcheviques com quem Lenin mais trocou telefonemas após a revolução – e não era pra falar de futebol.

Mero detalhe: ele era gay.

Bem, isso não era um ‘mero detalhe’ pro Maxim Litvinov, outro membro do comissariado (ou ‘ministério’). Litvinov reclamava constantemente da maneira ‘esquisita’ de Chicherin se portar e se comportar. Hoje em dia, a homofobia implícita é óbvia: Litvinov não gostava dos trejeitos de Chicherin.

Assim como aos trejeitos, Litvinov repudiava a política exterior do diplomata. Stalin gostava mais de Litvinov, portanto este acabou substituindo Chicherin no comissariado – na prática em 1926, no papel em 1930. Em vez de, como Chicherin, buscar aliança e mobilização dos debaixo para pressionar os de cima, Litvinov implementou a política de negociar com os de cima e abafar a revolta e a indignação dos debaixo.

Os neofascistas falam muito de ‘sexo’

Enquanto a esquerda trata este como um assunto banal, a extrema-direita lhe dá um grande peso. Os fundamentalistas começaram a falar mal da suposta ‘ideologia de gênero’ e não faltou esquerdista pra dizer isso era desviar o foco do que é ‘realmente importante’. Fundamentalistas distribuíram cartilhas nos bairros e nas portas das igrejas, alertando para o grande perigo da ‘ideologia de gênero’.

Com esse discurso oportunista, eles conseguiram derrubar os debates sobre diversos preconceitos dos planos de educação.

Nas eleições ano passado, espalharam a ‘fake news’ que o Haddad teria distribuído mamadeiras genitais nas creches. Não só por isso, mas também por isso e por inúmeras campanhas contra os movimentos feminista e LGBTI, Bolsonaro foi eleito com uma margem bem apertada de votos.

Se Bolsonaro não falasse de sexo, será que ele teria sido eleito ou será que a pequena vantagem que ele teve se reverteria?

Damares tornou-se famosa ao dizer que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”. Detalhe: ela estava de azul. Novamente, não faltou cabeça-em-linha-reta pra dizer que não deveríamos falar sobre isso, era cortina de fumaça. Resultado: ela é a segunda ministra mais bem avaliada do governo Bolsonaro, atrás apenas de Sergio Moro.

Enquanto a esquerda fica com mil e um melindres para falar de sexo, a extrema-direita fala mil e uma borrachas sobre sexo embaixo de uma goiabeira e ganha a simpatia do povo.

Agora, Marília, nisso você se equivocou. Precisamos falar de sexo, com certeza, aliás, precisamos falar de muitas coisa. Mas, para isso, temos que derrotar esses ‘marxistas’ que, vez após vez, nos ridicularizam por falar sobre o que a gente quer falar, sobre o que a gente precisa falar. ‘Marxistas’ que abafam a nossa voz para que ninguém nos ouça, como fez Litvinov.

Temos que derrotar os ‘marxistas’ cabeças-em-linha-reta. Prefiro mil e uma vezes uma cabeça-mole ‘pós-moderna’ como Kollontai a um cabeça-dura ‘marxista’ como Litvinov.

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