“o professor universitário poderá ser muito rico. Vai ser a melhor profissão do Brasil”. (secretário de Ensino Superior do Ministério da Educação)
“Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria” (Jair Bolsonaro durante campanha eleitoral em 2018)
No ano de 2019, as manifestações massivas de maior expressão contra as políticas de Bolsonaro foram protagonizadas pelo setor da educação. Não à toa Jair Bolsonaro tem privilegiado a educação como sua arena de conflito. Estudantes e servidores indignados com as medidas que combinam ajustes ultra-neoliberais com elementos neofascistas, estiveram à frente em protestos no 15M, 30M, 14J e 13 de agosto. Outras manifestações nacionais de menor impacto foram deflagradas. Entidades como Andes-SN, Sinasefe, Fasubra, Contee, CNTE, UNE, Fenet, dentre outras, articularam-se em jornadas de lutas consideráveis em defesa da educação pública. Mas estas, ainda, têm se demonstrado manifestações insuficientes para se resgatar o sentido de protagonismo social e unificar a oposição nas ruas diante dos ataques em curso, com a capacidade de inverter o signo da situação reacionária aberta no país. Ou seja, com as manifestações pós-15M abriu-se uma conjuntura de resistência (defensiva) mas não o suficiente para inverter a situação desfavorável para os trabalhadores.
Apesar de suas poucas palavras no período de campanha eleitoral e das inúmeras tentativas de se esquivar do debate público, Bolsonaro foi o candidato que mais
abordou o tema da educação nas eleições/2018. Ao assumir o mandato presidencial, elegeu a educação pública como inimigo n.1 em potencial. Já existem disponíveis ao público um número razoável de textos que fazem importante apanhado do impacto da ofensiva reacionária durante os primeiros meses do governo Bolsonaro, sobretudo contra as universidades, a ciência e a tecnologia. Resta, neste artigo, um balanço temático da educação de conjunto tendo em vista o recorte temporal relativo ao primeiro ano do governo de extrema-direita brasileiro.
Continuidades ou descontinuidades?
O que há de comum entre as “novas” políticas educacionais do governo Bolsonaro? Por um lado, há o intuito de uma consolidação ideológica de base conservadora. Uma agenda que não se limita a dar continuidade, mas, sobretudo, impor uma nova face à educação no país com requinte de perversidade e obscurantismo (apoiado no conservadorismo e em um grupo fundamentalista de extrema-direita), no intuito de ceifar qualquer perspectiva de autonomia ou pensamento crítico. De outro lado, está em curso o que podemos denominar por uma ofensiva ultra-neoliberal, pautada pela lógica do mercado e expressa na Intensificação da onda de privatização da educação pública (e apropriação do fundo público pelo empresariado), levando a mercantilização da educação às últimas consequências e o desmonte da educação pública.
O MEC e as políticas educacionais de Bolsonaro
O governo Bolsonaro é marcado pela instabilidade política e crises de grande envergadura. Apesar da relação conflituosa, mantém o apoio da maioria das classes dominantes e setores médios. Conforme analisamos nos últimos meses, o Ministério da Educação (MEC) de Bolsonaro (a despeito de suas trocas de gestores e de sua instabilidade) tem por foco o gerenciamento/financiamento da educação dentro dos marcos ultraliberais e, do ponto de vista ideológico, aproximar-se da extrema-direita. Por outras palavras, sob nova direção do Estado, a agenda educacional tem combinado ajustes ultraneoliberais e traços neofascistas.
Façamos um breve resgate das principais medidas de Bolsonaro para a educação até o presente momento:
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Combate a ideologia de gênero, a doutrinação ideológica e ao marxismo cultural nas escolas e universidades. Tentativa de retomada do Programa Escola Sem-Partido (cerceamento da liberdade de ensinar e combate a “ideologia de gênero”), apesar de engavetado e sem formalização, e investida na criação de uma comissão investigadora responsável por inspecionar temas da prova do ENEM que façam abordagens “ideológicas” ou consideradas “de esquerda”, recrudescendo o traço autoritário do governo;
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Revisão nos livros didáticos: Tentativa de revisar os livros didáticos no intuito de inserir fake news e possibilitar a ausência de fontes científicas, medida promovida pelo Ministro da Educação Vélez Rodríguez (no cargo entre janeiro e março/2019);
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Exaltação à ditadura militar. O Ministro Ricardo Vélez Rodríguez promoveu inúmeros discursos reacionários, com destaque para a orientação de que os livros didáticos de história apagassem a existência do período ditatorial brasileiro, devendo ser interpretado como “movimento cívico”, uma vez que se devesse, na opinião do ministro, e dos ideólogos olavistas, se comemorar o Golpe Militar de 1964.
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O MEC enviou comunicado as escolas solicitando que as crianças fossem perfiladas e cantassem o Hino Nacional, com alunos (menores de idade) filmados e realizando a leitura de mensagem institucional do MEC contida numa carta com slogan de campanha presidencial do partido de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos” (Velez Rodrigues). A medida gerou tamanha polêmica que o ministro teve que recuar nessa empreitada.
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Anúncio de corte na UNB, UFF e UFBA por “balbúrdia” e motivações ideológicas. Outra medida polêmica foi a “Lava-Jato da Educação” (Ministro Abraham Weintraub, consultor do mercado financeiro). Além dos ataques as três instituições mencionadas, o ministro Sérgio Moro e o então ministro da Educação, Vélez Rodrigues, assinaram um protocolo para iniciar a Operação Lava Jato na educação, a qual visava desmoralizar o sistema de educação federal do país e impor uma luta ideológica, promovendo investidas autoritárias e espetáculos com a polícia federal em reitorias, departamentos e programas em universidades e institutos federais. Vale lembrar, também, pronunciamento oficial admitindo-se cobrança de mensalidades na pós-graduação stricto-senso, historicamente gratuita no país, com o intuito de promover a expansão do ensino superior privado e mercantil sob controle de grandes fundos de investimentos.
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Corte orçamentário em todas as universidades, institutos federais (suspensão do repasse de 30% das verbas discricionárias) e no FUNDEB. Tais ações geraram as duas maiores manifestações de rua contra o governo Bolsonaro em 15 de maio e em 30 de maio: em defesa das universidades e da educação pública.
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Ataque à pesquisa: suspensão de edital de pesquisas do CNPq já aprovado em 2018 e que envolvia 2516 bolsas de várias modalidades. A Capes teve 4.798 bolsas de pesquisa cortadas.
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Desmantelamento da Educação Básica e Militarização de escolas (unir “disciplina” e bom desempenho escolar), em evidente projeto de desmonte de qualquer perspectiva de gestão democrática. Ao mesmo tempo em que o ministro Véslez afirmou que “as universidades devem ser reservadas para uma elite intelectual” defendeu a gestão cívico-militar das escolas como medida de “combate às drogas” e acabar com a violência na escola.
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Lançamento do programa FUTURE-SE, o qual visa o privatismo do ensino superior e Institutos Federais, trazendo um novo mecanismo de financiamento (interesses imediatistas empresariais): os recursos passam a ser geridos por OSs / ameaça a autonomia das IF, ao prover um autofinanciamento em que se desobriga o Estado de custear as instituições públicas sob sua responsabilidade. O programa ainda coloca a pesquisa científica rumo aos interesses do mercado: aproximar as instituições das empresas, para facilitar o acesso a recursos privados / desestímulo a pesquisa em humanidades. Outra medida polêmica é o fim dos concursos públicos e a precarização no plano de carreira docente, com previsão de contratação de profissionais com base no regime CLT (complementação de renda via venda de pesquisas no setor privado), promovendo a descaracterização de Regime de Dedicação Exclusiva / ensino-pesquisa-extensão. Isso sem mencionar a potencialização dos efeitos da EC 95 (redução de gastos públicos com pessoal nas universidades e Institutos Federais).
Importante observar que, logo após o governo anunciar o Programa Future-se, as ações da Kroton Educacional S. A (Anhanguera, Unopar, Pitágoras), Estácio Participações S. A (Estácio de Sá), GAEC Educacão S. A. (São Judas e UniBH) e SER Educacional S. A (Univeritas, Uninassau), negociadas na bolsa de valores de São Paulo (BOVESPA), registraram uma tendência de alta a partir de 7 de maio. As ações da Laureate Education Inc (Anhembi Morumbi e FMU), negociada na NASDAQ e as ações da Adtalem Global Education (Ibmec), negociadas na bolsa de Nova York, apresentaram uma alta a partir de 8 de maio1. Portanto, os tubarões de ensino – grupos oligopólios privados da educação superior – vislumbrar o ensino superior como potencial financeiro a partir das políticas privatistas na educação.
A despeito dos tensionamentos no MEC e suas forças internas em disputa – com destaque para as alas empresarial, olavista e militar-tecnocrática – o MEC demonstrou ter um discurso vazio e totalmente desconectado das necessidades das escolas públicas (além de conflitos entre ideólogos ligados a Olavo de Carvalho, militares e técnicos de gestão corporativa). A equipe do MEC sequer tem se embasado em algum diagnóstico consistente, apenas apresenta uma visão rudimentar que ignora completamente as pesquisas acadêmicas, os sindicatos e as entidades nacionais que congregam educadores. Ao contrário, o que temos visto são propostas descabidas e estabanadas, mas em evidente tentativa de desmonte da esfera pública, com um projeto privatista. O ataque da pasta à autonomia universitária, as perseguições a educadores, a postura antissindical, o autoritarismo e medidas antidemocráticas aproximam o MEC do conservadorismo de extrema-direita2. Contra a autonomia universitária, basta citarmos o Decreto 9.794/19, o qual prevê que a nomeação para cargos de direção devem ser precedida de análise do Governo Federal, bem como o Decreto 9.754/19, que decreta a extinção de cargos efetivos em áreas administrativas das universidades.
Um dos argumentos do governo para sustentar suas políticas seria de que se gasta muito com educação no país. Analisemos rapidamente.
Os gastos educacionais
Entre 1995 e 2005, o gasto per capita em educação manteve-se, basicamente, constante: na marca de quase R$ 1 mil. De 2006 a 2014, praticamente dobrou (alcançando cerca de R$ 1,9 mil). A curva desse indicador começa a demonstrar declínio a partir de 2015. Como não foi institucionalizado, o aumento efetivo dos gastos educacionais no país3 durante os governos petistas bruscamente revertido a partir do governo Temer. A inflexão foi agravada com a EC 95/2016. Se tomarmos apenas os gastos envolvendo a União (Castro 2019), de 2008 a 2014 o crescimento dos gastos foi significativo, saltando de R$ 61,5 bilhões para R$ 130 bilhões (se tomarmos o PIB como referência, os gastos aumentaram de 1,1% para 1,3%). Objetivamente, o auge de crescimento do investimento educacional se deu entre 2008 e 2012, perdendo força em 2013 e despencando a partir de 2015. A curva mantém-se descendente nos anos 2018 e 2019. Para se ter um exemplo, em 2018, os investimentos recuaram ao patamar de 2012 (em 2012 os gastos com investimento do orçamento primário do MEC foram de 18% para 4%), conforme observa Leher (2019).
A Rede Federal e os Institutos Federais
Cumpre notar que, apesar da expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Rede Federal), desde 2015 os recursos destinados aos Institutos Federais têm sido decrescentes – o orçamento de 2019 regrediu ao patamar do de 2011. “Após a EC n.95/2016 e, ainda mais, a partir do governo Bolsonaro, os cortes tornaram-se mais acentuados” (Leher, 2019 p. 84). A estratégia de estrangulamento orçamentário promovida pelo governo Bolsonaro pode, ainda, ser evidenciada se mencionarmos o bloqueio de 30% do orçamento geral das Universidades e Institutos Federais (algumas dessas instituições o corte foi ainda maior) promovido no semestre passado, o que provocou uma situação de iminente colapso orçamentário e perspectiva de fechamento de unidades de ensino, ao afetar seu funcionamento interno. Contratos foram encerrados, bolsas de pesquisa suspensas e um profundo impacto de deterioração no tripé ensino-pesquisa-extensão. Bolsonaro quer acabar com a rede Federal – vista como projeto petista -, com o ensino integrado (os resultados do PISA das escolas vinculadas aos IF são superiores à média nacional, comparável aos países que compõem a OCDE) e com a pesquisa e extensão. Apesar dos cortes, em 2018, 79% dos gastos na rede foi com pessoal. São cerca de 45 mil docentes (38 mil têm vínculo efetivo de regime de dedicação exclusiva), 94,6% são efetivos e mais de 80% são mestres e doutores. É esse quadro que Bolsonaro não quer revelar. Ou seja, com investimento e valorização da educação pública é possível atingirmos níveis de qualidade.
Ciência e Tecnologia
Em 2017, o Brasil ocupou a 13ª posição de maior produção científica mundial. Se somarmos o montante de investimento em Ciência e Tecnologia no país, notamos uma drástica redução: R$ 6 bilhões em 2010, R$ 3 bilhões em 2017. Segundo a Academia Brasileira de Ciências, a redução se manteve entre 2018 e 2019. O primeiro ano do governo Bolsonaro já é suficiente para percebermos a hostilidade deste governo à ciência. Além da restrição orçamentária e das ações ideológicas contra a comunidade científica (cabe lembrar a exoneração do diretor do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial) e o incentivo ao irracionalismo de grupos fundamentalistas da base do governo, a Universidade Pública tem sido veementemente atacada pelo atual ministro da Educação, que recentemente deu declarações, apoiado em fake News, de que as universidades públicas brasileiras “produzem drogas”. O clima de tensionamento nessa área é gritante, com ameaças crescentes a autonomia e funcionamento democrático dessas instituições. Apoiado no mito de que as universidades públicas brasileiras não produzem conhecimento, o Ministro oculta o fato de que, apesar das tentativas de desmonte da educação pública, mais de 80% dos cursos de pós-graduação no país concentram-se na rede pública. Num ranking das 50 instituições brasileiras que mais produzem trabalhos científicos nos últimos cinco anos, 43 são universidades públicas (apenas uma é universidade privada).
No que se refere à educação básica, o projeto de Lei 2.401/2019, de inspiração de comunidades religiosas fundamentalistas (pentecostais e neopentecostais) dispões sobre o exercício do direito à educação familiar (domiciliar). Já o Decreto 9.765/19 (idealizado por um aluno de Olavo de Carvalho, Carlos Nadalim) institui a Política Nacional de Alfabetização que privilegia o ultrapassado método fônico, notadamente contestado por estudiosos. Também no governo Bolsonaro, o ENEM passou a ter supervisão em questões de provas no intuito de combater “viés ideológico”, conforme ficou claro no último exame, em que se deixaram de fora quaisquer questões que envolvessem questões de gênero, sexualidade ou análise crítica de processos sócio-históricos (vale lembrar que a prova relativa a História, deixou intocado o período entre os anos 1930 a 1980).
Construir a Resistência e desafios na Educação
Não foram poucas as críticas a gestão educacional deste governo de extrema direita, seja ao conteúdo privatista das propostas, a ausência de debate público e diálogo prévio com a comunidade e especialistas, as medidas impositivas ou as fragilidades técnicas e inconstitucionais de certas propostas. O fato é que, a despeito da crítica, nenhuma entidade sindical ou agrupamento político tem se revelado capaz, por si só, de promover resistência massiva contra o projeto ultraneoliberal portador de elementos fascistas do governo Bolsonaro. É imperioso que as forças progressistas e democráticas da educação e do funcionalismo público busquem construir uma agenda nacionalmente unificada, com pauta comum, no intuito de se ampliar a unidade de ação e resistência.
Para tanto, requer que se intensifique a interlocução com partidos e movimentos populares que enfrentam a agenda de Bolsonaro, no intuito de se dar um salto qualitativamente superior do estágio de acumulação de forças de resistência para se criar um movimento unitário de massas ofensivo com agendas comuns e um programa mínimo estabelecido. As lutas devem ultrapassar o curso imediato de atuação corporativa para se atingir a totalidade. E o setor da educação pública, envolvendo entidades sindicais e movimento estudantil, tem um desafio nessa luta pela construção da Frente Única: afinal foram os protagonistas das maiores manifestações contra as políticas de desmonte do atual (des)governo. O desafio será fortalecer os setores críticos no espaço acadêmico, a defesa da autonomia e da democracia nas instituições e, quem sabe, ganhar a comunidade em defesa da educação pública, estendendo o debate sobre a função da universidade pública, das escolas e dos Institutos Federais. Mas esse movimento deve ser também pedagógico, ao incidir sobre o senso comum hegemonizado pela ideologia conservadora e privatista, disputando corações e mentes, em caráter formativo, contra o projeto de desmonte e autocrático que se pretende se impor e derrotar as lutas democráticas da educação e as pedagogias críticas.
É preciso fortalecer a luta contra o governo Bolsonaro e a direita neofascista. De tal modo, será decisivo combater a fragmentação das lutas e disputar o protagonismo social e o senso comum conservador dominante. Construamos em 2020 nosso bloco, uma fortaleza de unidade para avançar a resistência dos trabalhadores da educação em conjunto com os demais setores da classe trabalhadora contra os ataques à educação pública, aos direitos sociais e às liberdades democráticas.
1 Em 17 de julho de 2019, o Ministério da Educação oficializou o lançamento do programa “Future-se“, que visa reestruturar o financiamento do Ensino Superior público ao ampliar o papel das verbas privadas no orçamento das universidades.
2 O autoritarismo do governo Bolsonaro na educação foi expresso em inúmeras ocasiões este ano. A exemplo das intervenções em universidades (via repressão policial ou por meio de interventores nas gestões locais, como no caso de interventores do governo em lugar de reitores eleitos). Ainda durante o período eleitoral, juízes eleitorais, preocupados com possível eleição odo candidato petista, determinaram a busca e apreensão de propaganda política em universidades e sedes de sindicatos educacionais, proibiram aulas temáticas eleitorais, permitindo intervenções policiais nas instituições e atos e debates públicos. Posteriormente tais arbitrariedades jurídicas foram sustadas pelo STF.
3 Os gastos educacionais são compartilhados entre União, Distrito Federal, Estados e Municípios.
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